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Dez passagens de Clarice Lispector nas cartas dos anos 1960-1970

Clarice Lispector (foto daqui)


“(...) apesar do grande respeito que tenho pela Academia [Brasileira de Letras], eu jamais aceitaria entrar nela.”


“(...) Creio que ao escrever se entende o mundo um pouco mais que quando não se escreve. É uma lucidez meio nebulosa porque a gente não tem direito consciência dela. Assim, eu sempre começo tudo como se fosse pelo meio. Deus me livre de começar a escrever um livro da primeira linha. Eu vou juntando as notas. E depois vejo que tem uma conexão com as outras, e aí descubro que o livro já está pelo meio (...) Sou uma mulher que sofre, como todas as pessoas do mundo, as mesmas dores e os mesmos anseios. (...) Eu nunca pretendi assumir atitude de superintelectual. Eu nunca pretendi assumir atitude nenhuma. Levo uma vida muito corriqueira. Crio meus filhos. Cuido da casa. Gosto de ver meus amigos, o resto é mito. (...) A crítica, quase sempre, confunde as coisas, e acaba interpretando ao contrário o que, na verdade, quero dizer. Por esta razão, nunca me interessei pela opinião dos críticos a meu respeito, por julgar que nem sempre ela é tão objetiva como deveria ser.”


“(...) Jamais caí em transe na minha vida. Não psicografo nem ‘baixa’ em mim nenhum pai de santo. Sou como qualquer outro escritor. Em mim, como em alguns que também não são apenas ‘racionalistas’, o processo de gestação se faz sem demasiada interferência do raciocínio lógico e quando de repente emerge à tona da consciência vem me forma do que se chama inspiração. Na verdade, menos do que muitos escritores que conheço, quando escrevo, eu o faço sem procurar circunstâncias especiais, ambiente propício ou mesmo isolamento. Habituei-me a trabalhar sendo interrompida por telefonemas, cozinheira e crianças.”


“Eu achei, sim, uma nova amiga. Mas você sai perdendo. Sou uma pessoa insegura, indecisa, sem rumo na vida, sem leme para me guiar: na verdade, não sei o que fazer comigo. Sou uma pessoa muito medrosa. Tenho problemas reais gravíssimos que depois lhe contarei. E outros problemas, esses de personalidade. Você me quer como amiga mesmo assim? (...) Se quer, não me diga que não lhe avisei. Não tenho qualidades, só tenho fragilidades. Mas às vezes (...) tenho esperança. A passagem da vida para a morte me assusta: é igual como nascer do ódio, que tem um objetivo e é limitado, para o amor que é ilimitado. Quando eu morrer (modo de dizer) espero que você [Olga Borelli] esteja perto. Você me pareceu uma pessoa de enorme sensibilidade, mas forte.”


“Cursei a faculdade de Direito porque desejava reformar o mundo, não me considero uma escritora participante nem engajada em movimentos de qualquer espécie. Muito embora tenha uma consciência crítica suficientemente formada para apontar os abusos e explorações [de] que eu e a maioria dos meus colegas somos vítimas. Mesmo editada em Portugal, e traduzida na França, Estados Unidos e outros países, e mesmo com meus trabalhos publicados em inúmeras antologias escolares de autores brasileiros, eu nunca vivi exclusivamente para a literatura. O motivo, porém, não chegou a ser o desinteresse do público pela minha obra, mas, sim, a utilização indevida de que se beneficiam os editores. (...) Tanto Érico Veríssimo como Jorge Amado tiveram a sorte de encontrar boas editoras e podem viver de direitos autorais. Mas, os outros, como eu, não conseguimos viver de direitos autorais. Faço traduções, adaptações, entrevistas, crônicas em jornal. Na minha opinião, os editores deveriam ser mais generosos, inclusive estimular os novos talentos que surgem. Os jornalistas são mal pagos e têm de se socorrer com outros empregos para sobreviver.”


“(...) Já devia ter comunicado a você que recebi contrato da Livros do Brasil, e um cheque. O cheque, bendito seja. O contrato está todo certo, só que não contém nenhuma cláusula que me garanta que o livro não será modificado (refiro-me à troca de ‘crianças’ por ‘miúdos’, ‘meias’ por ‘peúgas’, ‘moça’ por ‘rapariga’). Fiquei com o problema de considerar ou não a cláusula como tácita. Pensei em pedir retificação do contrato, antes de assiná-lo e antes de descontar o cheque, aguardando um novo onde constasse a cláusula mencionada. Mas fui adiando porque isso significaria carta vai, carta vem, contrato idem ida e volta e ida. Mas Rosita acha — e concordo plenamente — que você explicando aos editores que esta cláusula é essencial para mim, eles (que têm sido tão direitos com todos) a considerarão, embora não conste explicitamente do texto. Assim envio a você a cópia assinada, descontarei o cheque, certa de que o livro se manterá dentro de sua língua ‘brasileira’.”


“(...) Estou sentindo muita dificuldade com minha novela: é a primeira de que eu falei para os outros, e é a primeira cujo final eu já sei como é. Há ainda o espectro de A paixão segundo G.H.: depois desse livro tenho a impressão desagradável de que esperam de mim coisa melhor. Mas estou lutando contra esse limiar de depressão procurando um jeito melhor de trabalhar (...) Quanto a mim mesma, estou apaixonada e a pessoa em questão simplesmente me disse, com outras palavras é claro, que ele não me quer. Mas a dor não está sendo grande.”


“Estive na Bahia para entrevistar três pessoas (Jorge Amado, o tapeceiro Genaro — não ganhei nenhum tapete... e o escultor Mário Cravo) e adorei Salvador. Foram três dias e meio de sonho e agora só penso em voltar para lá e quem sabe, passar um mês trabalhando lá mesmo. Eu fui a convite do governador da Bahia que pôs à minha disposição um carro e um chofer, de modo que pude ver e sentir mil vezes mais do que se passasse tempo andando e procurando ruas. Nunca comi tanto azeite de dendê na minha vida.”


“(...) A chamada ‘angústia existencial’ despertou em mim muito cedo. E muito cedo eu descobri a morte. Mas não se preocupe: estou muito mais apaziguada e, agora, habituada com o meu sempre inesperado modo de ser. E eu rezo muito. Nem peço favores: é mais um louvor a Deus. Acontece, também, que eu não sabia que era artista e sofria com a diferença entre mim e os outros. Agora estou mais livre, tenho amigos, e também a capacidade de ficar só sem sofrimento.”


“(...) As crônicas do Jornal do Brasil não me preocupam porque tenho um punhado delas, é só escolher uma e pronto. Além do mais eu pretendo me ‘plagiar’: publicar coisas do livro A legião estrangeira, livro que quase não foi vendido porque saiu quase ao mesmo tempo que o romance, e preferiram este. Talvez eu receba em breve um pequeno aumento do jornal. (...) Fui despedida do Jornal do Brasil e preciso de dinheiro. Foi sem aviso prévio, uma devolução das crônicas de janeiro que eu mandava antecipadamente e uma carta que nem sequer agradece os serviços prestados durante quase sete anos. Estou sem mercado de trabalho, e no Rio o único jornal é o Jornal do Brasil, fora O Globo. Mas tem uma vantagem nisso tudo: deixo pelo menos temporariamente de escrever essas malditas crônicas que me prendiam e me tiravam a liberdade. E eu quero mesmo é liberdade.”


Presentes no livro “Todas as cartas” (Rocco, 2020), de Clarice Lispector, páginas 786, 780, 778-779, 763, 781, 732-733, 735-736, 752-753, 776 e 758+771-772, respectivamente.

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