Paulo Bono
Foto: Divulgação | Arte: Mirdad
"Como uma formiguinha que resiste à morte. Você dá uma chinelada, ela finge a própria morte, e quando você pensa que não, lá está ela, a formiguinha, andando outra vez. Você dá outra chinelada, e mais outra, ela sente o golpe, mas continua mexendo as perninhas. Então você dá mais outra chinelada, e mais outra, e mais outra, você espanca a formiga e pensa que venceu. Porque se você olhar de perto, bem de perto, ela está lá, mexendo nem que seja uma anteninha, arrastando seus últimos segundos de vida. Isso para mim é poesia"
"O que tem para falar de alguém que toca triângulo? Eu estava observando. Dinheiro fácil do caralho. Acho que a maior injustiça desse universo é um tocador de triângulo ganhar o mesmo que o resto do grupo. Aquele sacana bebia mais licor que tocava. Mas o que tinha para tocar? Era tinguinlinguinlim e licor para dentro, tinguinlinguinlim e licor para dentro. Enquanto o sanfoneiro e o zabumbeiro se fudiam com seus instrumentos infinitamente mais pesados. E volta e meia aquele filho da puta ainda olhava o repertório colado colado no chão, como se fizesse alguma diferença a música que viria a seguir. Aposto que ele dizia para as putinhas, 'Sou músico, toco numa banda'. Duvido que dissesse que tocava triângulo"
"O dominó tem disso. Mesmo quando você sabe que não joga porra nenhuma, em algum momento, ganhando alguma partida, mesmo por obra do acaso, você sai cantando vitória e contando sua estratégia lógica e matemática de imperador do dominó"
"Não entendo Brotas. O bairro é gigantesco e, ao mesmo tempo, contramão para todos os lados ... Às vezes o bairro de Brotas parece um cenário dessas séries de TV sem fim e cheias de enigmas"
"– Uma gelada, Edson – o caboclo pediu ao dono da barraca.
– A noite foi boa? – o tal do Edson perguntou.
– Sabe aquela sarará, caixa da padaria?
– Comeu?
– Emadeiramento.
– Ela é gostosa – Edson disse.
– Puta que pariu – o caboclo exclamou – a mulher chupou tanto minha pica que eu pensei que a cabeça do pau ia afinar.
Terminei minha Coca-cola e pedi um chiclete"
"Tudo que um adolescente quer por perto, por mais ridículo que ele seja, é encontrar outro adolescente mais ridículo do que ele. Então eu era o centro das piadas. Ganhei o apelido de Paulo Medonho. Era Paulo Medonho isso, Paulo Medonho aquilo, Paulo, corta essa juba, você tá medonho. Havia uma verdadeira campanha para eu cortar meu cabelo. Era incrivelmente feio, de verdade. Mas eu me recusava. E pagava por isso. É que os amigos da Lapinha estavam descobrindo novos amigos e já não faziam mais questão da minha presença. Certa vez ia ter uma viagem, uma viagem que fazíamos todos os anos. Mas naquele ano, justamente naquele ano, o dono do carro me disse que não havia mais vaga para mim, me substituindo por um novo amigo, alguém com um cabelo humano e corpo sarado, que lhe fosse mais útil, é claro, o ajudando a se aproximar das putinhas. E aos 18 anos eu aprendia o quanto a amizade pode ser prática"
"Desemprego é uma lástima. Já engordei quatro quilos. A gente levanta, come alguma coisa e volta. Levanta, come alguma coisa e volta. E assiste qualquer porcaria na TV. Passava aquele quadro no telejornal. Pretos e pobres numa praça pública erguendo certificados rotos de cursos técnicos e implorando por uma vaga. Quem assiste aquilo? Só os desempregados"
Trechos extraídos do livro de crônicas "Espalitando" (Cousa, 2013), de Paulo Bono.
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