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Sete passagens de Gonçalo M. Tavares

Gonçalo M. Tavares
Foto: Egi Santana | Arte: Mirdad


"O que existia era, sim, a manifestação de uma eficácia impressionante por parte daquele mecanismo a que chamamos enterro. Cada pessoa que chorava, e algumas tinham sido vistas a baixar a cabeça, chorava não pelo morto mas pelo ruído que as rodas daquele mecanismo libertavam. Havia, tanto nas palavras religiosas quanto nos gestos quase universais dos soldados a baixarem o caixão em direcção à terra, a fixação num ponto que era comum e não já individual. Esse ponto que unia a comunidade dos presentes era a sensação de que cada um deles poderia, no dia seguinte, ser o morto que os outros homens respeitam. Chorava-se em conjunto pelo fracasso da cidade: ainda não se encontrara antídoto para aquele ruído que parecia ser libertado em cada enterro. Cada homem reivindicava que a morte – e o seu sistema de funcionamento – terminasse antes de chegar a si. E em cada funeral a despedida do morto era também o relembrar de um fracasso comum, de um fracasso, inclusive, da mais alta referência dos humanos: a sua cultura, a sua forma de raciocinar que construíra um novo mundo e que quase tornara o perigo, em tempo de paz, uma energia não normal, extraordinária mesmo. De facto, nas cidades sem guerra, o perigo tornara-se raro, mas a morte, essa, continuava abundante; parecia impossível ao homem dominar o seu preço: este continuava baixo, acessível, igual ao de qualquer produto insignificante. A morte, cada morte individual, manifestava o fracasso económico, técnico e cultural das cidades."

[presente aqui]

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"Será possível que este homem, que agora se cruza comigo na rua, será possível que este rosto perfeitamente informe, que não conheço, que não evidencia nenhum traço mágico ou de força invulgar, será possível, enfim, que este rosto que é como que a repetição de milhares de outros rostos, este rosto interminável, porque grotescamente comum, será possível que por detrás deste rosto esteja um homem que deseja ser grande, e que acredita que isso ainda é possível?"


"Os períodos em que existe medo são utilizados não apenas para sobreviver: também para as paixões efusivas. Mas se a qualidade de uma geração se mede pela qualidade das frases que quem seduz utiliza, então aquela era, sem dúvida, uma geração medíocre."


"Em comparação com a administração de um país, individualmente, em tempo de guerra, cada homem, por si, como que fundava um Ministério da Normalidade, que impunha, essencialmente, repetições. Porque só as repetições acalmavam, só as repetições permitiam a cada indivíduo voltar a encontrar-se humano no dia seguinte. Repetições de actos ou de pequenos gestos, de palavras ou de frases banais – repetições até de actos não visíveis, não registáveis pelos outros, como imagens e memórias do cérebro –, tudo isso permitia a cada um sobreviver no meio da confusão, resistir no meio do reino da desordem"


"Você é de uma eternidade espantosa, é uma cópia perfeita, neste lado, daquilo a que vulgarmente se chama sábio."

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"(...) Como era estranho aquele seu gesto de esconder as mãos nos bolsos. As mãos e os olhos eram o fundamento da guerra: sem mãos é impossível odiar, odeias pelas pontas dos dedos, como se estes fossem o canal habitual e único de uma certa substância química má. As mãos nos bolsos são um processo de educar o ódio (...) só com as mãos nos bolsos os homens já acalmam."


"Com as mãos nos bolsos um homem percebe que não é Deus. Não se chega às coisas. Se tocares no mundo com a cabeça obterás desse toque sentimentos secundários; afastados de uma intensidade mínima a que a existência das mãos te habituou. As mãos tornam-te intenso. O obsceno - isso mesmo -, o obsceno que é o homem que na guerra, mesmo que numa pausa, põe provocadoramente as mãos nos bolsos. Assumir que não se é Deus em momento de guerra é acto corajoso e, por estranho que pareça, o único divino. Só os cobardes fingem que são Deus."

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