Ana Martins Marques (foto daqui)
História
Ana Martins Marques
Tenho 39 anos.
Meus dentes têm cerca de 7 anos a menos.
Meus seios têm cerca de 12 anos a menos.
Bem mais recentes são meus cabelos
e minhas unhas.
Pela manhã como um pão.
Ele tem uma história de 2 dias.
Ao sair do meu apartamento,
que tem cerca de 40 anos,
vestindo uma calça jeans de 4 anos
e uma camiseta de não mais do que 3,
troco com meu vizinho
palavras de cerca de 800 anos
e piso sem querer numa poça
com 2 horas de história
desfazendo uma imagem
que viveu
alguns segundos.
Belo Horizonte, 7 de novembro de 2016.
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Parte alguma
Ana Martins Marques
Não te enganes: viajar é aborrecido.
Num ponto, ao menos, todos os lugares
se parecem: neles já se passou
algo terrível.
As viagens cansam
e são tristes.
Viajando apenas constatamos
a repetição tediosa do que existe.
Pois para onde quer que compremos passagem
levamos a nós mesmos na bagagem.
Viajar é conduzir o corpo
— esse comboio imundo —
a um estéril atrito com o mundo
e depois passar o dia inteiro
usando a língua como quem usa dinheiro.
Nem a página em branco dos desertos
nem as savanas e sua promessa de aventura
substituem uma hora de leitura.
Mesmo as longas praias e as montanhas
mesmo os sítios inflacionados de história
mesmo as pirâmides os oráculos a arte
e o lugar preciso para se ver
do melhor ângulo
o sol se pôr como se põe em toda parte
serão depois riscados da memória.
Mais vale afinal ficar em casa
se é que se tem uma
e enviar-te este postal
de parte alguma.
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Lembrete
Ana Martins Marques
Lembrar que
enquanto andamos
por estas ruas banais
sob um céu inestrelado
templos brancos como ossos
repousam entre oliveiras
quase igualmente antigas
uma mulher desfaz
sobre a nudez noturna
sua trança pesada
um pequeno lama
cabeceia de sono
e há leões e laranjas
falcões e hangares
anêmonas e zinco
um bando de antílopes
atravessa um pedaço de terra
como este
deixando-o depois
vazio de sinais
em silêncio um homem prepara
menos comida do que ontem
um a um
partem os barcos
de passeio
chove intensamente
sobre teleféricos
uma mulher vê
a cidade acender-se
à medida que anoitece
e para acalmar-se
conta as janelas
iluminadas
arrumam-se armários
roupas de pessoas mortas
envelhecem corpos jovens
envelhecem também
os automóveis
e as máquinas agrícolas
com uma rede veloz
recolhem-se do mar
peixes luminosos
que então serão deixados
afogando-se
na areia
alguém conhece
pela primeira vez
a enguia, o sexo, a escrita
pensar que devemos estar
à altura
disso
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Ana Martins Marques
Estamos todos reunidos
na praia da palavra infância
um barco é um nó no mar
dormem tarde nesta época
as luzes do dia
estamos todos reunidos em torno
do seu lento apagamento
o mar devolve espumando
o que comeu
sob sua superfície brilhante
pastam peixes coloridos
anêmonas, pedras, corais
como sob a capa de um livro
estamos todos reunidos em torno
do ouriço da palavra ouriço
este ano você não veio
justo no primeiro ano da sua morte
você não deveria faltar
estamos todos reunidos em torno
da fogueira do seu nome
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Ana Martins Marques
É uma alegria haver línguas
que não entendo
delas foram varridas
as lembranças todas
nelas o sentido passa entre as palavras
como a luz entre as plantas
nelas é sempre a infância:
mar mãe manhã
nelas as núpcias de tudo
com tudo
se celebram
nelas não há
como na nossa
mortos por baixo
(ou antes há muitos
só não
os nossos)
nelas as palavras de amor
ainda crepitam
como madeira nova
ando nas ruas entre as pessoas
que cantam (parece-me que cantam)
nessa língua que não entendo
parece-me que expressam claramente
a vida e a morte próprias
e dos outros
ou que apenas gorjeiam
sibilam, silvam
ando nas ruas e é como
um piano preparado
cheio de agitação
e de barulhos novos
ando nas ruas e é como se lesse
às pressas
cartas em chamas
ando nas ruas pensando como é possível
tantas pessoas falando nada
em voz alta
quando me dirigem por equívoco a palavra
sorrio como se pedisse
desculpas
depois fico tentada a correr atrás daquela pessoa
e devolver-lhe a palavra que ela deixou
cair por descuido
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Ana Martins Marques
O que fazer agora
com as mãos
cegas?
o cigarro é parente
do lápis
eram, afinal, gestos para nada
como na dança
(e fico à espera de alguém que coreografe o ato
de acender um cigarro numa praia cheia de vento)
as cariátides
as gárgulas
seriam mais felizes
se fumassem
só amamos de fato
o que serve para nada
mas as mãos mais do que nós
sabem o que fazem —
são desde cedo adestradas
no adeus
só sinto falta de fabricar
minha própria nuvem
e de esperar-te em alguma esquina
fumando em pé
como um farol
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Um café com a Medusa
Ana Martins Marques
Tudo o que com os olhos toco
ela diz
transformo em pedra
mas tudo é já
desde sempre pedra
pó futuro
seus pais eram filhos do mar e da terra
cetáceos de um mundo arcaico
informe ainda
mas ela é mortal
destinada, como nós, ao pó
Ovídio diz ter sido justo e merecido
o castigo que lhe impingiu Atenas
transformando seus cabelos em serpentes
porque ela se deitara com Poseidon
são desde sempre as mulheres, ela diz,
condenadas pelo que fazem no leito
desde sempre amputadas
de suas terríveis cabeças
mas hoje estamos velhas
ela e eu
cansadas de refletir o tempo
como um escudo
só queremos tomar nosso café
cada serpente que lhe adorna a cabeça
fala em outra língua
e a traduz
mas na realidade
falamos pouco
enquanto olhamos o porto
e ela ajeita as asas
na cadeira
cúmplices
ela e eu
(embora eu evite
confesso
olhá-la nos olhos)
tomamos nosso café quase
em silêncio
ela diz que agora sonha apenas com o mar
que seus cabelos são algas e não serpentes
e que dançam lentamente no fundo de um oceano
cheio de monstros, como são os oceanos,
lagostas enormes e águas-vivas
e outras incongruências marinhas
corais e conchas que são
como estojos
e baleias que vivem até duzentos anos
o que para ela é nada, alguns segundos
como de fato é
e rimos as duas
que duas velhas sonhem ainda
e sempre o sexo
é talvez o que há no desejo de mais cruel
quando nele há tanto de cruel:
que ele dure, continue
e às vezes seja só desejo
do desejo
e seja móvel e mesmo
como o mar
aos que não têm mais pátria
seja porque se exilaram
seja porque o país se exilou de nós
e toma a forma dos nossos pesadelos
seja porque na realidade não há países
mas extensões variáveis de terra
que as nuvens sem passaporte
atravessam
resta só a memória do mar
ela diz
batendo inutilmente
o mar e o café
ela diz
e, a cada qual,
suas serpentes
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Ana Martins Marques
À mesa
onde também se come
senta e escreve
Gostas da mesa
por sua memória de árvore
porque antes de ser mesa
viveu a vida da floresta
Porque poderia ter sido casa
ou piano
ou caixão
e guarda também
a memória daquilo de que não foi matéria
Ou poderia ainda ter sido fogueira
em lugar de apenas arder em silêncio
sob o papel
que também foi madeira
também tem o dom de queimar
Escreve poemas:
devolve
o papel à árvore
Ou ao menos tenta:
senta
Presentes no livro de poemas “Risque esta palavra” (Companhia das Letras, 2021), de Ana Martins Marques, páginas 22, 56-57, 35-37, 19-20, 66-68, 95-96, 41-44 e 85-86, respectivamente.
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