Lúcio Autran - foto daqui
Consciência
Lúcio Autran
Ao contrário dos homens
Os animais não sabem
que apodrecem. O jumento,
o tomemos como exemplo,
Mastiga sua morte e a digere
com mansuetude dos breves.
Deus (terá sido o demônio?)
quem nos deu a decadência
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O erro
Lúcio Autran
Em outra leitura do Fausto,
acompanho sua gênese.
Revejo, maravilhado: Goethe
demorou sessenta anos para escrevê-lo.
Abro as páginas do jornal e leio:
uma moça americana escreveu
um romance nas teclas do celular,
“assim poderia escrever em qualquer lugar”
(Não conto, por pudor, em que lugares
e situações a imaginei escrevendo).
Vendeu cinquenta milhões de cópias.
Claro que há alguma coisa errada.
Comigo.
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Vozeio
Lúcio Autran
Se a multidão
é boçal.
Imaginem
A multidão
com voz
e opinião.
É esta a nossa idade:
o triunfo da boçalidade.
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Epitáfio
Lúcio Autran
Eu sei que nenhuma sátira
satisfará as minhas madrugadas
Cada vez que se abrirem sob mim
os caminhos abissais das noites.
Terei medo de encontrar uma pedra
desenterrada, onde uma lápide
Me ameaçará: “Aqui jazia, agora livre,
aquele que furtou as chaves do abismo”.
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Uma historieta bem tristinha
Lúcio Autran
Havia em certo país um escritor que não lia.
As palavras brotam como as plantas, ele dizia,
regadas a feiras e festivais, a festas e bienais
anuais ou mesmo mensais, jantares concorridos
e comensais da moda (como cansa ser escritor!).
Dia houve em que acordou cheio de inspiração,
(os autores que não leem têm muita inspiração).
Correu ao teclado, suas mãos estavam duras
só as pontas dos dedos balançavam levemente,
e os pesados pés presos ao chão o contiveram.
Tentou se arrastar, era inútil, conseguiu se alastrar
até o espelho, fiel companheiro. Horrorizado, viu:
tinha virado árvore
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“Emergem dos desvãos do Inferno recrutando as almas
[paralisadas de pânico
derrotam os demônios individuais e ressurgem nos
[continentes da consciência
coletiva, na forma de homens e de guerras, vão arrebanhando
[outros homens
para colheita da carne, ceifa e ceia disformes. Darwin ao
[avesso caminham
em constante metamorfose nos rumos da boçalidade,
[universo em retração,
para a concentração do tempo e da morte no nada, num
[tempo de horrores.
A cada século ressurgem do mar de merda onde vivem, do
[qual aos poucos
se livram e limpam as fardas, até restarem somente seus
[perfis de heráldica,
os bigodes fálicos e as unhas limpas, que os assassinos não as
[sujam jamais.
Trazem nas mãos asseadas por manicures e carrascos, é
[preciso guardá-las
para um brinde de sangue na alcova de ‘el bispo de Almeria’,
[e que o cheiro
das covas das vítimas não cause asco às narinas de generais e
[de cardeais
Los caballos negros son. Las herraduras son negras, levam
[lâminas curvas,
ou cruzes, bandeiras de inequívocas cores, alquimia de tornar
[almas em gás
nos arquipélagos da morte. Muros separam, distância surda,
[amantes e filhos,
exílios nas câmaras onde, no açougue da infâmia, ouço os
[órfãos e seus pais
E sempre uma horda de cegos os seguirá, e mesmo depois de
[mortos ainda
cantarão hinos, os olhos ofuscados pela incurável
[enfermidade dos fanáticos.
Como padres e pastores, os demônios misóginos odeiam o
[desejo e a vida
incensam ervas em estático êxtase aos xamãs e imãs da
[brutalidade, um dia
subitamente submergem, deixando a legião de cegos à espera
[do Messias.
Eis que emergem numa noite de sexta-feira treze, dia em que
[a bruxa Friga
reúne-se a Satã, data malsã da maça de Eva nos condenando
[ao pecado.
Ressurgem na festa de Eros, as bandeiras de burcas e fêmeas
[infibuladas
os véus negros com que querem vedar o rosto à humanidade.
[Morte ao prazer!
Nos lábios o gosto de sangue e das mil virgens prometidas
[aos jovens suicidas.
Talvez perguntar: por quê? Mas nem isso consigo, não há
[resposta possível,
resta velar por esses rostos que talvez eu nunca visse, jovens,
[alguns belos,
outros nem tanto, mas todos carregam nos olhos a beleza
[lunar e imprecisa
daqueles que jamais saberão que morreram por quererem
[celebrar a vida”
“Conheço esses homens, quem são e como caminham
num silêncio conformado. Carregam uns olhos bovinos
e apascentados, enquanto roçam os corpos num arado
que sulca suas peles e suas almas na lavra da angústia.
Caminham no nada e nada perguntam, se aram a terra,
ou são arados, deambulam por um prado (ou labirinto?),
nos ritos cabisbaixos e catatônicos do silêncio atônito.
(...)
Alguns poucos ainda buscam por bússolas tontas sussurrando
o vento norte, mas não há vento nem norte, não há esperança
de fuga, só uma porta ainda os separa do tempo dos homens,
a mesma porta que os levará para fora do tempo e dos homens.
Ombro a ombro, suores em febre misturam-se afluentes, roçam
as peles em pânico no rumor da força da multidão amalgamada
na fúria de quem descobriu um insepulto fim, sem escatologias.
Uma morte sem cadáveres da qual eles morrem todos os dias.
(...)
Eis o cheiro da fuga do homem: suores, urina e excremento,
ainda resta uma réstia de fé: eles chutam cabeças exangues
mas não é a vida o que tecem em pânico, é o furor da fuga
que cega, é apenas outro ponto do próprio e profano sudário.
Uma última esperança! Correm entre poças de merda e sangue,
mas súbito súcubos ou anjos impedem o êxodo e a esperança.
Quem lhes virou as costas, Deus ou Demo? Mas isso importa?
Pois jamais saberemos se existe o homem além daquela porta.”
“Em nuestra America, nestes tristes trópicos, sempre mudam
[de pele,
seduzem com miragens a multidão mesmerizada pelos olhos
[verdes,
as mentiras da puta insidiosa a quem tanto amamos. A cobra
[tropical
já despiu sua roupa, deixou sobre as árvores a antiga pele, a
[diáfana
lingerie, véu da noiva para quem, mesmo traídos, cantamos
[um tango,
‘mostrá tu risa!’, sangue e lágrimas jorram dos nossos joelhos:
[‘vuelve
chorra!’ A cínica, sorri cicia sussurra roça nas pernas o ‘esse’
[do corpo,
falo e fêmea, homens e mulheres nos entregamos.
[Conhecemos sua voz,
sempre o mesmo soprano, sibila da serpente, por que então a
[seguimos?
(...)
A serpente outra vez espalhou os seus ovos, e já eclodiram
[entre nós,
brotaram entre as gentes as pequenas cobras, inocularam a
[discórdia,
o veneno do ódio, tambores ritmados anunciam as trombetas
[da morte,
São as exéquias do amor. E enquanto sangramos fraticidas,
[ela cicia
num gozo suicida, sua língua derrama em nossos ventres seu
[veneno
invisível, e o seu sêmen em nossas bocas. E sobre nossos
[cadáveres.”
Presentes no livro de poemas “soda cáustica soda” (Patuá, 2019), de Lúcio Autran, páginas 121, 69, 67, 77 e 108, respectivamente, além dos trechos dos poemas “Três tempos da Dança dos Daemons (Nova Valsa de Valpúrgis)” (p. 37), “Escatologia 5 — A Procissão dos enfermos no cais do desterro” (p. 93) e “A pele II” (p. 128), presentes na mesma obra.
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