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Vinte passagens do livro Antologia do conto húngaro, org. Paulo Rónai

Mór Jókai, Károly Pap, Dezsö Kosztolányi, Kálmán Mikszáth, Jenö Heltai, Géza Gárdonyi, Frigyes Karinthy, Zsigmond Móricz, Ferenc Mólnar, Margit Kaffka, Lajos Bíró e Andor Endre Gelléri (fotos internet)


“(...) A sorte só me persegue quando vê que estou fugindo dela.”


“Para Janika, tudo isso não passava de música: os sedentos gritos de revolta do pai, assim como as lamúrias, os excitamentos da mãe. Desde que nascera, tudo nele se transmudava em música, e assim como a terra envolve os mortos, a semente, assim como o útero envolve a vida futura contra a dureza da morte e da existência, assim tudo nele ficava envolto em voz quente e viva, em música; tudo nele irradiava uma música que logo diluía os duros contornos da fonte, de onde manava, como a luz dilui a forma do sol, os vapores da madrugada ou o crepúsculo diluem a terra. Aquilo acontecia imperceptível e invisivelmente, e, contudo, sem parar, como a ebulição da água, a evaporação da terra: tudo exalava uma fina vibração indefinível, cheia de vozes sem conta. Cantigas viviam nele como no ar uma infinidade de criaturas. Como quem ouvisse os ruídos do ser e do passar, depurados do que tem de horrível. Assim como tudo irradia incessantemente calor e vida, na vigília e em sonho, e tudo quanto vive se transforma em depósito ou filtro de calor, tudo se fazia canto e música ao chegar no coração de Janika através do seu corpo...”


“A recebedoria assemelha-se a um cemitério onde a gente pode vaguear horas a fio. (...) Em seus longos corredores, que desembocam um no outro, paira um cheiro de poeira e desolação, e na escadaria sombria todas as vozes se transformam em ais repercutidos ao longe pedindo socorro. São talvez as queixas das almas de tantos homens extraviados que passaram decênios a mourejar ali. (...) Quando percorrem os corredores, sob fracas luzes que borboleteiam, com maços brancos de processos nas mãos, parecem visagens arrastando consigo os seus lençóis. (...) As salas que se seguem são os túmulos onde cada um deles enterrou a sua vida amarga, as suas azedadas esperanças. Ao diretor coube uma sepultura de honra, um brilhante salão de batentes dourados e tapetes, mausoléu luzidio que fielmente conserva a sua adiposidade digna, sua imensa vaidade e seus títulos. Ao lado desta, escavadas na parede, criptas menores para funcionários de certa importância, com os nomes marcados em tabuletas. Depois, corredores infinitos, com as catacumbas sem nome. Portas... capacho... e, atrás deles, homens... todos parecidos... entram de manhã e saem à tardinha, arrastando-se para suas casas... Qual é a sala de Fulano? O servente mal encolhe os ombros, indicando displicentemente uma das celas... Outros tantos pequenos sepulcros com as cruzes enterradas e os próprios cômoros sumindo-se, lá pelos fundos do campo-santo.”


“Quando os filhos choram e tossem, lembra-se de que tem uma lancha. Ao ver que lhe embranquecem as têmporas e o topo de sua cabeça se despoja, que a mulher também envelhece, se afeia, se azeda, que em casa falta o necessário, que a mãe, depois de lavar a roupa, sente dores nas costas, que a sogra vive espremendo com as mãos as verrugas de cores diferentes, que o taciturno refugiado da Transilvânia o tiraniza e que a venda dos cigarros provoca penosas discussões financeiras, lembra-se de que tem uma lancha. Quando os demais não lhe dão importância e o desprezam; quando na fábrica passa os dias a alinhar cifras, o braço protegido por um manga de alpaca; quando lhe recordam a cada passo que ele não é nada, que ele não conta na sociedade, só no escritório pode contar até rebentar, lembra-se de que tem uma lancha e aqueles que o decompõem, o desmoralizam, lhe dão pontapés, não têm uma lancha. Quando, durante o inverno, o Danúbio se cobre de uma couraça de gelo sobre a qual a neve se acumula em montões de um metro de altura, enquanto na escuridão desaparecem os pilares da ponte e não se vê uma gota daquela água sobre a qual é tão bom correr, ele se lembra de que nada é eterno e em março o gelo começará a romper-se. Sempre e por toda parte ele se lembra da sua lancha.”


“Admirável, realmente, o indiferentismo fatalista do camponês húngaro, que morre sem relutância nem amargura. (...) Aos olhos do camponês húngaro, o homem-da-foice [O povo húngaro representa a morte sob os traços de uma personagem masculina] não é nenhum espectro, mas um camarada jovial que, por assim dizer, faz parte da família, de certa maneira. (...) Não é injusto, pois faz a sua visitinha a todos; não é um inimigo, pois àqueles a quem derruba livra-os de todos os cuidados. Por isso lhe chamam Compadre Morte, e é, com efeito, um bom compadre, e não um poderoso. Apenas cumpre ordens superiores, em suas visitas inesperadas. (...) Numa palavra, a morte é muito menos terrível na roça do que na cidade, onde a gente precisa de um espelho até para se pentear. Na cidade, raras vezes é bem recebido: salvo, num ou noutro caso, por aqueles a quem mata um parente rico. Na roça, é bem-vinda, e até cumprimentada pela pessoa a quem veio buscar; mas, ainda quando não a cumprimentam, pelo menos a acolhem com indiferença.”


“O professor experimentava uma grata emoção e esquecia-se de todo o cansaço. Que diabo, não era brincadeira! A Morte estava doente! Que estranha e deletéria moléstia pudera infiltrar-se naquele velhinho que ia fazendo as suas destruições havia milhões de anos? Também, que coisa incrível, se a Morte morresse! E que furo sensacional, universal, se ele conseguisse curar a Morte! (...) O professor contemplou-a algum tempo no seu sono tranquilo: — ‘Estás nas minhas mãos, patife. Se eu quiser, está liquidado. Basta eu cometer o erro mais leve, e a humanidade está livre dos teus estragos. E por que não haveria eu de errar? Seria um criminoso se não prestasse este serviço aos meus semelhantes.’ (...) Teve, porém, as suas dúvidas: — ‘Talvez não convenha. Afinal, é um doente. Confiou-me a vida, a mim. Não posso ser seu juiz e algoz. Devo tratá-lo tão bem como a qualquer outro doente distinto e rico. Vou salvá-lo.’ (...) — ‘Seria rematada loucura — disse consigo, enquanto o sangue lhe subia às faces e uma tontura lhe tomava conta da cabeça. — Nunca mais terei uma oportunidade desta. Salvar este cachorro? Para que amanhã me venha buscar e me assassine? Ora essa! Viveremos, todos viveremos eternamente, se ele morrer. E morrerá.’ (...) Falava num tom sossegado, neutro, mas por dentro exultava de felicidade. Nem um instante sequer teve a impressão de ser um assassino: pelo contrário, sentia-se um benfeitor cuja ação magnífica aproveitaria aos homens de todos os tempos. Ouvia o mundo inteiro, ávido de viver, soltar gritos de júbilo; via-se eternizado em quadros, estátuas, entrevistas e obras cientificas. Via-se como o maior homem de todos os tempos, festejado por milhões de homens, cercado de reis e papas que lhe viriam beijar as mãos.”


“Olhei assombrado para o meu amigo:
— Você mentiu.
— Sou médico — respondeu-me a sorrir.
E encolheu os ombros:
— Minha profissão não é dizer a verdade: é curar.
— Mas que provas poderá juntar na sua exposição?
— Nenhuma. Ela voltará para casa, triste e feliz, a chorar o seu morto. Nem se lembrará mais da minha exposição.
— Mas se, apesar de tudo...
— Não acredito. Mas se, apesar de tudo, com o decorrer do tempo, ela se lembrar, eu adiarei, darei pretextos. Direi que estou ocupadíssimo, que minhas notas foram dispersadas pelo enfermeiro. Mas, creio, ela há de esquecer, pois não duvida mais...
— E a você, não lhe perturba o espírito a ideia de que...
Encolheu os ombros mais uma vez:
— Como havia de perturbar-me? O meu dever é curar. Que medique com pomada ou mingau, pílulas ou mentira, ninguém tem nada que ver com isso. O que importa é que o doente sare.
Saí de lá mergulhado em reflexões.
Que é o homem:
Se os seus ossos não são ele;
Se sua carne é pó;
Se o sangue do arquiduque e o do servente são o mesmo líquido vermelho?
Que é o homem, então?
Pele?”


“Uma viagem de negócios levou-me de volta, numa tarde de outono, a Berlim, onde oito anos antes passara os dois anos mais belos e mais tristes da minha mocidade. No trem, viera preocupado com os meus negócios, lera também um estudo interessante, e somente ao descer as escadas da estação da Friedrichstrasse é que me senti, afinal, presa de um estado de alma doloroso e profundo, que não se dissipou nem sequer um instante nos três dias que ali passei. Já não sou poeta e não posso exprimir o que é inexprimível; com palavras vazias e anódinas posso dizer apenas que durante esses três dias não vivi, ao que parece, no presente, mas sim nas lembranças daqueles dois anos, cuja cor e perfume eu perdera tão irreparavelmente quanto um morto a sua existência. Talvez só uma pessoa a quem tivessem cortado o braço se recordasse com dor e inveja tão surdas do tempo em que a mão lhe doía quando machucada. Assim, ia eu pensando em mágoas já não existentes e no fundo das quais só então descobria tudo o que há de deslumbrante e mortalmente belo na vida, aquela plenitude do ser, da qual um minuto justifica milhões de anos passados, revelando o sentido do vazio e do caos: a mocidade, a fé em mim mesmo.”


“— Perfeitamente — acudiu o notário — tanto mais quanto você arranjou para eles uma discreta fortunazinha. Ora, de que serve ela, se você morrer? O dinheiro todo vai parar na vara de órfãos: o condado há de tirar a seus filhos tudo o que têm.
Um gesto de Gál János deu a impressão de que o desmoronamento de sua enorme fortuna o inquietaria até certo ponto; mas concluiu com unção:
— Quanto aos meninos, Deus cuidará deles. Deus é mais poderoso do que o condado.
— Não é esta a minha experiência — deixou escapar o notário, ímpio conhecido.
(O servidor de Deus baixou os olhos, mas não encontrou argumentos para tomar a defesa de seu amo contra o condado.)”


“(...) Kis János era um desses homens invisíveis, que nunca ninguém percebe. Passara assim a vida inteira; nem um momento sequer fora uma criatura interessante. Nem forte, nem fraco; nem pequeno, nem grande; nem coxo, nem peitudo; nele nada havia para chamar a atenção. Era como um homem; tinha um par de olhos e um nariz. Tinha bigode também. Nunca lhe ocorria pensamento algum. De manhã, levantava-se; de noite, deitava-se; chegado o momento, casou-se. Foi a última vez que se fartou; também, apanhou uma indigestão daquelas... Não foi soldado. Da sua aldeia não terá saído mais de dez vezes, e só para ir à feira. Durante a vida só riu de verdade uma única vez, quando o pai quis desancá-lo por ter comido sozinho toda a terrina de nhoques: ao vibrar o golpe, o velho perdeu o equilíbrio, caiu e bateu com a cabeça na parede. Morreu disso.”


Paulo Rónai – foto daqui


“— Tia Rébék, este senhor veio de Budapeste e deseja falar-lhe.
A casamenteira, uma velha seca e alta, cujo rosto se parecia realmente com o focinho de um esquilo, lambeu os dedos e cuidou de alisar sobre as fontes os cabelos desgrenhados. Queria aformosear-se. Era mulher.
— Pois fale.
— Só entre quatro olhos. [Expressão idiomática húngara, que significa ‘a sós’]
— Então não venha com companheiro, pois eu também tenho dois olhos.
— Ora! — retrucou o notário antes de retirar-se — tia Rébék talvez tenha mais de cem.
Tal cumprimento pareceu agradar à velha, cujo rosto engelhado e giboso se desenroscou numa espécie de sorriso.
— Sem dúvida, a gente vê certas coisas — respondeu com visível satisfação — embora muitas outras a rainha Molena esconda sob o seu avental. Deus escondeu seus segredos nas ervas, nas árvores e nos corações: eu os faço vir à tona e os ponho juntos, eis toda a minha sabedoria.”


“Závoczki bateu. A porta abriu-se e apareceu na soleira uma menina. Podia ter os seus dezesseis anos. Imediatamente Závoczki reconheceu nela a sua filha. Severa, a menina perguntou-lhe:
— Que é que o senhor deseja?
Ele cobriu com a mão esquerda o lugar do coração, para que a mocinha não visse o buraco aberto pela faca no paletó. Agora bem que podia voltar, pois vira a filha. Mas era preciso dizer alguma coisa: a menina perguntara-lhe o que desejava. Então botou a mão direita no bolso para tirar as três peloticas com que sabia fazer mágicas tão engraçadas:
— Eu sei fazer uma porção de mágicas...
E fez uma careta para ver a filha rir. Mas a filha não riu. Era severa e grave como a mãe.
— Vá embora — disse-lhe ela.
E ia pegar na maçaneta para fechar a porta na cara daquele mendigo. Tinha a mãozinha branca, de dedos finos. Nesse momento Závoczki sentiu renascer-lhe toda a cólera que o fogo levara dezesseis anos a extinguir. A amargura subiu-lhe que nem um mar crescido, e ele deu uma pancada na branca mãozinha que ia fechar-lhe a porta na cara para sempre. A menina encarou-o, voltou a pegar na maçaneta e fechou o portão. A chave rodou na fechadura. Závoczki ficou do lado de fora. A sua cólera se aplacara, e ele sentiu-se terrivelmente envergonhado por haver batido na filha. Perplexo, olhou para todos os lados e sentiu uma dor no coração. Depois virou-se e entrou a caminhar. Ele mesmo não sabia para onde ir. Mas os mortos, mesmo querendo, não sabem ir para outro lugar senão de novo para a morte.”


“Minhas perguntas não tinham por objeto saber a que ponto haviam chegado as suas relações. Eu já via que o amor de Stahl Félix permanecera no ponto onde estava no momento em que avistara Hanna pela primeira vez; no momento em que nem sequer a conhecia, somente a imaginava; quando ele tinha apenas seis anos, apenas um ano — pois Stahl Félix veio para o mundo trazido não pela parteira, mas sim pelo desejo desesperado de Hanna. Ele nascera tão-somente por haver farejado no além, nas trevas do não-ser, o perfume de Hanna, e por haver concebido o desejo de, porventura, nem que fosse uma só vez, beijar-lhe a fímbria do vestido.”


“— Quando chegou?
— Agora mesmo.
— Como assim? Não veio nenhum trem agora.
— Pois é; vim a pé — respondeu Strázsa János.
— A pé? De noite?
— Exatamente.
— É uma pena. Que é que você pretende fazer agora? — perguntou o sábio médico, visivelmente decepcionado.
— Tirar a catarata que o senhor quer que eu tire.
— E acha que terá a mão bastante calma para isso?
O sr. Strázsa encarou o professor com surpresa:
— Como não? Não é nenhum bicho vivo para se mexer.
— Mas, se você andou a noite toda, como afirma, então não dormiu e deve estar cansado.
O ferreiro sorriu:
— Que é que tem? Não vim nas mãos. Faz muito tempo, sr. professor, que não ando nas mãos; só mesmo quando era menino de colo.”


“(...) o pobre lenhador Vaják não parava de xingar a vida, a Deus, que não quer saber de pobre. Passar o inverno todo a rachar lenha, a batucar feio pica-pau raivoso, a terraplenar, a escavar que nem uma geração inteira de coveiros — a fazer de tudo, em suma, menos beber. Sete doidos, dez ladrões, cinquenta comediantes, cem luxúrias moram na mulher: à força de abraços, lágrimas, furtos, lisonjas, ela nos arranca o salário da semana. Só não quer é compreender que a vida só vale alguma coisa quando se está com bebida na barriga. Então é como se a gente existisse e não existisse ao mesmo tempo: esquece enxada e machado, sente crescer tudo em torno, e começa a cuspir e a rouquejar, de tão espantado, senta-se no chão, de tão atrapalhado; depois, vê tudo diminuindo a ponto de soltar gritos no meio de tanta miudeza e de nem ousar mais dar um passo para não pisar na torre da igreja. Grande ou pequeno, a gente sente-se bem de qualquer jeito; chega a crer que a infeliz da mulher voltou a ser donzela, que o filhinho desgraçado nem existe.”


“— Tia Polixena... a senhora nunca amou ninguém?
Um silêncio repentino e gelado, trágico assim como no teatro, antes da palavra decisiva de um fim de ato, ou como num livro, lá onde se põem as reticências, muitas reticenciazinhas mudas.
— É meu segredo! — dizia então uma voz trêmula, de timbre abafado, na noite cheia de pequenos ruídos ofegantes.
Era belo! Um medo estranho me percorreu a espinha — mas no âmago de minha mocidade positiva e intuitiva, bem no fundo de minha alma cheia de pudor e ironia, rondava um riso entediado e zombeteiro. Fiquei com vergonha.
— Amei! — ouvia-se então, de repente, por trás do guarda-vento. — Nunca ninguém soube disso: a pessoa a quem amei nem por sonho podia adivinhá-lo. Ele não era nobre!... Aí você compreenderá tudo...
Ó loucuras, afetações e belezas, altivez selvagem e dissipadora, desenfreada, insensata, comédia grotesca, fogo greguês de uma raça que sentia seu fim, de um tipo de homens que iam dançando para a morte, sentimentalismo falso, orgulho tolo, lembrança arrogante! Eles aqueciam e fecundavam, então — compreendi-o depois — o meu ser de criança que ia desabrochar para uma vida nova. (...)”


“Tem ainda mais oito aulas no dia, e oito vezes terá de mudar de parecer a respeito da riqueza, da pobreza, do matrimônio, da educação, da política, da finalidade da vida, segundo a pessoa a quem fala. Quando, à noite, chega a casa, já nem sabe que opinião tem. Quantas horas de sono são necessárias? Dez, oito, ou chegam cinco? Que é que dá felicidade: o dinheiro ou a virtude? As crianças devem ser esclarecidas sobre os problemas sexuais ou não?... Perdeu há muito o hábito de refletir em coisas complicadas. Os seus alunos ficariam sem compreender. Apurariam o ouvido, tossiriam, e ela devia repetir outra vez as frases difíceis, destacando as sílabas, gritando como os parentes das pessoas surdas que rugem com aborrecimento na corneta acústica cinco e seis vezes a mesma coisa, sempre mais devagar e em voz mais alta, até que desistem e resolvem calar-se.”


“(...) bailava diante dele com pudica reserva, como uma borboleta que tocasse todas as flores sem pousar em nenhuma; palavra de honra, não se via seus pés tocarem o chão. O rapaz, garboso, curvava-se uma vez ou outra sobre ela, como se a quisesse abraçar, depois parava, batia com o pé no chão e jogava a cabeça para trás com altivez; a fadazinha provocava-o, ora fugindo-lhe, ora aproximando-se dele, como se quisesse lançar-se-lhe ao colo, e depois, numa virada, afastava-se de novo, estava longe outra vez: apenas os olhares dos dois mostravam que formavam um só par. A certa altura, o rapaz, como que zangado, virou as costas à sua dama, plantou-se em frente a um cigano e dançou para ele todo o seu despeito; depois, esgotada toda a sua vingança no sapateado — zás! — virou-se outra vez, agarrou a dama pela cintura e fê-la dar várias voltas em torno dele com a rapidez de um redemoinho. A condessa dançava como um elfo.”


“— Não tem mais nem sequer dois minutos — observou. — Não sobra tempo para isso. Se o quarto fosse menos escuro, poderíamos ver.
— Sobrará o tempo suficiente — replicou severamente o velho, com um gesto enérgico.
— Está certo — respondeu o moço, cedendo-lhe o lugar, numa expectativa irônica.
O velho deteve-se à cabeceira do leito e não tomou providência alguma, limitando-se a contemplar, imóvel, os escuros contornos do agonizante.
O moço ia falar, mas de repente notou alguma coisa e debruçou-se sobre a cama, murmurando:
— Acabou-se.
O velho sacudiu a cabeça.
— Morreu — repetiu o moço.
— Não — contestou o velho.
— Morreu — repetiu o moço com impaciência.
Quis abrir a janela, mas a palavra excitada, dura, imperiosa, do velho, deteve-o:
— Não!
O moço espantou-se. Nunca lhe ouvira esse tom de voz. Então o velho fitou-o bem nos olhos, deitando-lhe no ombro uma das mãos. Aquela mão magra e fina pesava.
— Não morreu — disse baixinho, mas numa voz fria de comando. — E nós testemunharemos o ato.”


“Acende-se o fogo. A princípio, uma fumaça rala, acre, levanta-se, apertada entre as paredes. Mas dentro da fumaça há um rebuliço de estalidos que parecem dançar como bailarinos e transmitem ao ar o calor de seu corpo agitado. As centelhas saltitam na estufa como quando os ferreiros batem, bimbã, o ferro na bigorna... O próprio fogo é como o rosto de uma mocinha, a mudar sempre de cores, ora pondo um véu azul, ora mostrando uma fita verde ou amarela nos cabelos, enquanto sopra numa gaita de foles. No fundo, uma chama parda, cor de urso, à voz do fogo.”



Presentes no livro Antologia do conto húngaro (Topbooks, 1998), organizado e traduzido por Paulo Rónai, páginas 54, 288-289, 225, 241, 68-69, 111 a 113, 96-97, 261, 70, 164, 74-75, 151-152, 264-265, 59, 287, 202-203, 220, 48, 190-191 e 343-344, respectivamente.




PS: Os trechos (traduzidos por Paulo Rónai) foram retirados dos contos “Divertimento forçado”, de Mór Jókai; “Música”, de Károly Pap; “Um caso de loucura” e “A lancha”, de Dezsö Kosztolányi; “A mosca verde e o esquilo amarelo”, de Kálmán Mikszáth; “A morte e o médico”, de Jenö Heltai; “Qual dos dois?”, de Géza Gárdonyi; “Amor sem esperança”, de Frigyes Karinthy; “Tragédia”, de Zsigmond Móricz; “Conto de ninar”, de Ferenc Mólnar; “O ferreiro da catarata”, de Kálmán Mikszáth; “Tia Polixena”, de Margit Kaffka; “Auréola cinzenta”, de Dezsö Kosztolányi; “Médicos”, de Lajos Bíró; e “A casa do terreno baldio”, de Andor Endre Gelléri.

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