Um homem ri
Ferreira Gullar
Ele ria da cintura para cima. Abaixo
da cintura, atrás, sua mão
furtiva
inspecionava na roupa
Na frente e sobretudo no rosto, ele ria,
expelia um clarão, um sumo
servil
feito uma flor carnívora se esforça na beleza da corola
na doçura do mel
Atrás dessa auréola, saindo
dela feito um galho, descia o braço
com a mão e os dedos
e à altura das nádegas trabalhavam
no brim azul das calças
(como um animal no campo na primavera
visto de longe, mas
visto de perto, o focinho, sinistro,
de calor e osso, come o capim do chão)
O homem lançava o riso como o polvo lança a sua tinta e foge
Mas a mão buscava o cós da cueca
talvez desabotoada
um calombo que coçava
uma pulga sob a roupa
qualquer coisa que fazia a vida pior
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Recado
Ferreira Gullar
Os dias, os canteiros,
deram agora para morrer como nos museus
em crepúsculos de convalescença e verniz
a ferrugem substituída ao pólen vivo.
São frutas de parafina
pintadas de amarelo e afinadas
na perspectiva de febre que mente a morte.
Ao responsável por isso,
quem quer que seja,
mando dizer que tenho um sexo
e um nome que é mais que um púcaro de fogo:
meu corpo multiplicado em fachos.
Às mortes que me preparam e me servem
na bandeja
sobrevivo,
que a minha eu mesmo a faço, sobre a carne da perna,
certo,
como abro as páginas de um livro
— e obrigo o tempo a ser verdade
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Escrito
Ferreira Gullar
A prata é um vegetal como a alface.
Primaveril, frutifica em setembro.
É branca, dúctil, dócil (como diz a Lucy)
e, em março, venenosa.
O cobre é um metal que se extrai da flor do fumo.
Tem o azul do açúcar.
É turvo, doce e disfarçado.
O ouro é híbrido — flor e alfabeto.
Osso de mito, quando oiro é teia de abelha.
A precisão do maduro. Dele se fabricam a urina e a velhice.
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Ocorrência
Ferreira Gullar
Aí o homem sério entrou e disse: bom dia
Aí o outro homem sério respondeu: bom dia
Aí a mulher séria respondeu: bom dia
Aí a menininha no chão respondeu: bom dia
Aí todos riram de uma vez
Menos as duas cadeiras, a mesa, o jarro, as flores, as paredes,
o relógio, a lâmpada, o retrato, os livros, o mata-borrão, os
sapatos, as gravatas, as camisas, os lenços
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Pele que só se curte a blasfêmias
Ferreira Gullar
Na escritura das flores
não há uma só palavra decifrável
nome de amigo, nome de anjo algum
ali se pronuncia
O metal é escuro,
a ave solar
deixa seu rastro no relógio de pedra de Intihuatana,
mas a carne do homem foi o seu pouso diário
e mesmo
seu pasto
O penacho que orna a cabeça de Osíris,
de flores feitas,
avança, quando ele vem,
sobre uma população sem rosto.
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Oswald morto
Ferreira Gullar
Enterraram ontem em São Paulo
um anjo antropófago
de asas de folha de bananeira
(mais um nome que se mistura à nossa vegetação tropical)
As escolas e as usinas paulistas
não se detiveram
para olhar o corpo do poeta que anunciara a civilização do ócio
Quanto mais pressa mais vagar
O lenço em que pela última vez
assoou o nariz
era uma bandeira nacional
NOTA:
Fez sol o dia inteiro em Ipanema
Oswald de Andrade ajudou o crepúsculo
hoje domingo 24 de outubro de 1954
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Vida,
Ferreira Gullar
a minha, a tua,
eu poderia dizê-la em duas
ou três palavras ou mesmo
numa
corpo
sem falar das amplas
horas iluminadas,
das exceções, das depressões
das missões,
dos canteiros destroçados feito a boca
que disse a esperança
fogo
sem adjetivar a pele
que rodeia a carne
os últimos verões que vivemos
a camisa de hidrogênio
com que a morte copula
(ou a ti, março, rasgado
no esqueleto dos santos)
Poderia escrever na pedra
meu nome
gullar
mas eu não sou uma data nem
uma trave no quadrante solar
Eu escrevo
facho
nos lábios da poeira
lepra
vertigem
cona
qualquer palavra que disfarça
e mostra o corpo esmerilado do tempo
câncer
vento
laranjal
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Junto ao mar
Ferreira Gullar
Jardim junto ao mar. O luto
gorjeia na incendiada
alfombra na sombra. Oferenda
a um morto sepulto ali;
veraz, sob um mar de rosas,
ressona — mancha de tempo,
nome caído — o morto
que os esplendores sufocam.
E seja este morto o sol
prisioneiro das raízes,
touro negro com seus chifres
por uma cruz traspassado.
Um touro vindo da festa,
erguido nos estilhaços
dessas coroas da morte
na tarde que mina o mar.
Um touro vindo do mar
que as setas do mar trouxera,
negro rei da primavera
que bufa mente rumina.
Abre os olhos — murcharão.
Acende o riso — vacila.
Bicho perdido na flora.
Roleta. Constelação.
Baralho. Pão. Borboleta.
Jogadores na folhagem.
O verde ensombrece a vista,
mostra as condecorações.
Marulha o jardim. Das ervas,
explode um pulmão azul.
Vem o pássaro emissário
que liga o mar ao jardim.
Que fia com o bico as letras,
as engrenagens de vidro,
a íris virente, a sombra
que o bicho largou na lama.
À noite o boi se levanta.
Nos chifres conduz as flores
para o mar. Volta e se deita,
E fica escutando o mar.
Ou seja, esse morto o moço
que, moço, sabe que o mar
aciona as flores de todos
os jardins particulares —
as flores que dão no lar,
nas jarras, nas mãos fabris,
que vão da loja de flores
à janela do meu bem.
Que seja esse touro o moço
que move as pedras da dama
o preto e branco das horas.
Que vence mas que está morto.
Que, morto, a lua o espera
pousada na sua estante
(cheia de aves empalhadas)
e paciente. Preto. Branco.
O moço, morto, que ouve,
o mar, lilás, no jardim.
Que se perdeu das palavras
mas sabe uma flor na boca.
Velho jardim mortuário.
Orelhas do pó. Arame.
Papel de cor. Flora falsa.
Almoço de Satanás
(ao meio-dia, no sótão,
um touro como essas flores.
Touro branco e a velha caixa
de chapéus que é seu jardim.
Ah, os chapéus! onde estão?
que touro os comeu? e a moça?
que touro comeu a moça,
sobrinha da tia dela?)
O vento estremece as flores
no lábio do mês. Abril.
Qual será na grama a data
deste festim belo e triste?
Que morte se comemora?
Que deus se enterra esta tarde
em Ipanema? Que morto
vaza seu corpo no mar?
Mais alto ergue o mar os seus
ramos de pedra fugaz.
Como o canto que se perde
é a agitação colorida
das verduras, o sagrado
cruzar de espadas vermelhas
e negras. Rei de Paus. Valete.
A Dama sacode a fronte
coroada de açucenas,
seus lutuosos cabelos
sua túnica em quadrados
preto e branco. Amor e morte.
“O vil metal” está incluído em “Toda poesia” (Companhia das Letras, 2021), de Ferreira Gullar, donde esses poemas foram peneirados, páginas 91, 97, 86, 87, 99, 88, 101-102 e 94-97, respectivamente.
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