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Meses do ano por Daniel Lima

Daniel Lima interferido por Mirdad


Seguem abaixo trechos do poema "Zodíaco", presente no livro "Poemas", do padre poeta Daniel Lima, um passeio pelos meses do ano:


"
Janeiro vê dezembro
não como um vizinho às suas costas,
já passado e vivido:
Janeiro vê dezembro no futuro.
Depois dos onze meses que ainda faltam
"



"
A alegria que levas de reserva
colheste-a por certo em fevereiro
para queimá-la talvez a vida inteira
"


"
Março vem
quando menos se espera

Março é essa perpétua interrogação
suspensa no ar

Março é a véspera
o dia seguinte
o intervalo
a pausa
a ansiosa espera

Março é o travo
que dá sabor à vida
e elimina
a nauseante doçura original

É preciso traduzir março
para entendê-lo

Ele é o gesto
o código
o enigma
"


 Foto: Vasco Cardoso
"
Abril é um modo de sentir
histriônico e vadio

Abril é um palhaço trágico
(como uma tragédia grega
ou um tango argentino)

Abril não dorme hoje nem nunca
porque a vida é urgente
e o sono não compensa
a vida que se perde.

Abril de olhos abertos sempre
"


"
Há lama nas ruas
mas a lama antes foi água
e a água é o princípio

Maio é úmido, é água
Maio é água, será lama
Maio é lama, foi água
A vida, o tempo, as horas
"


"
As lembranças de junho doem em todos
Os amigos, as fogueiras, o fogo, os fogos,
a infância de junho
A clareza de junho
Junho é claro
mesmo quando chove
"


"
Julho tem gosto de vinho
seco rascante e tinto
É o mês da lua
e dos lunáticos
A loucura mora na vizinhança
(todos somos vizinhos
de todos
cada um é louco
e seu vizinho)

E perto da loucura
mora o amor, irmão gêmeo
da loucura
e os mares
e as marés
e os caranguejos
O vinho se derrama da garrafa

A lua é julho
Daí, essa saudade, essa tristeza
sem ter de quê
Juliana tristeza, Juliana saudade,
tênue e fina
mas áspera e rascante
como o vinho de julho
"


"
Agosto é esse leão de olhos abertos
que dorme mas espreita
e destroça e devora
os pedaços de sonhos
Agosto fere
machuca e fere
e a ferida sangra
como o vinho de julho
Agosto é desafio
Mês do cachorro doido
todos temos um cachorro doido
no sangue
todos temos um pouco de agosto
nos desejos
Todos nós somos loucos
a vida toda
ou um dia
"


"
Setembro é frágil como porcelana
Sua fragilidade é sua força
sua secreta força
sua ostensiva beleza
Setembro não desafia: espera
espera e depois sai caminhando
num aparente sossego
(como Inês de Castro)
Setembro é primavera
Setembro é frágil
é cristal, mas é diamante
é resistente pedra
o diamante setembro tudo corta
Não desdenhes jamais da frágil força
dos frágeis
O verdadeiro peso
pesa leve
flutua
E os fortes morrem antes
Setembro é mês da vida
do ar livre
das motocicletas
dos mutucas e macacos babuínos
da doce pátria amada, salve, salve!
Salve a doce pátria amada
dos generais
Salve-a sempre e para
sempre
Deles
Salve-se quem puder
Amém
"


"
Outubro é sagaz e se equilibra
entre uma nuvem e uma estrela
Outubro não cai
desce devagarinho
como quem desce uma escarpa
com cuidado e prudência
mas outubro não cai
desce
Outubro se equilibra
entre os extremos
e se desequilibra
entre as estrelas
Outubro não decide 
faz calor
"

Foto: Cláudio Rebello
"
Silêncio e paz
a paz de novembro
a paz dos cemitérios
Os mortos de novembro
são mais vivos
que os vivos de janeiro
Mas novembro é uma seta
a seta
o arco
o sagitário
O sagitário aponta
para o futuro
o tempo, a vida
o mistério do tempo
a dança das horas
Novembro é um alquimista
que faz transformações quase impossíveis
"


"
Dezembro é o cântico contido
a vontade de ser que se recolhe
e aguarda o seu momento
Em dezembro os poetas hibernam
como ursos polares
e os filósofos nascem
e tentam dar ordem ao mundo
ah! coitados!
Dezembro é o último
mas haverá o primeiro
outra vez o primeiro
è isto a história
Deus nasceu em dezembro
então dezembro é tudo
Dezembro é festa silenciosa
festa na estrebaria
os teólogos não são convidados
ficam de fora no sereno
dando palpites inúteis
É tempo de esperança
tudo acaba, tudo recomeça
Deus nasce, Deus morre, Deus ressuscita
o tempo continua
a vida é isto
Os homens morrem no mundo todo
E Deus nasce em Belém
isto é dezembro
"

Daniel Lima
(Cepe, 2011)

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