César Gilcevi
Foto: Fernando Prates
Infância IX
(o livro dos mortos)
César Gilcevi
reginaldo tomou formicida roberto tiro da polícia
ronaldo gauche endividado no amor & no baralho
rubens o morto virgem sob os aguapés da pampulha
rosa cardíaca neusa infartada
euclides caduco gérson chagas
renato cabeça a prêmio por pedra penhorada
márcia sob as rodas do carro mirileide foi violada
lucas era bom no ringue mas punho não para bala
alice estava no lugar errado flávia na fila do sus
vinha eclipsou o ventre chico não teve escolha
preto chacinou o natal & se foi com o berro na boca
no início era o verbo
morrer
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Infância VIII
(o hóspede)
César Gilcevi
& de repente
nos demos conta
daquele hóspede ao pé da escada
gordo & inconfessável
como um crime antigo
ninguém (talvez os mortos que tudo veem)
o havia notado antes: a calva farta
aquele estranho broquel pendendo na lapela
traz os lábios paralisados num sorriso indecifrável
séculos curvam seus ombros mas caminha leve & resoluto
seu perfume cheira a bíblia velha
& tem os bolsos atulhados de perguntas
que ele distraído deixa cair pela casa
agora que nos conhecemos
não faz mais questão do velho recurso da invisibilidade
usado durante esses anos todos
diz que é cansativo
& lhe causa dores terríveis na têmpora esquerda
à vista de todos
se ergue intratável a cada amanhecer
alguns se tornaram íntimos (a avó caduca
passa o dia pedindo que a leve pra longe desses filhos
& netos ingratos)
outros fingem não vê-lo
é brincante com as estátuas
& as mulheres o perseguem desesperadas
ofertando pincéis & alguma nova & milagrosa química
à noite os cachorros ganem baixinho
dentro de sua branca insônia
somente os gatos o seguem bocejosos
os pássaros & as borboletas fogem
com um medo azul nas asas
pontualmente às três da madrugada
ele irradia um tropel enganoso no sótão
fato é que ele não mais vai embora
está sempre atrás de uma porta
arruinando a teia de uma aranha
aprisionando uma sombra no gramado
consolando a tinta gasta das paredes
às vezes sinto um arrepio no corredor
às vezes o vejo no fundo do quintal retendo a noite
negra & absurda do lado de fora
em outras o percebo
sussurrando desconhecidas mitologias
para o recém-nascido
diariamente um prato fica intocado na mesa
às vezes deixa alheios bilhetes suicidas em cima da cômoda
ou deposita um sonho bom em minhas retinas
às vezes pluma às vezes hipopótamo
sei-o aqui rente
ontem hoje amanhã sempre
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Cidade industrial
César Gilcevi
aqui as crianças já nascem
desmemoriadas do azul
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Infância VII
(little boy blue)
César Gilcevi
magrelo fodido
faminto fadado
poeta (na genealogia
só bandido pataxó pinguço
preto & pereba)
ao sair de casa
ao caminhar pelas ruas
ao entrar na escola
ao voltar pra casa
sob o céu
me guardam
o salmo 23
& o pequeno punhal (herança
do primo fugado assassino) escondido
na grácil cintura
dos meus 12 anos
envoltos em ódio roto tergal
& esperança
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Infância III
(sangue ruim)
César Gilcevi
I. clã dos silva
da parte do pai vinham os de pele escura & parda
índios pegos no laço ladrões d'além mar capitães do mato
idólatras do cobre da preguiça & das armas
malvivendo amontoados naquela casa pau a pique senzala
partiam para o leste sob a tutela da noche oscura
levavam na matula a bússola a meiota de cachaça
carcaças de pequenos animais
sapienciais pergaminhos: eis que vou agora dormir no pó
se me procurares pela manhã já não existirei
II. clã dos souza
os irmãos da mãe na fronte acuada traziam sardas
lixo branco escorraçado das terras de lund
lazarones no monturo do morro das pedras
ralé de pés rachados sonâmbulos na encruzilhada
malvivendo amontoados naquela casa adobe senzala
pico & cola arranhando as grades da alma
falavam uma gíria bárbara & cheia de fúria
:o terceiro mundo vai explodir quem tiver de sapato não sobra
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"nu pagão violento
dançarei pela cidade em desforra
convulsionando os oráculos os desígnios os elementos
cuspindo de volta o abismo
para dentro do homem"
"aparece nas noites mais improváveis
geralmente quando já estou bêbado ou louco ou triste ou
quando o asfalto o tédio o futuro empoeirado além-eras
já aleijaram meus passos hesitantes rumo ao quarto sublocado ou
já dilapidaram o que restava daquele mundo que um dia vi
em nós & que talvez se tornasse puro ou
quando já bati uma longa punheta pensando nela ou outra qualquer"
"era a época em que a lua parecia não nascer
& ela não me deixava dormir
descrevendo o bestiário imemorial à espreita
na escuridão
ouvia retinir cascos carrancas caudas bilioso
algodão represando as narinas do semovente cadáver
há muitos anos velado na sala
(...)
um dia ela trouxe campânulas agraços o vagido
do primeiro arco-íris
acorrentou tudo ao meu coração
disse que agora tudo ia ficar bem
que tinha ido ao rio da minha infância
& atirado nele meus mortos meu fundante
cansaço minha treva & aço"
Presentes no livro de poemas "Os ratos roeram o azul" (Letramento, 2016), de César Gilcevi – os trechos são de "Neguinha", "About a girl" e "Diana 35".
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