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Quinze passagens de Itamar Vieira Junior no romance Torto arado

Itamar Vieira Junior – foto daqui


“Fui tomada por uma profunda tristeza ao ver aquelas duas vidas desamparadas diante do que lhes haviam feito. Vi tanta crueldade ao longo do tempo, e mesmo calejada me comovo ao ver os homens derramando sangue para destruir sonhos. Vi senhores enforcarem seus escravos como castigo. Cortarem suas mãos no garimpo por roubarem um diamante. Acudi uma mulher que incendiou o próprio corpo por não querer ser mais cativa de seu senhor. Mulheres que retiravam seus filhos ainda no ventre para que não nascessem escravos. Que davam a liberdade aos que seriam cativos, e muitas delas morreram também por isso. Mulheres que enlouqueceram porque as separaram dos filhos, que seriam vendidos. Vi um senhor cruel deitar com mulheres negras e abandonar seus corpos castigados à morte, como se quisesse expurgar o mal que o fazia cair. Outro fez do corpo de seu escravo um reparo para o barco imprestável em que navegava. Entrava água na embarcação. O barco chegou ao seu destino com o homem afogado. Vi homens e mulheres venderem seus pedaços de terra por uma saca de feijão ou uma arroba de carne, porque não suportavam mais a fome da seca. (...) Me desfiz numa fina chuva que aguou as vidas que pelejavam para salvar Severo, no meio do nada. Entrei por sua boca para lavar o sangue que esvaía. Me dividi nos ombros, cabeças e costas dos que rodeavam marido e mulher no chão. Vi uma carruagem de fogo correr pela estrada. (...) Em Água Negra correu um rio de sangue.”


“Depois que ele me deitou na cama, beijou meu pescoço e levantou minha roupa, não senti nada que justificasse meu temor. Era como cozinhar ou varrer o chão, ou seja, mais um trabalho. Só que esse eu ainda não tinha feito, desconhecia, mas agora sabia que, como mulher que vivia junto a um homem, tinha que fazer. Enquanto ele entrava e saía de mim num vaivém que me fez recordar os bichos do quintal, senti um desconforto no meu ventre, aquele mesmo que me invadiu pela manhã com o trotar do cavalo. Virei minha cabeça para o lado da janela. Tentei olhar pelas frestas a luz da lua que tinha despontado no céu mais cedo. Senti algo se desprender de seu corpo para meu interior. Ele se levantou e foi se lavar com o resto de água. Abaixei minha roupa e fiquei de costas, com os olhos no teto de palha, procurando filetes de luz. Procurando alguma estrela perdida que se apresentasse como uma velha conhecida, para dizer que não estava sozinha naquele quarto.”


“Meu cavalo morreu e não tenho mais montaria para caminhar como devo, da forma que um encantado deve se apresentar entre os homens, como deve aparecer por esse mundo. Desde então, passei a vagar sem rumo, arrodeando aqui, arrodeando acolá, procurando um corpo que pudesse me acolher. Meu cavalo era uma mulher chamada Miúda, mas quando me apossava de sua carne seu nome era Santa Rita Pescadeira. Foi nela que cavalguei por um tempo, não conto o tempo, mas montei o corpo de Miúda, solitária. Sou muito mais antiga que os cem anos de Miúda. Antes dela, me abriguei em muitos corpos, desde que a gente adentrou matas e rios, adentrou serras e lagoas, desde que a cobiça cavou buracos profundos e o povo se embrenhou no chão como tatus, buscando a pedra brilhante. O diamante se tornou um enorme feitiço, maldito, porque tudo que é bonito carrega em si a maldição. (...) Me embrenhei entre o povo que os donos da terra chamavam de trabalhador e morador. Era o mesmo povo que me carregou nas costas quando eram escravos das minas, das lavouras de cana, ou apenas os escravos de Nosso Senhor Bom Jesus. Me acolhia num corpo, acolhia em outro, quando tinha abundância de água nessas terras. (...) Miúda roçava, mas sua paixão era pescar. (...) Dormia na beira do rio sem medo de onça nem de cobra. Eu era a sua encantada, que domava seu corpo sem assombro. Protegia meu cavalo. Meu cavalo que dançava atirando a rede, no meio da casa do curador Zeca Chapéu Grande. Meu cavalo não usava sapatos porque seus pés eram as minhas raízes e me firmavam na terra. Seus braços eram minhas nadadeiras e me moviam na água. Montei o meu cavalo por anos, que nem posso contar. Mas agora, sem corpo para me apossar, vago pela terra.”


“Durante esse período em que Donana cuidava dos partos em Água Negra e propriedades vizinhas, minha mãe foi sua ajudante. Observava os movimentos do corpo, rezas e interditos; o que poderia e não poderia ser comido, bebido, feito. Aprendia sobre o tempo certo para o banho da criança e da mãe, ou a tesoura nova que ficava guardada esperando o nascimento. Atentava para as provações do resguardo. Quando minha avó já não podia ajudar mais, Salu passou a acompanhar meu pai, que, como curador, prestava a assistência de que as mulheres necessitavam. Nunca vi meu pai nessas missões, mas minha mãe relatava para as comadres todo o constrangimento que ele transparecia ao tocar no corpo de uma mulher prestes a dar à luz. Por vezes as acomodava no chão, enquanto estavam amparadas por uma mulher da família ou vizinha, e as tocava com o pé direito na barriga, para capturar mensagens dos movimentos da criança, se havia ou não chegado a hora do parto. (...) Mas não era meu pai quem estava ali, constrangido, envergonhado de estar com uma mulher em uma delicada posição, com dores lancinantes, se contorcendo em gestos bruscos que faziam despontar um seio desnudo ou sua genitália. Muitas vezes a roupa mal cobria o corpo. Era um encantado, o Velho Nagô, antigo conhecido do povo de Água Negra. Era o senhor do corpo e do espírito de meu pai, das bênçãos e curas que chegavam aos necessitados e à terra.”


“De loucura meu pai entendia, assim diziam, porque ele mesmo já havia caído louco num período remoto de sua vida. Os curadores serviam para restituir a saúde do corpo e do espírito dos doentes, era o que sabíamos desde o nascimento. O que mais chegava à nossa porta eram as moléstias do espírito dividido, gente esquecida de suas histórias, memórias, apartada do próprio eu, sem se distinguir de uma fera perdida na mata. Diziam que talvez fosse por conta do passado minerador do povo que chegou à região, ensandecido pela sorte de encontrar um diamante, de percorrer seu brilho na noite, deixando um monte para adentrar noutro, deixando a terra para entrar no rio. Gente que perseguia a fortuna, que dormia e acordava desejando a ventura, mas que se frustrava depois de tempos prolongados de trabalho fatigante, quebrando rochas, lavando cascalho, sem que o brilho da pedra pudesse tocar de forma ínfima o seu horizonte. Quantos dos que encontravam a pedra estavam libertos dos delírios? Quantos tinham que proteger seu bambúrrio da cobiça alheia, passando dias sem dormir, com os diamantes debaixo do corpo, sem se banhar nas águas dos rios, atentos a qualquer gesto de trapaça que poderia vir de onde menos se esperava?”


“(...) a fazenda foi vendida meses depois da morte de meu pai. Os herdeiros da família Peixoto envelheceram, e os seus filhos e netos não queriam continuar com a propriedade Água Negra. Os mais velhos nos conheciam, mas os mais novos nem sabiam quem éramos, embora não tivessem dúvida de que se tratava de um problema para seus negócios. Foi com as casas de barro e nossos corpos como mobília que venderam a terra a um casal com dois filhos. Acostumados que estávamos à longa posse da família Peixoto, fomos surpreendidos pela mudança e ficamos sem saber o que aconteceria a partir de então. Os mais ingênuos achavam que tudo permaneceria da mesma maneira. Os mais desconfiados temiam o que estava por vir, quiçá o despejo. (...) A família Peixoto havia herdado terras das sesmarias. Essas coisas nem Deus sabe explicar como aconteceram, mas Severo diz de uma forma que o povo fica atento (...) chegou um branco colonizador e recebeu a dádiva do reino. Chegou outro homem branco com nome e sobrenome e foram dividindo tudo entre eles. Os índios foram sendo afastados, mortos, ou obrigados a trabalhar para esses donos da terra. Depois chegaram os negros, de muito longe, para trabalhar no lugar dos índios. Nosso povo, que não sabia o caminho de volta para sua terra, foi ficando. Quando as fazendas foram deixando de produzir porque os donos já estavam velhos e os filhos já não se interessavam pelo trabalho de roça, porque ganhavam muito mais dinheiro como doutores na cidade, e nos procuravam cercando terras pelas extremidades da fazenda, dizíamos que éramos índios. Porque sabíamos que, mesmo que não fosse respeitada, havia lei que proibia tirar terra de índio. E também porque eles se misturaram conosco, indo e voltando de seu canto, perdidos de suas aldeias.”


“(...) vi de forma mais clara o rosto de Maria Cabocla, com sua pele acobreada de índia. Nas vezes em que a encontrei para pedir fogo ou lavar roupa na beira do rio, me contava sua história, sua travessia, e não havia observado seus traços com a profundidade com que fazia naquele instante. De Maria guardava, sobretudo, as histórias das muitas fazendas por onde havia andado. Da avó que havia sido pega no mato a dente de cachorro. Maria estava magra, parecia ter uma fome permanente. Seu corpo miúdo tinha manchas púrpuras, era possível ver à luz do dia. Mulher bonita, minha mãe diria, mas maltratada. Todas nós, mulheres do campo, éramos um tanto maltratadas pelo sol e pela seca. Pelo trabalho árduo, pelas necessidades que passávamos, pelas crianças que paríamos muito cedo, umas atrás das outras, que murchavam nossos peitos e alargavam nossas ancas. Em pé, olhando Maria sentada na cadeira, vi seus seios pequenos, subindo e descendo na inquietude de sua respiração desolada. Me senti compadecida de sua situação e com vontade de dividir o pouco almoço (...)”


“O medo atravessou o tempo e fez parte de nossa história desde sempre. (...) Era o medo de quem foi arrancado do seu chão. Medo de não resistir à travessia por mar e terra. Medo dos castigos, dos trabalhos, do sol escaldante, dos espíritos daquela gente. Medo de andar, medo de desagradar, medo de existir. Medo de que não gostassem de você, do que fazia, que não gostassem do seu cheiro, do seu cabelo, de sua cor. Que não gostassem de seus filhos, das cantigas, da nossa irmandade. Aonde quer que fôssemos, encontrávamos um parente, nunca estávamos sós. Quando não éramos parentes, nos fazíamos parentes. Foi a nossa valência poder se adaptar, poder construir essa irmandade, mesmo sendo alvos da vigilância dos que queriam nos enfraquecer. Por isso espalhavam o medo.”


Itamar Vieira Junior recebe o
Prêmio LeYa 2018 pelo livro
“Torto arado”, o seu primeiro
romance – foto daqui


“(...) O sol era tão forte que quase tudo ao alcance de minha visão estava branco, refletindo a luz intensa do céu sem nuvens. Meu pai retirou o chapéu, o calor fazia minar de seu corpo um suor grosso que lhe lavava o rosto, escorrendo pela fronte e pelas têmporas. Escorria pelo lado anterior de seus braços, formando grandes manchas em sua camisa surrada. O barro cobria sua calça, sua enxada, seus braços, o chapéu largo em suas mãos. Eu atirava milho e restos de comida para as galinhas. ‘Pedir morada é quando você não sabe para onde ir, porque não tem trabalho de onde vem. Não tem de onde tirar o sustento’, apertou os olhos, olhando para a cova diante de seus pés, ‘aí você pergunta pra quem tem e quem precisa de gente para trabalho: ‘Moço, o senhor me dá morada?’.’ De pronto seu olho se ergueu para meu irmão: ‘Trabalhe mais e pense menos. Seu olho não deve crescer para o que não é seu’. Apoiou a enxada em pé no solo, segurando a ponta do seu cabo com um dos braços. ‘O documento da terra não vai lhe dar mais milho, nem feijão. Não vai botar comida na nossa mesa.’ Retirou papel e fumo do bolso e começou a fazer um cigarro. ‘Está vendo este mundão de terra aí? O olho cresce. O homem quer mais. Mas suas mãos não dão conta de trabalhar ela toda, dão? Você sozinho consegue trabalhar essa tarefa que a gente trabalha. Esta terra que cresce mato, que cresce a caatinga, o buriti, o dendê, não é nada sem trabalho. Não vale nada. Pode valer até para essa gente que não trabalha. Que não abre uma cova, que não sabe semear e colher. Mas para gente como a gente a terra só tem valor se tem trabalho. Sem ele a terra é nada.’ (...) Meu pai não falou o nome de Severo, mas sabia que ele andava de conversa com o povo da fazenda contando história de sindicato, de direitos, de lei. Estava levando essas conversas para os campos de trabalho. Sabia também que o assunto já devia estar no ouvido de Sutério.”


“(...) o prefeito inaugurou a escola, que teve a construção — com telhas de cerâmica que nenhuma casa de trabalhador poderia ter — concluída no verão. O prédio recebeu o nome de Antônio Peixoto, pai dos Peixoto. Homem que, diziam, foi proprietário da fazenda, mas nunca havia posto os pés ali. Todos os moradores estiveram presentes à inauguração: as mulheres de lenços na cabeça; os homens de chapéu e enxada na mão; as crianças rindo da novidade, um pequeno prédio de três salas, e sem o tal banheiro que ninguém tinha mesmo. Da família Peixoto se fez presente também a irmã mais velha, que nunca havia visto por ali, uma senhora gorda e muito branca, que não dirigiu seu olhar para nós em nenhum momento. Levava um lenço aos olhos enquanto o prefeito falava. Quando retiraram o papel que cobria a placa com o nome de seu pai falecido, ela quase caiu, num choro convulsivo que fez com que seus irmãos a amparassem para que não desabasse de vez no chão. Nenhuma palavra de agradecimento a meu pai, que, na noite em que celebrava o jarê de santa Bárbara, havia requestado, quase ordenado, o cumprimento da promessa de construção da escola feito à santa no passado. Mas ele estava lá, em pé, um dos primeiros da audiência, segurando a mão de Domingas, e ao lado de minha mãe, com o rosto satisfeito. Pouco importava, poderia ver em seu semblante a luta que havia travado com as forças da encantada santa Bárbara para que tivéssemos um destino diferente do seu, para que não fôssemos analfabetos.”


“Maria (...) veio para cima dele, mas foi lançada em seguida ao chão por um tapa desferido com as costas da mão desproporcional do homem. Eram mãos engrossadas pelo trabalho, pela vida nada fácil. (...) meu coração estava aos pulos, sentia meu interior frio como a brisa da madrugada, mas permaneci firme como meus antepassados. Não foi o suficiente para evitar que Aparecido apertasse meu punho e tentasse me arrastar para fora. Encostei a lâmina que escondia atrás de mim em seu queixo (...) Seus olhos vermelhos de fúria amansaram como os de uma criança acuada pelo medo de uma aparição da mata. Aparecido chorou, pedindo perdão, dizendo que ele não era de fazer isso, que a bebida era uma desgraça em sua vida. Maria Cabocla aproveitou a fragilidade que ele transparecia para afastá‑lo de vez. Mostrava as marcas do corpo, as que pareciam estar curadas, as que não curaram e as daquele instante. Sua raiva dizia muito das dores da alma — e sobre estas ela não falou —, aquelas que demoram a curar, as que no meio das lembranças precisamos afastar com um gesto de negação para que não se abata sobre nós o desânimo. Dizia que não queria mais ver o marido naquele pedaço de chão. Duas das crianças mais novas choraram quando a mãe atirou as roupas pela porta, pedindo: ‘Não, mainha, não manda painho embora’. Maria, conquanto parecesse não ouvir ninguém, continuava a gritar para que o homem se fosse para a casa das putas com quem ele deitava, que os deixasse de uma vez. Ele gritava entre lágrimas que a casa era dele, ele a havia levantado, ele que havia pedido abrigo. A mulher parecia firme, e eu apoiava a sua resolução.”


“No hospital, demoramos a ser atendidas. Nossos pais estavam encolhidos em um canto ao nosso lado. Vi as calças sujas de terra que ele não teve tempo de trocar. Minha mãe tinha um lenço colorido amarrado na cabeça. Era o mesmo lenço que usava embaixo do chapéu que levava para se proteger do sol na roça. Ela limpava nossos rostos com peças da trouxa de roupa, a cada momento com um novo tecido com cheiro de guardado, e que não conseguia identificar. Meu pai ainda segurava a língua envolta na mesma camisa. As folhas estavam guardadas nos bolsos de sua calça, talvez por vergonha de o apontarem com desdém como feiticeiro dentro daquele lugar que ele não conhecia. Foi o primeiro lugar em que vi mais gente branca que preta. E vi como as pessoas nos olhavam com curiosidade, mas sem se aproximar.”


“Passado muito tempo, resolvi tentar falar (...) Ainda recordo da palavra que escolhi: arado. Me deleitava vendo meu pai conduzindo o arado velho da fazenda carregado pelo boi, rasgando a terra para depois lançar grãos de arroz em torrões marrons e vermelhos revolvidos. Gostava do som redondo, fácil e ruidoso que tinha ao ser enunciado. ‘Vou trabalhar no arado.’ ‘Vou arar a terra.’ ‘Seria bom ter um arado novo, esse arado está troncho e velho.’ O som que deixou minha boca era uma aberração, uma desordem, como se no lugar do pedaço perdido da língua tivesse um ovo quente. Era um arado torto, deformado, que penetrava a terra de tal forma a deixá‑la infértil, destruída, dilacerada. Tentei outras vezes, sozinha, dizer a mesma palavra, (...) mas logo me vi impelida a desistir. Nem mesmo quando o edema se desfez consegui reproduzir uma palavra que pudesse ser entendida por mim mesma. (...) Durante todos esses anos, somente quando estava só, e mesmo assim muito raramente, usava dizer algo. Era um tipo de tortura que me impunha de forma consciente, como se a faca de Donana pudesse me percorrer por dentro, rasgando toda a força que tentei cultivar desde então. Como se o arado velho e retorcido percorresse minhas entranhas, lacerando minha carne.”


“(...) Crispina e Crispiniana eram as únicas gêmeas do povoado e as primeiras que me lembro de ter tido contato. Era algo misterioso olhar para as duas mulheres jovens, recém‑saídas da adolescência. Espelho não era coisa comum por ali. Havia o pedaço de espelho de Donana, que podíamos admirar vez ou outra, enquanto desarrumava e arrumava sua mala naquela rotina instituída na sua caduquice. Mas espelho mesmo, acessível para nos observarmos, era apenas o espelho d’água dos rios com seu líquido escuro e ferruginoso, onde nos víamos negras num espelho também negro, talvez criado exatamente para nos descobrirmos. (...) Crispina e Crispiniana caminhavam juntas, lado a lado, como um duplo da outra. Como um espelho com profundidade, comprimento e altura, mas sem as bordas quebradas como o que pertenceu a Donana, ou as margens de areia e mata que emolduravam nossa imagem nas águas do rio.”


“Nunca havíamos andado na Ford Rural da fazenda ou em qualquer outro automóvel. E como era diferente o mundo além de Água Negra! Como era diferente a cidade com suas casas grudadas umas às outras, dividindo paredes. As ruas calçadas com pedras. O chão das nossas casas e dos caminhos da fazenda era de terra. De barro, apenas, que também servia para fazer a comida de nossas bonecas de sabugo, e de onde brotava quase tudo que comíamos. Onde enterrávamos os restos do parto e o umbigo dos nascidos. Onde enterrávamos os restos de nossos corpos. Para onde todos desceriam algum dia. Ninguém escaparia. Só pudemos observar tudo aquilo durante o retorno, em lados opostos do veículo, com nossa mãe no meio, absorta em pensamentos que nosso alarido havia precipitado em seu íntimo.”




Presentes no romance Torto arado (Todavia, 2019), de Itamar Vieira Junior, páginas 206-207, 114-115, 203 a 205, 56-57, 39-40, 176-177, 119, 178-179, 185-186, 95-96, 150-151, 18-19, 127, 32 e 20, respectivamente.

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