Pular para o conteúdo principal

Talvez não tenha criança no céu, de Davi Boaventura

Davi Boaventura
Foto: Fabíola Freire / Arte: Mirdad

Algumas passagens de Davi Boaventura e seu alter-ego adolescente no livro de estreia Talvez não tenha criança no céu:

“Uma foda como qualquer outra... ela com tantas e eu com tão poucas”.

“Para pessoas iguais a mim não adianta fugir, não adianta tentar caminhos diferentes, independente de ser jovem ou velho, homem ou mulher, sempre vamos estragar a empreitada no fim. É simples: ser medíocre é parte intrínseca do nosso organismo, é nosso único talento, somos zeros absolutos, servimos apenas para serviços coadjuvantes, autenticar contrato, atender telefone, vigiar galpão – gostemos ou não – é a mais pura verdade”.

“Estoquei novamente e queria de alguma forma atravessar seus ossos, não bastava simplesmente gozar e deixá-la feliz e relaxada, eu precisava estraçalhar seu corpo, humilhar, mesmo ela sendo mais mulher do que eu homem. Era uma necessidade profunda vê-la me olhar como se eu fosse seu dono, alguém que ela devesse ter medo, como se eu fosse alguém capaz até de matá-la”.

“Não demorou e eu me sentia o próprio guri do Campo de Centeio, filho único do mundo ... uma comparação inútil porque, no fundo, dois terços dos fracassados de minha idade um dia se acharam idênticos ao guri do Campo de Centeio”.

“Basta admitir a reencarnação e que o sofrimento é necessário para a purificação que o paraíso se torna um depósito luminoso abarrotado de almas velhas e cansadas, cheias de cicatrizes escarradas, pois as almas novas, se lá chegassem, o que por si só seria improvável, precisariam reencarnar para envelhecer. Precisariam errar, sofrer, morrer e completar seu ciclo de misérias”.

“Minha função na trama, se houve alguma, foi apenas ser um pau no momento que ela precisou de um”. 

“Ninguém quer lembrar da imagem de seu pai com sangue venoso na boca diante da pia do banheiro – ainda que suas cinzas, lançadas no quintal a pedido dele, já fizessem este trabalho bastante bem. O espaço foi remodelado pelo pai justamente para esse fim, para não ser esquecido. Ele escolheu a pintura, o pórtico, os bancos de pedra, a posição da churrasqueira e da horta, desenhou até a composição das flores no jardim, cada tufo de grama no quintal exalava seu hálito de Marlboro. Lá, no entanto, como passávamos tempo demais, conversando ou bebendo, acostumamos”.

“De repente veio o calor, os arrepios, o suor e o choque de tensão que derreteu meus poros. Minhas pupilas dilataram, olhei para longe e enxerguei distante a luz do poste igual a um escorpião em chamas, uma silhueta disforme com vários tons de amarelo, a água também com uma coloração diferente, um brilho transparente de substância viva, e entrei em parafuso. Flutuei por uma atmosfera fervilhante onde minha pele se descolou dos músculos e onde o tempo traduzido em um objeto real se estendia por inteiro ao meu alcance, simultâneo a isso, eu podia na mesma hora ser, me ver, me tocar e principalmente me sentir como bebê e idoso, grande e pequeno, rígido e maleável”.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Seleta: R.E.M.

Foto: Chris Bilheimer A “ Seleta: R.E.M. ” destaca as 110 músicas que mais gosto da banda norte-americana presentes em 15 álbuns da sua discografia (os prediletos são “ Out of Time ”, “ Reveal ”, “ Automatic for the People ”, “ Up ” e “ Monster ”). Ouça no Spotify aqui Ouça no YouTube aqui Os 15 álbuns participantes desta Seleta 01) Losing My Religion [Out of Time, 1991] 02) I'll Take the Rain [Reveal, 2001] 03) Daysleeper [Up, 1998] 04) Imitation of Life [Reveal, 2001] 05) Half a World Away [Out of Time, 1991] 06) Everybody Hurts [Automatic for the People, 1992] 07) Country Feedback [Out of Time, 1991] 08) Strange Currencies [Monster, 1994] 09) All the Way to Reno (You're Gonna Be a Star) [Reveal, 2001] 10) Bittersweet Me [New Adventures in Hi-Fi, 1996] 11) Texarkana [Out of Time, 1991] 12) The One I Love [Document, 1987] 13) So. Central Rain (I'm Sorry) [Reckoning, 1984] 14) Swan Swan H [Lifes Rich Pageant, 1986] 15) Drive [Automatic for the People, 1992]...

Flikids 2024

A Flikids é uma festa dedicada ao universo da criança, que surge para valorizar e destacar a literatura infantil, produzida por adultos e autores mirins, bem como outros artistas que trabalham a interseção das artes com a literatura, para promover espetáculos infantis e oficinas que estimulem a formação de novos leitores e o hábito da leitura como lazer e afinidade entre os membros da família. Nos eventos literários pelo país, geralmente a programação para crianças é apresentada como uma das partes dos eventos, alternativa. Já a Flikids é exclusiva para esse público: destaca a produção da literatura infantil nos seus vários formatos e temas, como programação principal. A 1 ª edição da Flikids acontece em 19 e 20 de outubro na Caixa Cultural Salvador , patrocinada pela Caixa e Governo Federal , com a realização da Bahia Eventos e  Mirdad Cultura , coordenação geral de Emmanuel Mirdad e curadoria de Emília Nuñez e Ananda Luz . As curadoras comentam a programação  aqui ...

Oito passagens de Conceição Evaristo no livro de contos Olhos d'água

Conceição Evaristo (Foto: Mariana Evaristo) "Tentando se equilibrar sobre a dor e o susto, Salinda contemplou-se no espelho. Sabia que ali encontraria a sua igual, bastava o gesto contemplativo de si mesma. E no lugar da sua face, viu a da outra. Do outro lado, como se verdade fosse, o nítido rosto da amiga surgiu para afirmar a força de um amor entre duas iguais. Mulheres, ambas se pareciam. Altas, negras e com dezenas de dreads a lhes enfeitar a cabeça. Ambas aves fêmeas, ousadas mergulhadoras na própria profundeza. E a cada vez que uma mergulhava na outra, o suave encontro de suas fendas-mulheres engravidava as duas de prazer. E o que parecia pouco, muito se tornava. O que finito era, se eternizava. E um leve e fugaz beijo na face, sombra rasurada de uma asa amarela de borboleta, se tornava uma certeza, uma presença incrustada nos poros da pele e da memória." "Tantos foram os amores na vida de Luamanda, que sempre um chamava mais um. Aconteceu também a paixão...