Julliany Mucury (foto: Tainá Frota)
“Fiz a leitura crítica de 29 (vinte e nove) letras de canção de autoria exclusiva de Renato, como memórias-presentes, registro de um tempo fluido, crítico, no embalo da mudança da década de 1980 para a de 1990, levando em conta seu projeto poético de criação, no qual é possível perceber a relevância literária de suas canções. É um relato poético-musical que traça um perfil, não só dele, mas de toda uma geração. O coração da minha pesquisa compreende, assim, uma amostra das letras compostas exclusivamente por Renato para a Legião Urbana, que servem para comprovar se o cancionista foi ‘antena da raça’, expressão de Ezra Pound, capaz de traduzir para a linguagem das letras das canções o pensamento e o sentimento de uma juventude vivente no pós-regime militar, que precisou reaprender a pensar o mundo, procurando outras formas artísticas para se expressar. (...) O legado artístico de Manfredini Jr. ensina mais sobre aceitação e consciência do que sobre entrega e morte. Ao subir a montanha consciente de sua sina, Renato deixou um rastro que mostra cada etapa da jornada. Do jovem rebelde engajado ao homem ferido e iluminado pela percepção exata de sua limitação, pela antecipação da morte, exprime no sujeito de cada letra um estado diferente de seus embates. Surge então no o ato da vivência na dor, da escrita como forma de lembrança, de entrega, para deixar um relato atemporal inscrito em cada verso.”
“Renato quis atingir em cheio essa apatia da massa, anestesiada pela distorção de valores e pelo apagamento do passado. Nossa sociedade não tem memória. Partindo desta triste constatação, confirmada, por exemplo, pelas eleições nos últimos anos e em como se repetem figuras condenadas publicamente (como Collor e seu impeachment), o que ecoa dos versos desta canção e vai ao encontro do ouvinte/interlocutor pode parecer vazio se comparado a esse contexto, mas é só uma impressão. A ironia se alimenta da troca constante com um interlocutor e é preciso quebrar o silêncio e o entorpecimento ainda que as panelas só recorrem quando os interesses não são claros. (...) O discurso de Renato representou, não só nesta, mas em suas letras em geral, a mágoa de um povo quebrantado. O diálogo que se estabelece atinge em cheio seu público, e o tom agressivo do punk rock causa desdobramentos que não cessam, com suas letras ainda cantadas como hinos nas manifestações de massa em protestos nas ruas. (...) pois ‘Perfeição’ funcionou e funciona, ainda hoje, como uma espécie de discurso profético sobre a sociedade como um todo e quanto aos rumos que vamos seguindo, tendo em vista ao nosso contexto político. Nessa sátira, que é conduzida por ‘braço mais sério do que cômico’, é a arma discursiva de Renato e da Legião Urbana. (...) A ironia como um riso que se apresenta contra a condução assassina de um país, com cômico-irônico marcado pela carnavalização, como na inversão contundente de ‘Perfeição’.”
“O que o cancionista consegue com estas letras de protesto é glorificar em suas imagens a perda do caráter humano, e seus sujeitos sofrem a opressão que parte de outros sujeitos, seus semelhantes. O não reconhecimento do outro serve também para si mesmo, pois ‘nos deram espelhos e vimos um mundo doente’, e o eu também está perdido. O sujeito utópico que sofre diante da falha da crença é o índio diante do colonizador, do jesuíta, do sujeito comum, que, em tempos atuais, ainda se vê ameaçado diante das relações humanas. Atualização. A revelação é comum na descoberta, mostrar as intenções do outro. A inocência que reconhece a maldade não consegue entender a lógica do outro na sua postura diante do mundo. E essa imagem serve para vários tipos de relacionamentos humanos que existem desde antes dos índios, chegando à modernidade tardia, à modernidade líquida, enfim à contemporaneidade.”
“‘A canção do senhor da guerra’ (...) De forte carga irônica que remete diretamente a ‘Perfeição’ e ‘Índios’, outras letras da legião cujo enfoque é a guerra e a dominação de um povo por outro. (...) Renato escreve uma letra que fala dos ‘velhos’ comandantes de guerras, que as criam para seu benefício próprio, colocando na berlinda os jovens que são convencidos a cumprir uma missão de fachada, que de fato não é real (...) A crítica já começa falando da falta de legitimidade desses conflitos, criados com a desculpa de promover empregos, produção e avanço tecnológico, sendo que o preço para isso são ‘crianças com armas na mão’. Juventude e infância ceifadas pela lógica capitalista, alimentando a indústria armamentista e sendo usadas como fantoche de jogos de guerra, atendendo a interesses nada nobres (aqui cabe a reflexão de ‘Faroeste Caboclo’, quando João do Santo Cristo afirma que não protege ‘general de dez estrelas que fica atrás da mesa com o cu na mão’). (...) Renato faz a crítica às falsas causas e à suposta nobreza das guerras, que fazem uso da inocência ao venderem uniformes, e da questão religiosa como um emblema de uma causa para a qual se voltar e morrer: ‘Veja que uniforme lindo fizemos pra você/ E lembre-se sempre que Deus está do lado de quem vai vencer’ (...) Em nome de Deus, promovem-se as maiores atrocidades, como a Guerra Santa, e não há chance de futuro e esperança quando crianças não são queridas por serem inúteis.”
“O embate interior surge na construção dessa imagem, uma das mais belas compostas por Renato. Sugestão do sofrimento que vem com os tons alheios, a letra mostra uma fuga, no instante do abraço, no flagrante da angústia pela falta de luz e por promessas confusas: ‘E o que foi prometido, ninguém prometeu / Nem foi tempo perdido / Somos tão jovens’. Ainda no âmbito da Juventude, o poeta aponta para o ‘Ainda é cedo’, por ser ele e outro ‘tão’ jovens, revelando um tempo que é longo, que não urge, aceita erros e sugere um universo de visões de futuro. É a angústia que os filósofos e pensadores do nosso tempo captam no sujeito contemporâneo: ter todo o tempo do mundo, mas não poder perdê-lo. A questão é: por onde começar? (...) O poeta Wally Salomão já dizia que a memória é uma ilha de edição, e o nosso sujeito ‘lembra e esquece’ como foi o dia, insinuando que por sua mente repassa o cotidiano escolhendo, intencionalmente ou não, aquilo de que vai se lembrar. Entre o desejo ou simples esperança de ter todo o tempo do mundo, esse sujeito evoca a frase ‘somos tão jovens’ Que explica muitas coisas: desencontros, desarranjos, inocência e desvios do caminho, mas também isenta de certa maneira os erros cometidos. Ter o próprio tempo, numa perspectiva plural (‘temos’, ‘nosso’), é dar conta da condição de 24 horas imposta como rotina que delimita a manhã e tarde para ofício e noite para descanso.”
“(...) No instante de um ‘enquanto’, o sujeito está conformado pelo desencontro. Ele tem a consciência de uma mudança que toma forma mesmo diante da imutabilidade das estações: ‘Se lembra quando a gente chegou um dia a acreditar / Que tudo era pra sempre / Sem saber / Que o pra sempre / Sempre acaba?’. Memento mori inserido na canção, o luto pela certeza do fim, antes mesmo do começo: lembre-se de que tudo deve morrer, que tudo acaba. (...) O eu nesta composição e o outro passaram por uma transformação conjunta. Em contraste com o exterior, imutável e lento, no interior aconteceu uma mudança que não foi bem entendida, mas que está refletida no outro, também afetada pela ação aparentemente inofensiva da passagem das estações, o imutável, pois elas sempre continuarão a passar. A perda da inocência revelada: nada dura para sempre, tudo tem fim. E um mal-estar recai sobre os sujeitos que vivem essa transição: ‘Mesmo com tantos motivos pra deixar tudo como está / E nem desistir, nem tentar / Agora tanto faz / Estamos indo de volta / Pra casa’. Resignados, vivem o meio-termo entre o nada e a tentativa. Sem forças, entregam-se à segurança e retornam ao eixo: a casa. Este local de sossego e retorno é o futuro da juventude da geração Coca-Cola, que também entrega as decisões para outro tempo, esperando que tudo se ajeite.”
“Ambos, o menino sem nome e Clarisse, fazem de seus corpos paralisados e feridos uma morada única. Não há no exterior desse lugar solitário um espaço para as suas existências. Na criação desse lugar-outro, uma realidade à parte toma forma para abrigar sujeitos sem morada no mundo exterior, em que a sociedade desfruta de uma cegueira confortável, sem vê-los e precisar entendê-los. O narrador apresenta a canção usando a primeira pessoa do singular: ‘Eu estou cansado de ser vilipendiado, incompreendido e descartado / Quem diz que me entende nunca quis saber’. No entanto, a partir daí, abre o foco da narrativa para histórias que não são a sua, mas que ilustram sua visão das mazelas particulares que a sociedade ignora. Os últimos versos dessa composição voltam para a primeira pessoa, o que confunde o narrador com Clarisse: ‘Eu sou um pássaro / Me trancam na gaiola / E esperam que eu cante como antes’. (...) Esse pássaro aprisionado serve de parâmetro para todas as mulheres e crianças que sofrem violência, independente da natureza dessa ação: ‘A violência e a injustiça que existe / Contra todas as meninas e mulheres / Um mundo onde a verdade é o avesso (...)’ O isolamento das vítimas ocorre na inversão dos valores num mundo em que a mentira e a tristeza imperam, no entanto, ainda há crença (...) A fragilidade da adolescência também traz a personagem para este espaço de solidão. A própria formação de identidade e reconhecimento social é um processo solitário, junto com a experiência de relacionamento com o outro, que pode ser bem sucedida ou trazer consequências como isolamento, muitas vezes acompanhado das drogas e pela automutilação, culminando no suicídio.”
“(...) Eis que surge a esperança. O sujeito desta canção [‘A Via Láctea’] reage de maneira tímida, quase sacra, quando evoca a luz: ‘Quando tudo está perdido / Sempre existe um caminho / Quando tudo está perdido / Sempre existe uma luz’. Mera impressão. Logo no próximo verso, cujo primeiro vocábulo é a conjunção adversativa, cai a energia de positividade que fora criada: ‘Mas não me diga isso / Hoje a tristeza não é passageira / Hoje fiquei com febre a tarde inteira / E quando chegar a noite / Cada estrela parecerá uma lágrima’, aqui o eu-lírico entristecido é quase incapaz de crer. A cada verso afundamos com ele em uma torrente de dor e confirmação da fraqueza. O sujeito ainda agradece a atenção, mas não se ergue. (...) Cada verso parece responder a frases repetidas que o sujeito escuta dos outros, lugares-comuns que ocupam os espaços da fala quando não se sabe bem o que dizer: ‘amanhã será outro dia’, ‘isso passa’, são ecos de vozes alheias (‘não é?’). (...) A ausência de força não é mera pena de si mesmo, tampouco um pedido de compaixão, o estado desse sujeito é tão enfraquecido pela febre que ele nem pede pena. E aí o efeito acontece, na dificuldade de acompanhar a cada verso sem partilhar com o outro sua enfermidade, nas palavras repetidas a cada visita, sem melhora, sem resultados positivos. Apenas um sujeito que definha e espera. A dor está na consciência do fim e na tentativa frustrada de existir com ânimo a cada novo dia, embora seja necessário. É o monólogo da despedida.”
“Em ações que remetem ao leito, ao lar, surge uma trama metafórica, em que os sujeitos atuam em um espaço surreal, glutões do (im)possível imaginário: ‘vamos beber livros e mastigar tapetes’ e ‘cuspir um dia qualquer no futuro’. Com esse teor mágico, gigantes de um espaço limitado, os autores desta letra-devaneio se assumem ateus; e, sem enaltecer o príncipe, cortam seus cabelos para entregá-los a um Deus plebeu, ironia fina, que desconstrói limites e o sagrado. (...) O cancionista constrói o sujeito em um terreno lúdico, de recriação, que acaba sempre com o anúncio de um novo começo. ‘O que vier vai começar a ser o fim / E depois do começo / O que vier vai começar a ser’, versos finais da canção, confirmam a vontade de regularizar o novo, nascendo um ser do que vier e que não se sabe o que (ou quem) é. Essa ilusão construída verso a verso pelo cancionista mostra a sua decisão de não subjugar o seu público, que bebe em referências elaboradas e esteticamente complexas para a cena do rock, tão malvista e reduzida pela crítica. Renato mostra em ‘Depois do começo’ sua intenção de levar poesia ao universo do ‘bate-estaca’, o que também é ironizado por ele no encarte, pois há uma advertência sobre a tentativa de buscar significados nessa canção.”
“(...) ‘Aqui no Brasil, nós somos alegres, mas não somos felizes. Existe toda uma melancolia e uma saudade que a gente herdou dos portugueses e que a gente ainda nem começou a resolver. A gente não sabe o que é esse nosso país’. Para uma entrevista final, Renato estava determinado a parecer otimista e sincero, mesmo que não soubesse que aquela seria a sua última fala um jornalista.”
Presentes na biografia “Renato, o Russo” (Garota FM Books, 2021), de Julliany Mucury, páginas 25+30, 117-118, 158-159, 173-174, 148-149, 141, 128, 125-126, 162 e 195, respectivamente.
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