Pular para o conteúdo principal

Poemas, de Daniel Lima — Parte 03

Daniel Lima
Foto: Cepe/Divulgação | Arte: Mirdad


"Não é o mar que amo,
é o infinito que ele sugere,
são as paixões que lembra
é a força que suscita
– é isto que amo no mar,
não o mar, mas o que ele representa,
a paisagem interior aonde ele aponta,
o mar em mim, as águas reprimidas
no coração mais dentro"


"O morto está só.
Está sozinho o morto.

Os que o cercam
sentem essa distância intransponível.
O morto não sente nada,
já não lhe dói a vida.
E essa carência de toda dor possível
é a solidão maior.

Os vivos que o velam
olham com disfarçado temor
seus olhos de pálpebras cerradas,
suas cruzadas mãos, seu rosto pálido,
sua gelada ausência tão bem posta,
sua solidão.
E é disto que eles têm medo"


"Não sei se poderemos suportar a visão da
verdade e a face das coisas
quando cair o último véu que lhes oculta o
segredo.

Pelo menos se as palavras envolvessem a nudez
dessas realidades tão duras,
poderíamos dormir ainda à chegada da noite.

Mas ninguém fechará os olhos à misericórdia
do sono
na hora da revelação definitiva.

Ninguém poderá suportar o próprio rosto
agora visto sozinho e nu, um rosto único e
implacável
sem mais olhos e risos a escondê-lo.

Apenas resistirá o rosto verdadeiro
que se cobriu para sempre
das obscuras lágrimas"


"Minha alma é periódica
funciona algumas vezes na semana
e é palúdica, tem febre às quintas-feiras.

Tenho também um corpo que, coitado,
a hospeda por dever, mas constrangido.

Alma de fluido feita e de bagaço
e doses de paixões malresolvidas
e orgulho e frustrações,
o diabo a quatro.

Com cuidado mandei analisá-la
e descobriram, encantados, que era feita
de santidade e feijão, música e merda"


"Como suportaria os rudes golpes da vida,
se em mim a cicatriz não precedesse a ferida?
Se as águas dos meus mares
não fechassem em instantes
o corte que lhe fazem
os navios que as singram noite e dia?

Às vezes antes, outras vezes
no instante do sofrer
a vida em mim responde
e faz-se cicatriz antecipada
ou água revolta a se fechar no instante
ou apenas também
a submersa dor, tornada espuma"


"Não sei se me pertenço.
Talvez seja antes pertencido
pelas coisas que tenho ou que conheço,
ou mais ainda pelas que ignoro,
ou as que sofro, ou as que amo,
o meu mundo, o meu ser.
Talvez que a minha liberdade
não passe de um destino disfarçado"


"E de olhos fechados
vejo que brilha em mim
entre clarões metálicos
o mistério maior de minha noite"


"Meus olhos
desesperadamente pessoais
puxam de longe no tempo
o menino que fui
e se perdeu na festa,
vendo os palhaços do circo
e os cantadores de feira
e os mágicos mestres de ilusões.

E o menino retorna envelhecido
e traz consigo
os palhaços do circo
e os cantadores de feira
e os mágicos mestres de ilusões
para seus olhos de agora
desesperadamente pessoais"




Trechos extraídos do livro "Poemas" (Cepe, 2011), de Daniel Lima.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Seleta: Black Sabbath

A “ Seleta: Black Sabbath ” destaca as 73 músicas que mais gosto da banda inglesa, presentes em 10 álbuns da sua discografia oficial (os prediletos são “ Paranoid ”, “ 13 ”, “ Vol. 4 ” e “ Black Sabbath ”). Ouça no YouTube aqui Ouça no Spotify aqui Os 10 álbuns participantes desta Seleta 01) War Pigs [Paranoid, 1970] 02) Iron Man [Paranoid, 1970] 03) Children of the Grave [Master of Reality, 1971] 04) Paranoid [Paranoid, 1970] 05) Symptom of the Universe [Sabotage, 1975] 06) Gypsy [Technical Ecstasy, 1976] 07) Changes [Vol. 4, 1972] 08) God is Dead? [13, 2013] 09) Sabbath Bloody Sabbath [Sabbath Bloody Sabbath, 1973] 10) End of the Beginning [13, 2013] 11) Fairies Wear Boots [Paranoid, 1970] 12) Loner [13, 2013] 13) N.I.B. [Black Sabbath, 1970] 14) Damaged Soul [13, 2013] 15) Warning [Black Sabbath, 1970] 16) Supernaut [Vol. 4, 1972] 17) Never Say Die [Never Say Die!, 1978] 18) Evil Woman [Black Sabbath, 1970] 19) Snowblind [Vol. 4, 1972] 20) Black Sabbath (live) [Reunion, 1998] 21)

Seleta: Flávio José

Flávio José (foto: divulgação ) O artista de forró que mais gosto é o cantor, sanfoneiro e compositor Flávio José . Para mim, ele é a Voz do Nordeste . Um timbre único, raro, fantástico. Ouvir o canto desse Assum Preto-Rei é sentir o cheiro da caatinga, arrastar os pés no chão de barro ao pé da serra, embalar o coração juntinho com a parceira que amo, deslizar os passos como se no paraíso estivesse, saborear a mistura de amendoim com bolo de milho, purificar o sorriso como Dominguinhos ensinou, banhar-se com as rezas das senhoras sábias, prestar atenção aos causos, lendas e histórias do povo que construiu e orgulha o Brasil . Celebrar a pátria nordestina é escutar o mestre Flávio José ! Natural da sertaneja Monteiro , na Paraíba , em 2021 vai completar 70 anos (no primeiro dia de setembro), com mais de 30 discos lançados e vários sucessos emplacados na memória afetiva do povo brasileiro (fez a alegria e o estouro da carreira de muitos compositores, que tiveram a sorte de serem grav

Seleta: Lisa Hannigan

Lisa Hannigan (foto daqui ) Conheci a cantora e compositora irlandesa Lisa Hannigan graças ao emocionante filme “ Maudie ” (2016), da diretora irlandesa Aisling Walsh (baseado na história da artista canadense Maud Lewis ). A música dos créditos finais é “ Little Bird ”, e a suavidade, timbre, afinação e interpretação tátil da bela voz de Lisa Hannigan me fisgou na hora! Contemplei três dos seus álbuns, “ At Swim ” (2016), “ Passenger ” (2011) e “ Sea Sew ” (2008), e fiz uma seleta com 20 canções que mais gostei. Confira o belo trabalho da irlandesa Lisa Hannigan ! Ouça no YouTube  aqui Ouça no Spotify aqui 1) Tender [At Swim, 2016] 2) Funeral Suit  [At Swim, 2016] 3) Home [Passenger, 2011] 4) Little Bird [Passenger, 2011] 5) Paper House [Passenger, 2011] 6) An Ocean and a Rock [Sea Sew, 2008] 7) Prayer for the Dying [At Swim, 2016] 8) Nowhere to Go [Passenger, 2011] 9) Anahorish [At Swim, 2016] 10) We, the Drowned [At Swim, 2016] 11) Splishy Splashy [Sea Sew, 2008] 12) T