Ruy Espinheira Filho (foto: Joá Souza)
Soneto das mesas
Ruy Espinheira Filho
Convido os irmãos mortos para a mesa.
E mais o pai. E a mãe. E amigos tantos.
Não para reviver coisas de prantos,
pois horas dolorosas nesta mesa
não podem ter lugar. Tem a certeza
do amor com que bordamos nossos mantos
de dias já cumpridos e outros tantos
que são dos reunidos nesta mesa.
Os que se foram, eis que não se foram
de vez. E sempre vêm, quando os convido
ou não convido – jovens, sem tristeza.
Pai, mãe, irmãos, grandes amigos... Douram-me
a alma – enquanto aguardo, comovido,
minha vez de sentar-me à sua mesa.
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Brilhos
Ruy Espinheira Filho
Não muito natural despertar
na manhã aberta de verão
pensando que os brilhos se apagam.
Mas assim comecei hoje
e logo recordei uma amiga dizendo
com olhos úmidos
em saída de cemitério
que o que mais vira na vida
é tudo nos puxar para baixo
para o chão.
Disto me lembro e de um momento
em que tendo ouvido minha mãe comentar alguma coisa
e depois se afastar
meu pai murmurou para mim
num tom amargo
que ela estava envelhecendo.
Meu pai
que nem a viu mesmo envelhecer
pois que se foi muito antes
brilho de súbito apagado
não lentamente como se apagavam as fogueiras
[que ele acendia
em junhos antigos
e
bem depois
vindos de uma glória remota
os balões
(como uma resposta aos que ele fazia
e enviava ao desconhecido)
que desciam exaustos
pálidos
na noite silenciosa
e fria.
Penso nesses brilhos
e em outros
e todos se apagaram
ou estão se apagando
eu mesmo já me apaguei
muito
e continuo me apagando
como o brilho do perfume
do café
na xícara esquecida
sobre a mesa posta para
esta manhã em que se apaga
esta manhã.
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Simplicidade
Ruy Espinheira Filho
Prazer de ficar lendo,
ao longo da tarde,
um poeta simples.
Que não é menos complexo
do que um poeta complexo:
é que é complexo
de uma maneira simples.
Tão simples que os poetas complexos
não conseguem atingir sua simples
complexidade.
Procurando alcançá-la,
tornam-se cada vez mais apenas
complexos.
E então,
como não conseguem atingir a complexidade
de um poeta simples,
acusam o poeta simples
de simples simplicidade.
E assim ficam, com ares arrogantes,
destilando desprezo
pelos poetas simples.
E chegam a dizer até que não têm cabeça...
O que até pode ser verdade,
mas da mágica verdade da
Mula-Sem-Cabeça,
que,
não tendo cabeça,
solta fogo pelas ventas...
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Breve canção da caminhada
Ruy Espinheira Filho
Vamos todos caminhando,
entre o amor e a morte,
por sobre o fio da navalha,
sem sul, leste, oeste ou norte.
E vamos, da luz da infância
até a alma anoitecida,
buscando um sentido no
nenhum sentido da vida.
Que mais fazer? Ah, brindar,
entre o que tarda e o de súbito,
às vitórias sobre a morte,
até o último decúbito
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Hálito
Ruy Espinheira Filho
hálito da noite
que observo nos coqueiros lânguidos,
nos tímidos galhos da romanzeira,
nas nuvens já quase sem memória
das sombras.
Último hálito da noite,
desta que está acabando
de passar.
Sereno hálito, como espero que seja
o meu último
quando chegar a noite que jamais
passará.
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"Já pensei que poderia ter sido melhor
esse outro destino.
Que também poderia não ser
nada melhor.
Porque, na verdade, a vida,
seja qual for,
não dá garantia nenhuma
de coisa alguma."
"Mas vamos levando o barco,
desafiando oceanos,
pois o que sustenta a alma
sempre é a graça dos enganos"
"A vida é um bordado labiríntico,
ou pior,
um novelo que se enovela cada vez mais
e se mistura com outros novelos
de cuja existência sequer suspeitávamos
e que são,
enquanto durar a vida,
infinitos."
Presentes no livro "Milênios e outros poemas" (Patuá, 2016), de Ruy Espinheira Filho, páginas 19, 37-38, 63-64, 92 e 54, respectivamente, além dos trechos dos poemas "Destinos" (p. 120), "Clepsidra" (p. 21) e "O último poema" (p. 142), presentes na mesma obra.
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