Quinze passagens do livro de memórias Na pior em Berlim, Londres e Salvador: Uma aventura bipolar no inferno, de Joana Rizério
Joana Rizério
“O tempo opera milagres em sua infinita majestade. Só isso explica alguém com a minha dramática biografia completar quase uma década desde o primeiro surto com o peito explodindo de felicidade. É que, como disse Elza Soares em uma antiga entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura, chega uma hora em que cada porrada é como se fosse um beijo. Qualquer degrau ajuda aquele que tenta enxergar luz lá do fundo do poço.”
“(...) Eu não pensava em mais nada, só em um meio de atrair a atenção dos jornalistas e da chefia. Desci do táxi parado em frente à portaria, onde passei sem apresentar nada, já que os porteiros se lembravam de mim. (...) A redação que eu encontrei tinha aquela aura de pressa típica de um fechamento, em que ninguém presta atenção a nada, fora à própria tarefa de fechar uma matéria ou editar — revisar, fazer o título e a linha fina ou subtítulo. Bati palmas e comecei um discurso desconexo sobre crise ambiental. Vi uma pilha de exemplares dentro do plástico e comecei a chorar, gritando: ‘É disso que estou falando! Puta que pariu, que insensibilidade!’. (...) Todos os olhos estavam voltados a mim, mas os masculinos, certamente avaliando minha roupa — que era mesmo curta — me incomodaram profundamente. Percorri com os olhos cada mesa em busca de um amigo, que ora chamo de Fulano e que trabalhava ali. Ele nunca me olharia daquele jeito e certamente me defenderia até de mim mesma. Do nada gritei: ‘Preferia dar para Fulano do que para qualquer um de vocês!’ (...) minha sanidade estava de férias no Caribe. Mas tinha mais. ‘Essa verdinha é para vocês aprenderem a respeitar a natureza’, falei, sacando do bolso um baseado que levei até a boca e acendi. Nesse momento, aqueles que foram meus colegas outrora me levaram para o estacionamento. (...) A falta de interesse que devotaram à minha retórica quase ininteligível sobre o bendito saco plástico que envolvia o tabloide do finado Antônio Carlos Magalhães, o coronel da Bahia, fez-me ficar com raiva da empresa. (...) Essa aparição em surto no jornal me custaria quase tudo, viraria uma enorme chaga em meu currículo profissional que me fecharia quase todas as portas do jornalismo em Salvador, e eu ainda não sabia. Eu tinha ficado louca, sentenciariam meus colegas. Aquele era um caminho sem volta — uma vez louca, louca eternamente, pensam até hoje — e ninguém me queria mais por perto, independentemente da qualidade que outrora reconheceram no meu trabalho.”
“Quando chegaram pertinho de mim, um deles falou: ‘Vamos, Joaninha, é para seu bem!’. ‘Joaninha’, como assim? Por que esse homem sabe meu nome? Antes que eu pudesse encontrar qualquer resposta, prenderam-me com um mata leão e me colocaram no fundo de um carro. Na hora, eu não entendi a relação deles com a presença de meus pais. Eu só sabia que estava sendo sequestrada em plena luz do dia.
Fui, por todo o longo caminho até o desconhecido destino, suando por lutar com os outros sujeitos que, sem qualquer traquejo, seguravam-me à força na parte de trás do carro. Até hoje, oito anos depois, eu não entendo o porquê dessa escolha pela violência em nome de um internamento forçado.
É claro que eu era uma paciente difícil, que preferia a praia a uma consulta com um médico e que protagonizara um vexame diante de colegas de profissão, mas a dificuldade acabava ali. Não agredia ninguém, nem atentava contra minha vida. Pra que mandar quatro homens segurarem um ser humano de 50 quilos?”
“Nunca vou me esquecer do primeiro dia, quando pedi para beber água. Não vi bebedouros por perto e perguntei a uma interna como é que se fazia para matar a sede. ‘Só tem água da torneira’, sentenciou ela. Eu jamais me acostumaria a beber dessa água: só imaginava que, em meio a tanta sujeira, a caixa d’água do lugar seria um núcleo de zoonoses e abrigo de bichos mortos, como pássaros e ratos.
Para piorar, eles cortavam a água deliberadamente por até três dias. Eu testemunhei isso acontecer quatro vezes. Uma vez, até a água para beber precisou ser racionada. As internas que cuidavam da cozinha organizavam uma fila e enchiam nossos copos até a metade. Nessas horas, eu tinha vontade de rir da nossa miséria e me perguntava que tratamento era aquele — queriam enlouquecer as pessoas que estavam ali confinadas? Encostava perto de onde estava Ilza, acendia um cigarro e matava a sede na saliva.
Fiz amizade com uma garota meio brasileira, meio americana, e bipolar como eu. Eu não imaginava, mas ela já tinha sofrido o pior dos abusos ali dentro. Durante uma insônia, ela saiu do quarto para fumar perto de um homem que vigiava os dormitórios. Quando ficaram a sós, ele a derrubou no chão de cimento e a estuprou. Ela foi coagida a não contar nem para família, nem para polícia, e tudo o que fizeram foi dispensar o homem do serviço.”
“Meses mais tarde, eu descobriria que minha família comprara gato por lebre: contrataram o serviço de uma clínica com ares de spa, mas tudo não passava de propaganda enganosa. Na realidade, a promessa de clínica de alto nível entregava um ambiente totalmente diferente: hostil, perigoso, sujo, precário, enlouquecedor e até criminoso. (...) Algumas internas de melhor comportamento eram escaladas para auxiliar no funcionamento do lugar. (...) Com o tempo, eu perceberia que a intenção dos donos do centro, ao delegar funções aos pacientes, era economizar na contratação de pessoal, claro. O problema é que escalavam essas pessoas para realizar funções de alta responsabilidade, como separar medicamentos para os outros internados. (...) a fila para tomar medicação parecia o balcão de uma lanchonete. ‘Me dá mais 30 gotas de Rivotril’, pedia uma paciente, que tinha seu pedido atendido independentemente de possuir prescrição médica. Ironicamente, o interno que cuidou da farmácia nas minhas primeiras semanas havia chegado à clínica por abusar de medicamentos.”
“Éramos muitas em um ambiente pequeno demais. Os lugares para se sentar à sombra eram disputados, e eu passava um tempão sob um sol de quase verão. Na visita, um mês depois da minha chegada, minha mãe elogiou meu bronzeado. ‘A piscina deve ser ótima!’, disse. Tentei explicar que não ganhei aquela cor por querer, e ela mudou de assunto. Ela não buscava motivos para me tirar dali, pelo contrário: parecia fingir que não havia me encerrado em um verdadeiro campo de concentração evangélico.
Um dia, uma das internas viu que eu deixei um pouco de cuscuz no prato e pediu para comer. Todo mundo estava sempre esfomeado naquele lugar, que oferecia comida de modo insuficiente. Quando terminavam de servir o café, começava uma nova gritaria. ‘Espiritualidade! Espiritualidade!’ Era a hora do culto evangélico, que acontecia duas vezes por dia.
Todo mundo era obrigado a participar desse martírio, sob pena de perder o telefonema com a família. Era uma hora do mais puro horror neopentecostal, temperado pelas ideias do Velho Testamento e por uma sessão de músicas gospel que Deus nos livre. Eles diziam que aquele culto era aberto a todas as religiões, mas bastava alguém falar em umbanda ou candomblé que quase todas se benziam, com repulsa.”
“Certo dia, minha irmã gêmea pediu para falar ao telefone comigo, e me chamaram. ‘Você aceita que eu faça um trabalho para você?’, perguntou ela. Trabalho era mais um nome para macumba, um disfarce por causa dos tempos em que a polícia perseguia as religiões de origem africana durante séculos na Bahia. Tanto eu quanto ela somos do candomblé: claro que eu aceitei.
Chegou o dia de visitas e ela me entregou um envelope pardo: ‘Aqui dentro tem um espelho virgem. Se olhe e guarde-o de novo para me devolver depois’, ordenou Como eu estava feia. Nunca tinha visto meus olhos, sempre tão vivos, completamente vazios de brilho. Aquele sorriso escancarado que era a minha marca deu saudade em mim.
Entreguei a ela o envelope do espelho, e ela me deu uma boina branca e outra vermelha. ‘Ninguém usou, coloque na cabeça e me devolva’, ouvi e cumpri a ordem. Eu nunca soube detalhes de como seria essa macumba, se tinha oferenda, por exemplo. Nosso laço de parentesco tão próximo a autorizava a fazer essas coisas quando eu estava impossibilitada.
No dia seguinte, depois de 27 dias internada, com uma imensa lista de remédios, a médica me deu alta. Pensei que era obra dos orixás, e nunca me convenci do contrário. Virei devota da religião de uma vez por todas. Descobriria, anos depois, que tenho Oxaguiã de frente. Não é raro — soube depois — que filhos desse orixá tenham jornadas de vida conturbadas como a minha.”
“Conduziram-me até uma sala, onde fiquei sozinha até uma médica chegar. Só que ela não me perguntou nada: apenas me mandou deitar e chamou os enfermeiros, que já entraram me segurando, mesmo eu tendo dito que colaboraria. Que espécie de triagem médica dispensa uma avaliação do paciente e só segue o que foi relatado pela família? Levei, nas nádegas, uma ampola de Haloperidol, o chamado ‘sossega leão’, e apaguei.
A próxima coisa de que me lembro é de acordar amarrada a uma cama. Haviam colocado uma fralda geriátrica em mim e vestido meu biquíni por cima. Quem fez isso? Quem me viu nua? Jamais saberei. Gritei para as pessoas que estavam em pé naquela sala: ‘Alguém me desamarra, pelo amor de Deus’. Desataram-me e eu fui ao banheiro tirar aquela fralda enorme. Ao meu lado, no quarto, havia duas meninas. Uma delas tinha um enorme corte no braço, que ninguém havia suturado.”
“Mas eu não queria ir à polícia. Por quê? Porque toda polícia é escrota, exceto a do Reino Unido, que não usa armas de fogo. Nem a Escandinávia se salva. Uma amiga espanhola viajou para lá e foi parada no aeroporto. Revistaram ela e encontraram um pacote de tabaco que cheirava a maconha. Fizeram-na esperar horas e horas. No fim, quando foi liberada e chegou em casa, todos os seus eletrônicos haviam sumido. Fora roubada pela polícia da Dinamarca.
Em outra história, um amigo meu estava em Paris quando foi furtado. Ele seguiu até a polícia, contou tudo e sofreu um deboche inacreditável. ‘Ah é? Acho que você devia chamar a polícia, então’, disse o delegado antes de rir com os outros agentes. Eu mesma, quando estive em Paris, fui vítima deles. Passei de mãos dadas com um namorado francês na frente de uma dupla de policiais, e eles murmuraram algo que não entendi. Percebi meu namorado puto. Eles haviam dito: ‘Os peitos dela (meus) são tão grandes que não cabem na mão’, sem se importar que estávamos ouvindo.”
“(...) Salvo nos serviços em que fui repórter, eu nunca tinha sido mais feliz trabalhando do que nos pubs onde fui garçonete em Londres. Eu morria de saudade de todos, deixara vários amigos. Tom guardou minha mala e descemos a rua até o bar. (...) Foi pura emoção rever tanta gente querida. (...) Terry trabalhava como coveiro e, como quase todos os trabalhadores braçais, terminava o seu dia bebendo uma cerveja, outrora servida por mim com um baianíssimo sorriso no rosto, que cativava até o mais sério dos clientes. Ele bebia Guinness, cerveja tão encorpada que parece comida. Eu desenhava um trevo na espuma toda vez, e sempre conquistava generosas gorjetas. (...) O careca nazista também estava lá, igual fazia cinco anos antes. O cara bebia até esquecer o nome e começava a distribuir dinheiro entre os garçons. ‘Vá, o troco é seu’, dizia ele, ao comprar uma cerveja de três libras com uma nota de vinte. Diziam que ele fazia isso por remorso do que acontecera na guerra. Phil, meu chefe, tinha pena e mandava a gente recusar a gorjeta quando ele bebia tanto. Eu não recusava nada: se pudesse, faria o nazista ficar pobre tijolo a tijolo, dinheiro a dinheiro.”
“Claro que eu não fazia ideia de que eu corria algum perigo em Berlim. Estava em um mundo que acreditava ser civilizado, que me vendia — e a todo mundo — a ideia de ter atingido um nível de convívio social que excluía completamente a possibilidade de uma garota de pouco mais de um metro e meio levar uma solada no joelho de um idiota na rua, só porque levou um fora.”
“Eu já tinha trocado o pouso na casa da prima pelo apartamento de um amigo naquele dia em que acordei cedo para comprar café da manhã. Escolhi um saco de croissants mas, quando fui pagar, meu cartão estava bloqueado. O pouco dinheiro em espécie que eu levei acabara no dia anterior. Decepcionada, voltei sem as compras e liguei para o número destinado a clientes do banco fora do Brasil. Esperei por uma hora e, quando fui atendida, quase desmaiei de susto.
O cartão só poderia ser desbloqueado na agência de Frankfurt, cidade a horas dali. Como eu faria para viajar até lá se o cartão não funcionava? Nada limita mais nossa sensação de liberdade do que a falta de dinheiro. Lembrei-me de dois amigos que moravam nessa cidade. Pelas redes sociais, soube que o primeiro estava na África, em uma turnê com sua banda de música instrumental. Tentei o segundo e senti a sorte me abraçar pela primeira vez naquela viagem.”
“(...) eram todos irlandeses. Eu sempre achei esse povo fantástico, de coração puro, meio brigões, mas de nenhum modo desagradáveis. Salvo nos tensos torneios de futebol, sempre estavam em paz e só queriam aproveitar a noite com canecas de cerveja e algum bate-papo. Certamente, não expulsariam uma moça de casa durante a noite por escrever cartas com a melhor das intenções, feito ingleses como Tom. (...) Anos depois, um amigo me diria que a sociedade é capaz de aceitar até o casamento de um homem com um bode — desde que o homem tenha dinheiro no bolso. Se eu tivesse dinheiro no bolso, não precisaria da ajuda de ninguém: me hospedaria em qualquer hotel londrino e não daria satisfações sobre a quantidade de cerveja que fosse beber, nem sobre as cartas que quisesse mandar.”
“Caetano Veloso fez uma música linda chamada London, London, um atestado da destreza impecável do baiano com a língua inglesa, mas que é desconhecida pelos britânicos. Comecei a cantar a música dentro da viatura. Como já falei, a loucura adiciona ao espírito uma boa dose de autoestima e confiança, e minha voz saiu melhor do que nunca. Posso estar imaginando, mas pelo jeito que flagrei o policial do banco do carona coçar o olho, a linda letra de Caetano causou emoção. ‘Chegamos’, disse o motorista-policial.”
“Maconha tem um cheiro que é difícil de mascarar. O homem de dreadlocks no cabelo não fazia o menor esforço pra disfarçar: fumava maconha abertamente, nas dependências do pub. Aquela coragem que me fez passar a noite na casa de gente que não conhecia reapareceu e fui falar com ele. ‘Por favor, será que o senhor teria um pouquinho desse fumo pra me dar?’, perguntei.
Sem nenhuma palavra dizer, o cara meteu a mão esquerda no lado direito do colete e tirou um naco de fumo do tamanho de um kinder ovo. Depois abriu, dividiu e me deu uma metade. Era maconha suficiente pra fazer a cabeça de um batalhão. Antes de terminar o cigarro, eu já tinha cumprido metade da tarefa que julguei impossível. Agora, faltava conseguir entrar no hospital com aquilo.”
Presentes no livro de memórias “Na pior em Berlim, Londres e Salvador: Uma aventura bipolar no inferno” (Noir, 2023), de Joana Rizério, páginas 97, 68-69, 71, 90, 85-86, 89, 76-77, 84, 15-16, 30, 16, 21, 39, 55 e 62, respectivamente.
Aforismos de Joana Rizério em “Na pior em Berlim, Londres e Salvador”
“O Brasil só é excelente na produção de traumas de todo tipo”
“Só quem perdeu a liberdade por qualquer razão entende a importância de poder olhar para cima sem encontrar um teto no caminho até o céu”
“Sem conhecimento, só há espaço para violência e medo”
“O maior serviço social de quem sabe escrever é fazer reportagem”
“Como bilhetes de papel, escritos com carinho e sem maldade alguma, podem inspirar medo?”
“Todo mundo acredita que pode proibir, enjaular ou espancar uma pessoa bipolar”
Aforismos presentes no livro de memórias “Na pior em Berlim, Londres e Salvador: Uma aventura bipolar no inferno” (Noir, 2023), de Joana Rizério, páginas 97, 59, 66, 23, 35 e 99, respectivamente.
Comentários