Gustavo Felicíssimo
Foto: Fausto Roim
À posteridade
Gustavo Felicíssimo
Ocorreu-me de escrever
um poema à posteridade.
Um poema que assegure
a permanência do meu nome,
seja lá o que isso signifique.
Um poema tão claro e puro
quanto essa exclamação:
posteridade, vá se foder!
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Ladrando feito um cão
Gustavo Felicíssimo
Certo! Um dia verei Deus
com esses olhos que a terra há de comer.
O que face a face me dirá, não sei,
mas lhe beijarei as mãos
e tomarei a sua benção
como outrora fiz à minha mãe.
Então mostrarei o nome do seu filho
impresso nas paredes dos prostíbulos
e nas páginas de antigos livros
que unem e separam os homens.
Mostrarei tantos clamores inauditos,
os discursos pela paz mundial
e aquele franzino Davi
montado em poderosos helicópteros
e tanques de guerra subjugando o seu irmão.
Estarei ladrando feito um cão
e ele me lembrará
que a videira é seca, suja e torta,
que esse vale é feito de lágrimas.
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Hodierno
Gustavo Felicíssimo
Aqui, onde bárbaros viram heróis,
onde por vergonha ou medo
todas as vozes se calam
num delito coletivo e contraditório,
todas as solidões se proliferam
e os remorsos frutificam
silêncios cada vez mais vastos.
Os gritos no vazio se expandem,
mordaças são distribuídas gratuitamente
e na mente do incauto
a aparente sensação de felicidade
enquanto o amanhã, por mais remoto que pareça
ri da hipocrisia reinante
e abrolha nos comerciais de televisão,
Ah! Já não faço mais planos,
meu futuro é o tempo presente
gasto com tudo o que não possui serventia,
pois na ternura do abraço amigo
sou o anfitrião das coisas vãs
e vivo porque em viver não há mistério,
apenas uma perene solidão e seu perfume.
Existo pela palavra, resisto pela fé,
ouço a voz de um Deus a me amparar
como se ampara uma criança
enquanto, do meu carnal assombro,
me liberto da sombra que me encarcera
e canto a desimportância das horas
no imperecível momento de um verso.
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Conceitual
Gustavo Felicíssimo
Meu verso
nunca será livre
Será vivo
Pois ao poeta
não cabe
o livre arbítrio
Meu verso
nunca será um grito
Antes, o silêncio
com todos
os seus ruídos
Nele, tão-somente
o que pulsa
o que se agita
ou rumoreja
na folha alvíssima
sobre a qual
me debruço
e padeço
Pois se o poema
por inteiro
me ofereço
cada verso será
sentido e delírio
Cada verso meu
será – mesmo –
um suspiro, apenas
E nada mais
Chega mais perto
leitor
e ouve
o que nele habita
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Desordem
Gustavo Felicíssimo
Dois cães regem o homem:
um, é tormento
o outro, entusiasmo
Equilibrar esses dois cães
é questão de vida e morte
Dois cães
quais
dois deuses
Qual deles será comigo hoje?
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"Outro chope, garçom
Sentimos sede porque a realidade é fuga
e fugaz o tempo se apresenta
Sentimos sede porque a realidade é crua
e terríveis os seus desdobramentos"
"Não sabemos das nuvens negras
se faz sol lá fora
ou se enfrentamos nossa via-crúcis
navegando assim sem bússola
nos debatendo às portas da escuridão
e ainda sonhando cada vez mais alto
pois na memória esquecida
os ausentes se confundem
fundem as vidraças dos velhos padrões
os velhos porões sucumbidos sob a noite
incerta de tantos escombros
enquanto
nada muda a verdade no firmamento
ou dele se faz brotar evidências
o significado das coisas
e toda voz perdida sem saber o que dizer
frente aos enigmas
que florescem diante da morte
esfinge do universo a igualar o ser"
"O que me exila me liberta,
lâmina que trago junto ao corpo,
faz vibrar as cordas de um violino
chamando os meus cães"
Presentes no livro "Desordem & outros poemas inéditos" (Mondrongo, 2015), de Gustavo Felicíssimo, páginas 43, 45-46, 61-62, 15-16 e 11, respectivamente, além dos trechos dos poemas "Elegia para Alberto da Cunha Melo" (p. 39), "Elegia para Rimbaud" (p. 34 e 35) e "Canção do meu exílio" (p. 49), presentes na mesma obra.
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