Cyro de Mattos - foto daqui
Negrinha Benedita
Cyro de Mattos
Por causa
dum frasco
de cheiro
apanhou
de chibata.
Os outros,
assombrados,
não puderam
fazer nada.
Sem andar
dias ficava.
Quando sarou,
falou ao vento
que ia embora.
Pelo mato
foi voando,
escapou
da cachorrada.
Teve sede,
teve fome,
levou espinho
pela cara.
Para trás
não olhava.
Com uma
espada afiada
que lhe deu
uma mão oculta
um dia viu
no quilombo
que, ali, era
sua morada.
Aconteceu
que depois
a cabeça
da sinhá
amanheceu
decepada.
Ninguém viu
como se deu
na escuridão
daquela noite
a revanche
assim marcada.
Por causa
dum frasco
de cheiro
que ela pegou
pra ser cheirada.
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África
Cyro de Mattos
Longe, tão longe.
na savana soprando
o espírito de Deus.
A aldeia uma terra
que na semana usa
manhãs de brilho,
ventos, chuvas,
contas, búzios.
Entre os cânticos,
passos, braços,
calor do peito,
suor do corpo,
ancestral laço.
Longe, tão longe
estrelas piscando.
Cachos de prata
descendo da lua
na noite calma.
A natureza plena
como deve ser
vista e tocada.
Temida no claro,
caçada no escuro
sob perfeita ordem.
Menos para o golpe
do capitão branco,
de vilania o portador,
o litoral agitando.
No saque que urdiu
ferro inconcebível
encarnado de sangue
extirpou da mãe
o filho, sem dó.
Homem no porão
(em África venceu o leão)
agora no ferro, preso,
horror e lágrima
dizem que é bicho
recuado no ar fétido,
seu corpo amassado,
marcado sem perdão.
Impagável é esse borrão
que o fez sustentar
com fortes chibatadas
todo o peso terrestre
de uma cena perversa,
voraz em boca enorme.
Do sonho atrás despido,
jogado na cova rasa,
órfão, sem presteza,
sina varada no exílio,
apagado, mais nada.
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Orixá
Cyro de Mattos
Ouve a queixa,
aconselha.
Dá remédio,
concede graça.
Abre caminhos,
desfaz quizília.
Resolve desavença.
Consola o triste,
enxuga o magoado.
Conduz essa noite
onde há cantigas
que apagam brasas,
enterram troncos
ao som de dores
vindas nos rastros
doutros tempos.
Rumo que clareia
todas as tormentas.
Sem haver distâncias
entre o céu e a terra.
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História do Corre-Costa
Cyro de Mattos
Punhal tecido de pranto
dessa hora desalmada
jamais houve na África,
vagas de sal soluçam
porão na escrava rota.
Um dia, o mar revolto
naufraga amara carga,
salvá-la em troca da alma
da filha e da esposa.
ao príncipe das trevas,
o preço do Corre-Costa,
português embarcadiço
feito senhor de roças.
E ondas do litoral agitado
viram a terra estremecer,
abismo esconder o sol,
treva ficar de emboscada.
Chão recusar dois corpos,
um da filha inocente,
o outro da mulher amada.
Sangue correr na terra nua,
demorado gargalhar de bruxa,
uivar de vento na estrada.
Na mata, açoite inclemente,
passos gemidos na canga,
em pânico fuga das sombras.
Conta minha avó memória
que fúria do Cão só se afasta
das serras e das baixadas
quando abafar na goela
o choro da última alma.
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Barraca
Cyro de Mattos
Abará, acarajé,
adum, ajabô
lelé, amalá
arroz de hauçá
caruru, vatapá
xinxim de galinha
aberém, acaçá
bobó de camarão
e ainda mugunzá.
Quem vai querer?
se provar, vai gostar.
Vai voltar e dizer:
— Hum, é bom.
Danado de bom.
Mais, bote mais,
só no céu é melhor.
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"O muito sem Deus
no mundo é nada,
o pouco com Deus
é o muito que sobra."
"Gritos como sinais
ecoam na planície,
saltam centelhas
das vozes ligadas
na corrente frenética
embarcada na África
para a Bahia negra
caindo no transe.
Nenhum outro batuque
trepidando na alma
tem mais grandeza
do que esse que faz
as distâncias perto,
joga raios do céu,
bate envolto em magia."
"Preto velho
ensinou,
sim, senhor,
ensinou,
com sua figa,
cachimbo e pó,
o seu patuá,
seu canto manso
e uma fé maior
do possuído tira
o encosto pior."
Presentes no livro “Poemas de terreiro e orixás” (Mazza Edições, 2019), de Cyro de Mattos, páginas 33, 30, 57, 18 e 22, respectivamente, além dos trechos dos poemas “Oxalá” (p. 59), “Nação” (p. 35) e “Preto Domingos” (p. 23), presentes na mesma obra.
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