Carlos Barbosa – Foto: Sarah Fernandes
"O gemido da mulher eclode e mistura-se aos ruídos do motor, dos pneus no asfalto e do ar deslocado pelo ônibus em seu mergulho na noite. Um gemido que prenuncia tragédia, não dor passageira, pontada qualquer. E se faz choro espremido, nasalado, numa contenção que só a discrição da mulher sertaneja pode engendrar. Servílio apruma-se na poltrona e repara nas palavras que a mulher deixa escapar por entre lágrimas. Nem precisava. Compreende de imediato que o bebê morrera, estava morto, talvez, desde quando estivera em seus próprios braços."
"Com o bucho na boca, minha mãe montou uma égua e viajou doze léguas até o Bendiá. Lá, me despejou no mundo. Dias depois, meu pai teve que providenciar uma caixa de sapatos pro meu enterro. Que, obviamente, não aconteceu. O detalhe da caixa de sapatos, cujo número jamais soube, em urna funerária feita, sempre me espantou mais que o risco que corri de um dia morrer sem nadar no rio São Francisco. Nada espantoso pra minha mãe, no entanto, que dizia sem tremer a voz, ninguém achou que você vingaria, aquela coisinha miúda, magrela e desconjuntada, cabia com sobras na caixa de sapatos. A caixa voltou intacta pra seus sapatos ou pra serventia de guardar miudezas de seu dono, e melhor destino teve."
"(...) Saiam daqui! Sumam todos! É minha mãe quem está a morrer! Morro também eu-menino; tudo que representei para ela com ela se vai... Silêncio! Toda expectativa e desconforto da gestação, toda alegria e dor do parto, todo cuidado ao me limpar e banhar e alimentar por todos os anos de minha infância, todo remédio ministrado, a lista de minhas doenças, as datas de meus machucados, de minhas travessuras, todo curativo aplicado, minhas roupas costuradas e remendadas e lavadas e passadas, toda palavra dura de repreensão e castigo, minhas más-criações, toda palmada e todo beijo, principalmente todo beijo, todo meu preparo de gente, tudo em mim que reconheço bom e generoso, tudo de mim que não habita minha memória vai-se embora com ela, se perderá... Calem-se!"
"(...) Certos acontecidos guardam parelha com carro de boi em carreiro de canavial: avançam lentamente, rangem doridamente, parecem rejeitar o despejo final da carga e seus desdobramentos em melaço, álcool, rapadura e bagaceira, a propiciar doce e ácido, sustança e embriaguez em vidas desligadas da trama."
"(...) a morte parece chegar antes e marcar presença de tal forma que respirar torna-se tarefa pra muito esforço; constitui, assim, um peso solto no ar que pode desabar sobre o vivente a qualquer instante. A esquiva fica dificultada por esse manto funéreo não se tornar visível. E a inquietude se instala entre aqueles que podem pela morte ser eleitos ou indicados ao seu dispor pelo tribunal improvisado. Há os que saboreiam essa inquietude como se refresco fosse; há os que se apressam e precipitam a colheita; e há, ainda, os que insistem em reparar em frestas, em atalhos, em pedir água, raspar a garganta e reinventar-se humano."
"(...) há quem mantenha a posse de mais de duzentos desses cartões! Com as senhas! – dizem que isso garante sem falta mantimentos e remédios, aquilo de que mais necessitam os aposentados na vidinha deles, nessa ignorância doída que só!, sem os riscos de serem espancados ou até mesmo mortos que, para um cabra que tira dinheiro de aposentado, matar deve ser coisa trivial, mesmo que o idoso seja seu parente, difícil é saber nessa história quem mata o aposentado primeiro, o assaltante ou o falso tutor, pois é o mesmo esquema dos barracões das fazendas que mantêm trabalho escravo, o sujeito fica enredado nas contas, o dinheiro cada vez mais comprando menos, a dívida crescendo, o sujeito preso ao esquema, se escravizando. O governo inventa essas coisas de cartão, máquinas eletrônicas, senhas... será que fiscaliza o uso, apura o resultado?"
"Arrasta a bruaca de debaixo da galharia derrubada. Ajoelha-se e desfaz o nó feito na tira de couro que fecha a tampa. Hesita em abri-la. Há, em volta da rude arca, uma aura de mistério, pressentido pelo velho no estranho gosto que sua saliva instala na boca. Um gosto de sangue como se tivesse mordido a língua. Não, não vou abrir essa bruaca, posso sentir no coração seu conteúdo, não vou abrir. E nela permanece sentado por longo tempo. Gostaria de se espalhar em raízes, galhos e folhas do mais bravio cansanção e plantar-se eternamente sobre aquele segredo, protegê-lo com sua copa e seu veneno da curiosidade humana, e desse modo enterrar o perigo contido ali, sim, pois conclui que o conteúdo da bruaca é perigoso, e angustia-se."
"(...) O pouco dinheiro que o velho possuía escoava a galope e Joana começou a temer prejuízo em sua bolsa murcha, não sei por que assumi esta missão, o povo fica olhando à distância, gostando de alguém ter se apresentado para o desencargo, ô raça!, e agora o velho não melhora, e não sei como vai ficar o atendimento das necessidades de comida e remédios se demorar mais esse catarro e essa moleza de corpo do infeliz, e no fim das contas ainda vão falar mal de mim, é sempre assim o pagamento da caridade prestada."
"Mulher não releva nenhum direito que possua ou que a ela se atribua. Homem é capaz de guardar direitos em sacolas velhas, enterrá-los no quintal e se esquecer por inteiro do lugar onde os reservou. Mulher os traz sempre à mão. Às vezes, pendurados no pescoço, nos braços, e os sacode na cara de qualquer um, a qualquer tempo, mesmo que a onça esteja a turrar no terreiro, ela brada seus direitos, exige a apresentação das mesuras e o desfiar das palavras do seu agrado, capazes de recompor sua condição latifundiária de ofendida; a onça que não avance muito em território alheio."
Presentes no livro de contos "O chão que em mim se move" (Penalux, 2016), de Carlos Barbosa, páginas 43-44, 13, 64-65, 58, 25-26, 53, 105, 50 e 22, respectivamente.
Seleta dos contos
01) Corpo de mãe
02) O encontro
03) Queimada
04) Joana e suas cercas
05) Era uma vez o Bendiá
06) De volta ao Bendiá
07) Corpo de pai
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