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A cabra vadia — Novas confissões, de Nelson Rodrigues — Parte 01

Nelson Gonçalves
Foto: Divulgação | Arte: Mirdad


"O mundo é apenas plateia"


"Era um visitante ilustre. Passou um mês no Brasil. Na véspera da partida, foi a um baile no Itamaraty. E, de repente, vira-se para a grã-fina brasileira que o acompanhava. Perguntou com uma irritação quase imperceptível: – 'E os negros? Onde estão os negros?' (...) Num amargo escândalo, constatava que o Itamaraty é uma paisagem sem negros (...) E o Brasil gaba-se de sua democracia racial. No entanto, poderíamos indagar uns dos outros: – 'E os negros? Onde estão os negros?' É uma pergunta sem resposta. As casacas estão aí, e os vestidos de baile, e os cargos, e as funções, e as estátuas (...) Uma noite, vinha eu para casa, de táxi (...) perguntei ao chofer pelos assaltos. E ele, que era um preto retinto, uma bela voz racial de Paul Robeson, riu, feroz: – 'De noite, eu não paro para crioulo.' Vocês entendem? (...) no Brasil é assim: – o branco não gosta de preto, nem preto gosta de preto. Aqui, ser preto é provar todas as renúncias"


"Um filho pode espancar a mãe e fica por isso mesmo? Admito que não se faça nada. Mas o que não entendo é que ninguém se espanta. O brasileiro cada vez se espanta menos"


"Fiquei assim, até alta da madrugada, ou relendo a peça, ou relendo o artigo. Antes de mais nada, o poeta influiu na minha auto-estima. Ah, se eu morresse naqueles dias, alguém poderia gravar no meu túmulo: – 'Aqui jaz Nelson Rodrigues, elogiado por Manuel Bandeira.' Não sei se me entendem. Mas o artigo do poeta passava a ser mais importante e vital do que Vestido da noiva. No dia seguinte, saí com o recorte no bolso. Ninguém poderia imaginar que eu estava prodigiosamente ébrio de mim mesmo. Eu, eu, eu, eu. Se a mulher amada me aparecesse, eu não a reconheceria e, se a reconhecesse, passaria adiante"


"Há uma reciprocidade de níveis. A televisão é assim porque o telespectador também o é. Uma coisa depende da outra e as duas se justificam e se absolvem"


"Aos 18 anos, não sabemos nem como se diz 'bom-dia' a uma mulher. Para o homem, o amor não é gênio, nem talento e sim tempo, métier, sabedoria adquirida. Fiz as considerações acima para concluir: – o homem devia nascer com 35 anos feitos"


"Mário Filho era um desses homens fluviais que nascem de raro em raro. Disse fluvial e explico: – imaginem um rio que banhasse e fertilizasse várias gerações. Assim foi Mário Filho. Há mais de quarenta anos, não há cronista em todo Brasil, não há vocação, não há talento que não tenha recebido a sua luz decisiva. Morreu e continuamos a viver das rendas de seu gênio"


"A mulher era uma menina de medo: – 'Não quero morrer! Não quero morrer!' Mas era evidente que o marido perdera toda e qualquer intenção homicida. Veio para a mulher, lançou-se nos braços da mulher, ela nos dele, os dois aos soluços. Esse perdão fulminante causou, entre os presentes, um escândalo mudo. O senador não teve uma palavra dura, absolutamente. Ela é que, atracada ao marido, gemia: – 'Você me perdoa? Me perdoa?' A resposta foi nobilíssima: – 'O que passou, passou.' O pior foi quando os dois embarcaram num táxi (...) Juntara gente e nós sabemos que o povo não entende o perdão e prefere o tiro. O casal partiu debaixo de uma vaia triunfal"


"O morto começa a ser esquecido no velório"


"Outro dia, uma revista perguntou: – 'A mulher trai por quê?' Vejamos. Umas por vingança, outras passatempo, ou tédio, ou dinheiro. Lembro-me de uma que era casada com o mais doce, o mais solidário, o mais abnegado dos maridos. Quando perguntaram por que o enganava, explicou: porque, certa vez, vira uma brotoeja em sua pálpebra. Tanto bastou. A brotoeja matara o amor. Eis que apurei lidando com as tragédias passionais: – o marido enganado perdoava muito menos o adultério por amor. Se a mulher vivia uma frívola e caprichosa aventura, ele não sofria tanto. Mas quando era amor, triste, dilacerado e súplice amor, os maridos queriam dar tiros em todas as direções"



Trechos presentes no livro de crônicas "A cabra vadia  Novas confissões" (Agir, 2007), de Nelson Rodrigues.

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