Vitor Andrade (foto: Amanda Tropicana)
daquele beijo no rio vermelho
Vitor Andrade
Eu te amo neste
exato
recorte
de tempo
Entre o ontem e o nada
Mesmo que digam
Que eu não posso
Que eu não devo
Eu te amo neste exato momento
Neste mesmo instante
Deste beijo
Destes olhos fechados
E tudo parado ao redor
Nada acontece
Além disso aqui
E agora
No momento em que eu te amo.
Eu te amo agora
Mesmo que amanhã eu
Acorde e não lembre
Mesmo no silêncio
Meu
no eu te amo
seu
No meio da rua
Na multidão alucinada
De fevereiro.
Eu te amo inteiro
Neste exato momento entre
Tudo o que já foi
E todas as possibilidades
De esperança no futuro:
Outro corpo
Outro homem
Outro beijo...
Eu te amo
Nesse agora
que é
Eterno desejo
Mesmo agora
que eu
Já vejo
outro caminho.
--------
água
Vitor Andrade
No precipício do silêncio
Meu ouvido esteve atento
Ao romper da sua voz
embrulhada na seda fina
da saudade
do que aprendi ser
o mar oceânico
aberto pro mundo
de todas as possibilidades reais dessa habitual ausência.
Escrevo como quem reivindica
o direito de saber
pois também quisemos o silêncio
onde tudo era caos
e onde tudo era cais
atravessamos a nado
o caminho pras estrelas
que depois brinquei de contar
em seu corpo.
era noite
frio
o mar da Bahia sabia
de nós.
eu sabia
do mistério
atrás da voz
que tudo cala.
--------
preencho
Vitor Andrade
Há um fato posto
que eu escondi
ou fingi esconder:
é começo de agosto
e eu subestimei
a capacidade destrutiva
dos dias
sem você.
aposto no vinho barato
no caos de dentro
no porto em que
aporta o tempo
e me aquieto
na dança
dos dias
na força do vento
no que não temo
não me afogo
não negocio:
eu também
sou o meu vazio
--------
saída de emergência
Vitor Andrade
Ouvi uma vez
Que desde a invenção da roda
E a reconfiguração do movimento
Muito cresceu a partir daí
E, suponho, ir ficou urgente:
As estradas foram feitas
Com seus hotéis de beiras
Seus céus estrelados
No que o não-poeta beat
Chamou de maquinaria da noite.
Respondo a Kerouac:
Eu não sei qual é a Ursa Maior
Sou de constelações mais fáceis.
Desde a invenção da roda
Da possibilidade da curva
Anseio as viagens mudas
Dentro da noite
E cumpro, hoje, o que me prometi
Para o futuro:
Estou nu
Para o direito
ao absurdo.
--------
dois planetas
Vitor Andrade
Nós somos
Dois meninos
Dois silêncios
Que se gritam
Que se sabem
Duas partes que se cabem
Eu não digo não
Não procuro o chão
Se a proposta é voar.
E somos dois planetas,
Mil cidades
Mil saudades
Uma dança no infinito
Um passeio pelo céu desse verão.
Eu sou teu endereço
Quando viro pelo avesso
Trago a alma para fora
Qualquer hora vale o beijo
E essa rima para o desejo
Atrapalha qualquer plano:
Tranca o quarto
Tiro a roupa —
Eu procuro o chão
Já é hora de voar.
--------
tempestade
Vitor Andrade
vou comprando livros que não leio
sonhando o que se distancia
gritando sonos que não durmo
caio exausto sobre tudo
canso em colos
que não suportam
o peso
do que sou.
não sei o final
mas sentencio
novo rumo
e decreto:
não retenho mais nada do que tenho
pois sou água
pois sou grito
pois sou muito
pois sou vento
pois sou tudo.
--------
sábado
Vitor Andrade
Não desdenho do fogo
que nos arde
e queima a sala
e faz brasa tudo à volta.
Quando inclino
ao formato exato
de sua dança,
deixo que queime
se tua mão me alcança
e fico firme frente ao fato
que é o sexo
o ponto nato,
a liga,
a origem
e o destino.
Ao som do disco
sei de cor o sabor
do que expele...
“bate é na
memória
da minha pele”.
Respiros,
dentes,
tremores,
chegamos ao
ponto final:
sob o tapete
o silêncio
é carnaval.
--------
“virá que eu vi”
Vitor Andrade
Virá da direção improvável
Do acaso
Do silêncio.
Virá de onde não sei
De onde não vi
Porque desacostumei a olhar
Virá pelo tempo
Pelo cansaço
Pela surpresa
Numa manhã qualquer
Talvez quinta-feira
Porque eu gosto
Talvez sexta
Porque eu danço
Talvez sábado
Porque eu limpo a casa
Talvez domingo
Porque eu durmo
Talvez segunda
Porque eu bebo
Talvez terça
Porque eu fumo
Talvez quarta
Porque nada
Vem.
--------
4h56
Vitor Andrade
gosto do cheiro da tarde
quando sol invade a casa e às quatro e cinquenta e seis meus gestos viciados
reverberam aqui.
gosto também do jeito da noite
meu olho vira
outra cor
minha cabeça pensa n’outras juras.
recorro à poesia
que dizia
que o amor
tem dessas fúrias.
--------
línguas
Vitor Andrade
A poesia
Caiu sobre essa tarde
E você não viu.
Seus olhos vendados
Meus olhos abertos
Os mil idiomas
Que nos separam
O correr das horas
A mudança do tempo
Os livros não lidos:
Sobre tudo habita o
nosso mistério indecifrável
E sucumbo
Ao que não tento.
Inventei um novo alfabeto
Pra te dizer o que penso
Presentes no livro de poemas “Todo dia o silêncio do mundo repousa em mim” (P55, 2024), de Vitor Andrade, páginas 16-17, 25, 49, 29, 45, 24, 33, 23, 22 e 32, respectivamente.
Comentários