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Quinze passagens do livro de contos Pepperoni, de Paulo Bono

Paulo Bono (foto: Vinicius Xavier)


“(...) Foram anos matando somente por dinheiro. Matando e morrendo por dentro. Mas agora finalmente eu havia encontrado meu propósito. Eu já havia escutado que eles também vendiam brownies com afeto, advocacia com afeto, limpa-fossa com afeto. Eu acompanharia a tendência e lançaria a execução com afeto. Não bastaria dinheiro nem qualquer motivação. Eu tinha que acreditar que o alvo merecia bater as botas. A depender do grau desse merecimento, eu ainda daria de boa vontade ao contratante um belo desconto. Era minha nova vida. Dez mil pra acabar um contador inescrupuloso. Não aceitei. Mas ele roubava a própria mãe. Fiz por 8 mil. Quinze mil adiantados por uma testemunha de homicídio. Nada feito. Mas era abusadora de idosos. Fiz com 30% de desconto. Doze mil por um empresário caloteiro. Eu preferia descansar. Mas batia em puta. Fiz por 7 mil mais despesas. Dez mil por um traficante playboyzinho do Itaigara. Esquece. Ele votou em Bolsonaro. Vivemos numa democracia, eu disse. Mas ele espancou meu amigo gay com lâmpadas de LED na noite em que Bolsonaro foi eleito. Resolvi com 40% de desconto. E outra vez me procuraram para liquidar um receptador de carros roubados de Feira de Santana. A proposta: 20 mil mais um Peugeot 2015. Dispensei no ato. Quando eu soube que o desgraçado não negociava com negros, liguei pro contratante e aceitei o serviço por 10 mil. Sem o Peugeot. Racistas, o desconto de 50% é automático. Não que os negros sejam santos. Já dei 15% de lambuja pra acabar com um publicitário preto que não contratava gordos pra sua firma. Minorias são iguais às maiorias. Só buscam um motivo para se sentir superiores. De qualquer forma, colei essa tabela sobre minha mesa. Racistas, 50%. Homofóbicos, 40%. Viados racistas, 45%. Estupradores e pedófilos, 60%. Coaches, militares e elitistas, 30%. Dirigir embriagado, 25%. Maus-tratos com cachorro, 70%. E pague um, mate dois para beatos de igreja que praticarem qualquer das alternativas acima. Quando bolei essa promoção, até lembrei do rapaz de coque. Pode não ser o melhor trabalho do mundo. Mas hoje durmo sem aquela sensação de vazio. E acredito estar ajudando de alguma forma a tornar o mundo melhor. Assim encontrei o meu propósito. Descontos para matar os piores tipos de gente. Bem-vindo ao capitalismo consciente.”


“(...) Pior que a angústia de não ter é a de não ser. Quem não tem uma BMW pode um dia ganhar na loteria e comprá-la à vista, se for o caso. E Rivaldo jogava toda semana. Impotência mesmo vem do não ser. Ele invejava o que não era e jamais seria. Rivaldo sentia inveja de quem só entrava num rio com um salto mortal. De quem dançava de olhos fechados como se não houvesse mais ninguém na discoteca. De quem sabia botar uma mochila nas costas e se perder por aí. De quem comprava no cartão e não pagava. De quem tinha a audácia de cuspir no futuro. Sentia inveja de quem incomodava e cagava pra isso. Era o que acontecia dentro do táxi. Ele sentia uma tremenda inveja daquele ronco. Rivaldo acordava com qualquer coisa. Invejava o sono dos injustos.”


          “— Deixa eu adivinhar, a calça é prum casamento.
          — Um amigo resolveu entrar nessa depois dos quarenta.
          — Sabe o que é? Falta de autoestima.
          — Não tinha pensado nisso.
          — E você? Já foi casado?
          — Já tive uma noiva. Mas aí teve um acidente e ela ficou manca.
          — Terminou porque a coitada ficou manca?
          — Não, ela me trocou pelo fisioterapeuta.
          — Moça esperta, já não pagava a consulta.”


“(...) Era como se dentro de mim existisse um deserto. Um vazio que se alastrava e tomava conta daquela cozinha em forma de tristeza. Não entendia o motivo. Eu havia concluído mais um serviço com sucesso, pagava minhas contas, havia trocado o carro e até conhecido os Lençóis Maranhenses com o fruto do meu trabalho. Mas o vazio continuava lá, sentado naquela mesa. Talvez estivesse enlouquecendo. Sem pensar a razão ou conexão com o que eu sentia, surgiu como peido a seguinte pergunta: como vim parar aqui? Como eu havia chegado até aquela mesa, sem saber ao certo quem eu era nem para onde iria, sentindo apenas um imenso vazio? A primeira coisa que lembrei foi dos pátios da escola. Onde alguns não queriam brincar com os negros, outros não aceitavam os bolsistas, outros não admitiam as meninas, as meninas não suportavam os perebentos, outros não se misturavam com os da rua de baixo e todos me odiavam porque eu preferia mascar meu Ping Pong e não me sentia parte de nenhum deles porque achava todos um bando de estúpidos. Eles continuaram formando suas gangues, times, facções, religiões, associações, partidos e patotas, sentindo-se superiores uns aos outros e eliminando-se uns aos outros e, se por acaso fossem felizes em acabar com os outros, ao invés de comemorar com uma bela farra, preferiam atacar dentro dos seus próprios grupos para trucidar os menos iguais e formar novas gangues, times, facções, religiões, associações, partidos e patotas. Um eterno pátio de escola para ver quem tem mais, quem pode mais, quem dá mais autógrafos ou quem vai à Europa mais vezes. E ali estava eu naquela cozinha, contando dinheiro, arrotando sucesso e me vangloriando por cinco dias nos Lençóis Maranhenses. Então percebi o motivo do vazio e da sede sem fim. Eu me tornara um deles. Pertencia a um grupo de um homem só, mas não passava de mais um zumbi a tatear dinheiro, matando e morrendo a cada dia sem um propósito. Sobre falta de propósito, na TV do bar uma gente vestida de verde e amarelo acampa, ajoelha-se e reza em frente a um quartel pedindo intervenção militar no país. De alguma forma se consideram superiores. Nas imagens seguintes, vejo que Deus mandou um recado maroto, enviando chuva e ventos fortes pra cima dos imbecis. Pra comemorar, peço outra cerveja.”


          “— Besteira — disse Cenoura. — Se tem alguém que pode ser o que quiser é Betinho.
          — Do que você tá falando? — eu disse.
          — Você é o único que estuda em escola particular.
          — Vocês também podem fazer o que quiserem.
          — Já viu a minha escola? Hoje não tinha cadeira, assisti à aula no chão.
          — Mas, Cenoura...
          — Sabe por que nunca te chamei pra minha casa? Porque parece um sanatório e meu pai é um bêbado e só sabe bater na gente. Lingueta é preto e mora numa casa de madeira. E Bigu é Bigu. Que chance a gente tem? A gente vai ser o que der pra ser. Sua vida é boa. Seus pais são legais, você tem aula todo dia e domingo você vai na praia. Você pode não ter olho rasgado, mas não vai precisar fazer força pra ser o que quiser.”


“A baixinha caminhava pelos cômodos com o olhar atento. Então pude notar. Não era tão bonita, mas seu rabo merecia mais respeito que o papa Francisco. Não que fosse uma bunda enorme. Mas era o que chamam por aí de cu alto. Daqueles que ficam lá em cima, nas costas, empinado, como um desses bancos de design moderno em que ninguém consegue sentar. Um caso clássico de cu alto. Enquanto ela observava a rua lá fora, eu calculava que devia dar um trabalho danado subir naquele banco. Disse que havia gostado do lugar, mas que ainda faria outras visitas.”


          “— Imagino que não seja sobre as paralimpíadas — eu disse.
          — Acho que esse é sobre você.
          — Pelo jeito você me conhece mais do que eu mesmo.
          — Livros têm essa coisa. A gente descobre que não estamos sozinhos.
          — Posso te fazer uma pergunta?
          — Sim.
          — Por que o site?
          — Não sei. Nenhum livro me respondeu ainda.
          — Então segura essa. Quando bebo, as respostas aparecem no ar, no tempo, nas tampinhas, nas bancas de jornal.
          — Bom. Já consegue lembrar de alguma piada?
          — Tem uma muito boa. Uma banana queria se suicidar. O que ela disse?
          — O quê?
          — Macacos me mordam.”


“(...) Nada além de bicos e quebra-galhos. Nenhuma medalha ou plano de carreira. Mas não havia um sentido de frustração ou derrota. Bira nunca sequer sentiu-se parte do jogo. Percebeu cedo que não havia apenas um mundo. Existiam vários. E que os muros eram bem altos. De modo que dava até preguiça de imaginar o que existia do outro lado. Bira sabia que não importava o que dissessem na TV, as coisas são o que são. Um tipo raro de consciência que possibilitava a Bira ser o que chamam de alma leve. Vez em quando, sentia uma tristeza sem motivo. Difícil de explicar. Quando isso acontecia, bebia uma latinha a mais vendo o pôr do sol e pronto. Mas na maioria dos dias, no vaivém do seu mundinho, Bira era leve como uma pena. Apenas existia e andava por aí.”


          “(...) vi Tico Melo se aproximar. Um gordo asqueroso que dirigia as divisões de base do Esperança Esporte Clube. Um mal necessário. O mundo estava cheio de Ticos Melos.
          — Salve, Mário Júnior. Nunca mais me arranjou ninguém.
          — Te mandei o Klebinho.
          — Marrento demais.
          — Ele me contou a história dos cem conto.
          — Ajuda de transporte. É pouco?
          — Se ele te chupasse?
          — É que estou precisando de alguém que chute com as duas.
          (...)
          Tico Melo resmungou alguma coisa sobre a federação e depois saiu. Fiz sinal para Klebinho. O garoto veio correndo.
          — Escuta, seu porrinha. Carreira de jogador é que nem cometa.
          — O quê?
          — Já viu um cometa?
          — Não.
          — Porque passa rápido demais.
          — Não entendi nada, seu Mário.
          — Você devia treinar chutar com as duas.”


“A melhor parte do dia ainda era brincar na ladeira. Brincávamos de tudo que era possível imaginar. Picula, garrafão, esconde-esconde, bate-lata, arraia, polícia e ladrão, escorregar de tábua, qualquer coisa que desse na telha. Brincar na ladeira era o único momento em que não estávamos à espera de algo acontecer. O tempo era nosso. O tempo girava, parava e voava como um brinquedo em nossas mãos. Criávamos nossas próprias batalhas. Cenoura era Ultraman, Lingueta se transformava no Ultraseven, eu era Spectreman e Bigu dizia ser o Homem de Seis Milhões de Dólares. Claro que Steve Austin não era páreo para um androide intergaláctico. ‘Bigu, ele corre em câmera lenta’, dizíamos. ‘Vocês não sabem de nada’, respondia. Não insistíamos, já que uma vez vimos Bigu acertar um facão no pé do seu primo enquanto brincava de polícia e ladrão. De vez em quando, Lu Cabeça e Ana Leitinho pediam para entrar na briga como Mulher Biônica e Mulher Maravilha. Mas não dávamos chance às meninas. Voávamos, trocávamos golpes e raios até a primeira cigarra cantar, mais ou menos quando a primeira mãe aparecia na porta e chamava para tomar banho.”


          “— Olá, Ramone.
          — Dona Fátima.
          — Ah, meu mundo por um cigarro.
          — Meu cigarro por seu mundo.
          — No meu mundo cigarros são proibidos.
          — A proibição é um bom isqueiro.
          Ela sorriu. Pensou em dizer algo e depois desistiu.”


“(...) Difícil lembrar de quando perdemos a sede. Vem só uma massa de tempo a embrulhar dores de cabeça. O resto é cansaço. Vontade de voltar pra casa. Solidão programada. Era nisso que eu pensava quando encontrei Li na OLXXX. O anúncio dizia 'Loira, Morena, Negra, Ruiva? Case com todas'. Uma I-Wife Neo Skin Li-486, modelo antigo de segunda mão. Meses resistindo à ideia. Precisar de um robô pra foder me parecia um atestado de fracasso. Mas o meu ego já estava no fundo do armário há anos. E seria um atestado de loucura insistir em dividir a cama com alguém de carne, osso e vontade. Eu também conhecia uns caras que tinham uma daquelas em casa e estavam muito felizes. Como diziam, a tecnologia é imparável. Eles inventam, a gente tem que aproveitar. (...) Uma esposa linda, que mudava o tom da pele e do cabelo com apenas um botão, que dizia ‘eu te amo’, lavava o banheiro e me deixava em paz. Do que mais eu precisava para esperar a morte além de um pijama confortável?”


“(...) Cabelo solto, repleta de curvas, rabo redondo e perversamente sexual. Parecia que eu estava vendo uma daquelas capas da Ele Ela. E claro, percebi esse detalhe. Ela tinha essa tatuagem. Um tipo de serpente que surgia da canela, subia por toda a perna e coxa e se escondia no púbis. Nem dava pra chamar aquilo de detalhe. Era uma senhora tatuagem. Como se fosse sua alma ou sei lá o quê. Uma mulher com uma tatuagem daquelas só podia vender tóxico ou ser ninja, sei lá, lutar com aquelas espadas. O certo é que aquela feiticeira estava lá empinando seu rabo, e eu ainda não havia esquecido o que fazer numa hora daquelas. Caí em cima, beijei todo o seu corpo, cada centímetro da serpente maligna, e enroscamos nossas línguas num beijo longo e quente. Depois ela veio por cima e começou a cavalgar. Vou dizer uma coisa, que mulher! Então percebi o detalhe. O lance da serpente. Enquanto Luíza cavalgava feito uma desgraçada, com o movimento do seu quadril, era como se a serpente desse vários botes em meu pau.”


“(...) da minha mesa, na Barraca do Gordo, eu podia enxergar as pessoas da praça. O filósofo taxista, o gerente da padaria, a dondoca da academia, o ambulante dos fones chineses, os vagabundos de todos os dias. Podia adivinhar o que todos procuravam. Um andar acima, de preferência com varanda, um bilhete premiado, ou pelo menos um proctologista com o dedo fino. Ao menos uma chance de se sentirem menos fodidos ou esmagados. O engenheiro que ajudou a construir um daqueles prédios agora era Uber e fora despejado do próprio apartamento.”


“(...) O problema agora é que todos juram ter em casa o novo Zico. Daí compram as chuteiras mais caras e os meiões da moda e as camisas de uns times que eu nem sei falar o nome e sonham com casa em Barcelona e os filhos são lindos e não pode traumatizar, e o que temos pela frente é um bando de bocós com nomes como Enzo Alberto ou Pedro Lúcio, que nasceram com duas pernas esquerdas e que podiam estar em casa jogando seus videogames em paz. Uma vez apareceu essa mãe dizendo que daria qualquer coisa se eu colocasse seu pequeno Messi no Vitória. Vou dizer uma coisa. O garoto era péssimo, uma carnicinha, e esse foi um dos meus dois casamentos furados.”


Presentes no livro de contos “Pepperoni” (P55, 2024), de Paulo Bono, páginas 147-148, 156, 29, 144-145, 14, 60, 48, 78, 90 a 92, 12-13, 102, 124-125, 95-96, 61 e 90, respectivamente.


Aforismos de Paulo Bono em “Pepperoni”

“Minorias são iguais às maiorias. Só buscam um motivo para se sentir superiores”

“O mínimo que se espera do fim é um pouco de verdade”

“Exército e religião. Duas máquinas de moer asas”

“Pior que a angústia de não ter é a de não ser”

“A proibição é um bom isqueiro”

“Nem toda solidão é desespero”

“O álcool tem dessas. A gente começa com uma piada e termina com uma história triste”

“Nada mais verdadeiro que o não pertencimento”

“O tempo é um palhaço com a corda no pescoço”

“A espera preenchia o vazio dos dias e carregava de valor cada mísero acontecimento”

“A melhor parte de ser criança é ver tudo pela primeira vez. O sentimento mais próximo da verdade”

Aforismos presentes no livro de contos “Pepperoni” (P55, 2024), de Paulo Bono, páginas 148, 136, 88, 156, 102, 142, 47, 137, 29, 11 e 21, respectivamente.

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