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Sete passagens de Tom Correia no livro Ladeiras, vielas & farrapos

Tom Correia (foto daqui)


"Eu sempre soube que, cedo ou tarde, o mar onde nasci me arrastaria para um inevitável mergulho no abismo."


"Ao chegar em casa, assustado, ele colocou um maço de cédulas em cima da mesa da cozinha e correu para o quarto. Bastou um olhar para ela compreender. Furiosa, pegou o moleque com força pelo braço e imediatamente arrancou-se pela porta. Não se falaram durante o trajeto até o ponto. Ao subir no trólebus, deu um empurrão no menino, que quase se esborracha. Uma passageira, também acompanhada do filho, tentou intervir, censurando-lhe a rispidez. 'Cuide dos seus que eu cuido dos meus!', Donana rebateu. A mulher calou-se. A frase ficou se debatendo dentro do veículo. O condutor e os outros passageiros, mudos, ficaram pensativos. Levaram as palavras para casa, para a vida."


"A gente nunca teve dinheiro pra comprar um campo Estrelão, mas isso não nos impediu de organizar campeonatos inesquecíveis, como o daquele ano. Dividimos as tarefas e construímos nosso próprio estádio com material reciclado: uma porta de guarda-roupa roída pelos cupins e achada no aterro, pregos retirados das paredes, sobras de lixa e verniz. Para pintar o gramado tomamos emprestado, sem pedir, o lápis de cera da irmã de Rege Farofa. O círculo central e as meias-luas ficaram perfeitos, desenhados por Lico, um pequeno artista mesmo sem um compasso na mão. (...) Escolhemos a casa de Nema pra testar o evento. O diabo era um tapete enorme no meio da sala, atrapalhando a estabilidade da nova arena. A comissão organizadora decidiu: a única solução era retirá-lo pra instalar as estruturas ali mesmo. Nema foi contra, temia ser castigado pelo pai, mas um esporte tão nobre não poderia ser prejudicado por um detalhe decorativo de uma casa que ameaçava desabar. (...) as bolinhas se perdiam ao cair pelos buracos do piso. Quando a lama secava, a gente descia e se arriscava entre as estacas pra tentar recuperá-las. Vários jogadores do time de Cirilo foram resgatados do lodo."


"No meio da sala, percebi o quanto era difícil me mexer num lugar tão minúsculo. Abri a janela para atenuar a sensação de claustro. A baía se escondia por trás de um extenso tapete negro, as luzinhas lá longe provocaram alguma nostalgia, e senti imensa ternura pelo lugar, como se estivesse diante de uma senhora adoentada que tinha sido muito rica e cortejada pela sua formosura; que durante muito tempo exibiu suas joias e desfilou sua opulência, até cair em declínio irreversível; e que hoje vive de recauchutagens, tentando debilmente reviver seus melhores dias. Recordei os amigos que tinham partido pra lugares distantes tentando escapar da nossa prisão metafísica. As amizades se perderam no tempo. A conversa com os que retornaram não tinha naturalidade, mas ressentimento pela separação."


"Musas de bundas caídas, pseudoastros aposentados e músicos obscuros de músculos atrofiados podiam ser vistos por quem passava em frente ao 2º Distrito Naval. Viciadas em flashes e microfones, subcelebridades aceitaram o confinamento num cubículo de metal e vidro, suspenso por espessos cabos de aço. Lá dentro elas ouvem em modo contínuo tudo que produziram em vinte, trinta anos de carreira. Muitos não suportam e sofrem agudas crises nervosas. Apenas os catatônicos são indiferentes. O público já não se lembra bem das canções, das dancinhas, nem dos nomes dos antigos ídolos, mas grita histericamente cada vez que o fundo da caixa se abre e um deles despenca. A disputa é transmitida ao vivo: audiência estourada."


"Seu Francisco Edgard Lopes é muito vaidoso. Conta pra gente, com a pose de um palestrante, curiosidades sobre o Campo da Graça, onde jogou bola com Popó. No dia da inauguração da luz elétrica em frente ao Palácio Rio Branco, estava vestido a caráter, sendo um dos oradores mais aplaudidos pela turma da Associação Comercial. Também esteve todo galante quando o Plano Inclinado Gonçalves levou os primeiros passageiros. Seu pai fez parte da primeira turma da Faculdade de Medicina do Terreiro de Jesus e era um dos raros a possuir um automóvel desfilando entre bondes e carroças. (...) Consegue descrever com minúcias todos os momentos de empolgação do amigo Oscar Cordeiro quando jorrou petróleo no Lobato. (...) Ainda era um molecote, aluno do Antônio Vieira, quando participou do Quebra-Bondes, exigindo passagens mais baratas e melhor serviço. Décadas depois, mesmo sem jamais ter sido usuário do sistema de transporte público, também participou do Quebra-Quebra de 1981. 'Gosto de arrebentar coisas, porque me acalmo', ele explica."


"(...) Era muito simpático, como todos os gordos que tentam compensar os excessos. Algumas de suas manias eram irritantes. Dava em cima das meninas, sempre sem sucesso devido a um pacote repleto de equívocos: abordagem atropelada, modos truculentos e um vocabulário inadequado que ele despejava, sem constrangimento, no ouvido dos seus alvos. Até dormindo Madá queria ganhar um Molière. Seus gestos, expansivos, tomavam para si todo o espaço disponível entre ele e o seu interlocutor. Isso dificultava ainda mais a sua vida com o público feminino, histórica e estatisticamente não adepto do binômio gordo-falido. Mas eu deixo tudo isso pra lá, porque os defeitos dos amigos a gente sempre ameniza. Já os inimigos, até suas virtudes são imperdoáveis."



Presentes no livro de contos "Ladeiras, vielas & farrapos" (Via Litterarum, 2015), de Tom Correia, páginas 13, 95, 84 a 86, 49, 15, 63 e 75-76, respectivamente.

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