Clarice Lispector (foto daqui)
“(...) A verdade é que a pessoa só faz o que quer, mesmo quando o que quer vem contrariar seus próprios interesses mais profundos.”
“(...) Você está precisando falar. De dizer. Sei que é difícil porque não é fácil encontrar uma pessoa que ouça, sem que, por ter laços de emoção, se envolva e, com isso, termine prejudicando a própria pessoa que fala. (...) Peço a você que não recuse a ajuda que existe no mundo — a ajuda de uma pessoa a outra. A ajuda de ouvidos inteligentes. (...) Sei que santo de casa não faz milagre, e que minha experiência não chega a ter valor para você por se tratar de minha experiência (não há nada de ofensivo para mim nisso, isso acontece de um modo geral com todos). (...) Sei que sua atitude é em geral negativa quanto a médicos; por motivos que desconheço, você não tem muita fé na natureza humana e na bondade dos outros. Mas pense no assunto de um modo positivo. Pense que ninguém é uma fortaleza, que nós todos somos apenas humanos e nos ajudamos, pense que não existe uma só pessoa no mundo que não tenha pelo menos uma vez (...) necessidade de chorar.”
“(...) Nasci com alguma capacidade de gaguejar impressões — então por que não resolvi, em vez, fazer uma espécie de diário íntimo, trechos soltos, sem consequência? Não me surpreende que a moça ou senhora, a quem você emprestou O lustre, não queira traduzir. O que escrevo fica sempre umas cinco etapas antes da etapa em que poderia ser chamado de romance. São mais impressões mesmo. — Mas quando penso em parar totalmente de escrever, de nunca mais tentar, me ocorre também um pensamento completamente extraliterário, um pouco doloroso: é o de que eu perderia os poucos amigos que tenho.”
“(...) nunca entendi direito minhas relações com determinadas pessoas. Parece sempre se tratar de um engano de identidade, as pessoas me tomam por outra, e parece que não só esperam que eu assuma o papel dessa outra, como se queixam comigo quando eu não ajo como essa ‘outra’. Sei lá. É muito angustiante não ter sequer uma teoria para explicar...”
“Parece qualidade fora de moda, essa de um livro ‘prender’. Acho qualidade essencial, invejável. Livro realizado é livro que não se quer largar. A impressão visual que tenho dele é de linhas retas e finas se entrecruzando e se cortando. A primeira pausa, a primeira mesmo, vem exatamente e apenas no fim. E foi tão bonito — enfim, enfim a grande pausa. E minha impressão visual – sei que vai lhe parecer banalidade — mas foi de luz. Amém, Fernando [Sabino], amém. Para nós todos. Nunca me senti tanto pertencendo a uma ‘geração’. Pela primeira vez, talvez, senti a palavra geração em outro sentido. E veja, Fernando, que isso veio de algo mais, no seu livro, do que de fatos e ambientes. Vem de algo mais, de alguma coisa essencial que você pegou, e que me deu a certeza de um encontro marcado, e a esperança.”
“(...) Não houve afastamento no sentido de menos amizade. Acreditem-me que eu quase não escrevo mais cartas. Até para casa escrevo menos, não tão seguido como antes. E não mantenho mais correspondência com ninguém. Mas você tem razão, houve provavelmente alguma coisa mais. É que aos poucos mudei. Não posso dizer nem para melhor nem para pior. (...) Moralmente estou mais cínica, menos crente, mais resignada, menos amada e amando menos. Tudo isso às vezes sem causa aparente, outras vezes provocado por fatos. Quero somente pedir a vocês dois que não tomem meu afastamento aparente como profundo, e nem o tomem como coisa de relação pessoal com vocês, mas sim como coisa geral e pessoal minha.”
“(...) sou pessoa reservada que não fala das próprias dores e detesta sobrecarregar os outros; e, fisicamente, sou inquieta e ativa, e não tenho sequer a paciência de esperar que alguém me ajude a carregar um peso, a pegar malas, a arrastar um móvel.”
“(...) Recebi sim, ‘Duas águas’ [de João Cabral de Melo Neto, lançado em 1956]. Li duas vezes, em ocasiões diferentes. Das duas vezes, com admiração integral, com respeito, com alegria, com esse espanto surpresa que tenho diante de quem milagrosamente acha a palavra certa. Acha, não: de quem inventa a palavra certa, de quem nasceu com a possibilidade de descobrir a única palavra certa. Depois, a limpeza da construção. Não há um fio solto na sua poesia. Tão perfeita como uma mão, ou, se você quiser, u’a mão. Mão com cinco dedos. Saio de sua poesia com um sentimento de aprofundamento de vida, com o espanto de não ter podido ‘ver’ antes, de ter precisado que você dissesse para que eu pudesse ver. Ao mesmo tempo ‘reconheço’ o que você diz. Este meu ‘reconhecer’, quando leio você, é a minha contribuição à sua poesia. Sou grata a você pelo fato de eu ler com tanta participação o que você escreve. Porque, de novo e evidentemente, a razão de eu poder ‘contribuir’ tão bem com minha leitura, a razão está na sua própria poesia. Tenho até aflição com o modo como você é perfeito, no sentido de não sucumbir a nenhum relaxamento, de não ceder a nenhuma palavra inútil, na sua falta de sentimentalismo — você não enfeita nenhuma emoção.”
“Embora tenha nascido enquanto minha família estava em trânsito da Ucrânia para o Brasil, sou cidadã brasileira e foi brasileira toda minha criação e educação formal. Ficaria grata se enfatizasse este fato em lugar de meu local de nascimento”
“(...) Eu não sabia que você [Rubem Braga] tinha lido ou estava lendo meus contos, e quando você gosta do que escrevo me sinto muito compensada, até com ânimo de reiniciar agudamente a escrever. Só que estou como sempre cheia de intenções apenas vagas que não levantam voo, e parecem uma dessas ventanias de primavera que a gente pensa que vão sacudir árvores, mas servem apenas para levantar folha do chão. Não é preciso acrescentar que esta minha linda imagem é produto direto do fato de estar em primavera que, como sempre, me deixa cheia de esperança, desconsolo e aflição feliz. Enfim, esperarei pelo verão que é mais positivo.”
Presentes no livro “Todas as cartas” (Rocco, 2020), de Clarice Lispector, páginas 725, 613 a 615, 638-639, 688, 595, 650, 724, 637-638, 679 e 631, respectivamente.
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