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Dez passagens de Santiago Fontoura nas crônicas “A vida é quase sempre quarentena”

Santiago Fontoura  Foto: Edgard Oliva


“Deus pode ser um grande delírio humano, Jesus Cristo talvez seja tão verídico quanto falecimento de anão (a ciência já provou que anão não morre, desaparece) e o espírito santo decerto não passa de uma pomba estúpida. Tudo que vier de outras religiões também é absolutamente passível de questionamentos. Somente a veracidade dos signos impede que eu me filie à associação interplanetária dos ateus. (...) Na vida adulta, eu já podia me doutorar em ciências astrológicas do comportamento humano. Dava diagnóstico: ‘Isso acontece porque você é de Peixes.’ E comecei então a fazer um tipo de seletividade tomando os signos como referência. Na faculdade, para participar de trabalhos em equipe, eu precisava antes ter a certeza de que não houvesse entre os membros um leonino sequer. São insuportáveis quando o quesito é aparição pública. No trabalho, tentava manter distância estratégica das arianas. Competitivas, são capazes das maiores atrocidades para se estabelecer. O caso dos arianos era parecido, mas ameno. Sim, passei à análise astrológica a partir do gênero. Ou vão dizer que Mark Zuckerberg (o dono do Facebook) e a rainha da Inglaterra têm características idênticas somente porque são do signo de Touro? Talvez a comparação seja esdrúxula, já que a realeza imortal nem deve ter signo, uma vez que nasceu alguns anos-luz antes do surgimento dos astros”.

Crônica de 23/07/2020, leia aqui


“Confesso que não vejo com bons olhos casais que, mesmo sem filhos, depois de mais de dois anos, dizem ter relações sexuais constantes e intensas. Nunca sei se estou diante de cínicos mentirosos ou se sou eu que morro de inveja dessa exceção à regra que é o celibato profano da vida conjugal. Por isso, quis investigar o que nos faz ter tanta dificuldade em admitir que, talvez, o casamento seja o reduto em que, com o passar do tempo, somos levados a aceitar a morte da libidinagem. (...) o terceiro vilão – que se mexe, respira e em curto espaço de tempo é capaz de elaborar frases complexas: o filho. Deus, quando inventou o filho, do alto de sua castidade, disse-lhe: ‘Vai, filho, e dê fim àquele parque de diversões eróticas. Nunca mais corredor, fogão e mesa terão utilidades outras.’ Órgãos genitais, outrora sexuais, se transformam, por longo tempo, em meros excretores de urina e fezes. Certa vez, compartilhei com minha cunhada, que havia acabado de ter o primeiro filho, a incontestável verdade: ‘Filho existe para destruir o casamento. É sua função na Terra.’ Ela ficou horrorizada. Excomungou-me. Disse que filho é uma benção de deus. Que a vida que nascia de um ato amoroso vinha para unir o casal. Já na metade da segunda gravidez, ela desabafou: ‘Você tinha razão.’”.

Crônica de 26/07/2020, leia aqui


“Jamais houve seios como os de Lucinalva. Rigorosamente empinados. Duros feito rocha. Ela, à época, com 17 anos. Eu, máquina masturbatória, tinha 13 anos quando Lucinalva apareceu em minha vida. (...) passei a frequentar o apartamento de minha madrinha, por qualquer motivo que fosse – de uma benção inesperada pela manhã até um pedido de açúcar já perto da hora de dormir. Eu precisava ficar perto daqueles seios. Havia neles a resposta para perguntas que eu ainda não havia feito. A perfeição estética, às vezes, cobra um alto preço para existir. O traçado impecável que a providência divina deu àqueles seios causou um esperado desleixo no restante do corpo de Lucinalva: as nádegas rasas como tábua, pernas finas e levemente tortas, braços longos demais para seus precários um metro e sessenta de altura. Mas tudo que eu via eram os seios de Lucinalva (...) perguntei-lhe se ela usava sutiãs. Sorrindo, ela me respondeu: ‘Tenho, mas não uso. Aperta. E dificulta pra fazer umas coisas boas.’ Ao sair dali, fui direto ao banheiro, e pela primeira e única vez na vida me masturbei na intenção de uma frase. (...) Não sei quantos minutos durou aquele êxtase. A vida nunca mais me proporcionou experiência tão profunda quanto aquela. Antes de morrer, segundos antes de não mais sentir a pulsação da existência, a única coisa que desejo é ser preenchido pela mesma paz de espírito que senti enquanto chupava os seios de Lucinalva”.

Crônica de 20/07/2020, leia aqui


“(...) As mazelas da alma humana não sofriam ainda a camuflagem das privacidades digitais. Era possível saber, ora com discrição, ora desavergonhadamente, da omissão de Bino, dono de um bar que cheirava a banheiro de bar, diante da volúpia sexual de sua esposa, que levava machos de todo tipo para satisfazê-la no andar de cima do bar, onde a cama jamais guardou mau cheiro. A virgindade eterna de Arnoldo estava evidente nos flertes deselegantes que impunha às adolescentes e no seu corpo assimétrico – a protuberância da cabeça destoava do tronco raquítico. Taco ainda não cantava sua detestável alegria no lado de fora da birosca. Araponga, com suas mentiras, era capaz de dizer que andava sobre as águas – anos depois a cadeira de rodas restringiu suas lorotas. Murilete subia das Pedreiras para dizer ‘Deus te ouça’ sempre que, frente ao seu rebolado, algum macho antiquado o mandava ir tomar no cu. Miminho ratificava a própria virilidade nas partidas de dominó. E na penumbra que se fazia à noite entre as barracas da balaustrada, mocinhas estudantes de ensino médio – que durante o dia trabalhavam como domésticas – saboreavam os prazeres da carne ainda sem culpas neopentecostais”.

Crônica de 15/07/2020, leia aqui


“Há uns dois anos, estive com Neila num desses eventos chatos que somos obrigados a estar depois que se tem filho: aniversário de criança. Típica festinha de classe média que vota em Boulos. Brincadeiras ao ar livre num quintal de uma casa num bairro bem distante da pobreza. Banho de mangueira. Vários desses seres pequenos juntos, ao mesmo tempo. O pior deles era o Antônio. Branco como a neve, endemoniado como Linda Blair no filme ‘O exorcista’. O infeliz pulava nas poças que se formavam no gramado, molhava os adultos, pegava a mangueira para si, brigava pelos presentes da aniversariante. O pai, lerdo, ficava como uma sombra florida, tentando, à base de toques corporais sutis, conter o demônio, com a voz baixa e serena: ‘Antônio, não faça isso. Venha cá, Antônio. Assim você molhas as pessoas e elas não querem ser molhadas. Por que está fazendo isso, Antônio? Isto não é certo, meu filho.’ O desgraçado merecia uma surra de cansanção (o pai, não o filho). Aquela situação era o retrato do grande problema que assola a nossa baixíssima classe média: a intenção de transformar os filhos em seres super-humanos (no sentido mais politicamente correto possível do termo, nada do super-homem de Nietzsche). Eu, cá na minha maquete que faz rodízio com os cenários semelhantes aos da Divina Comédia, prefiro acreditar e aceitar, com dores e amores, a dica que o finado José Ângelo Gaiarsa me deu num de seus livros: ‘Um apartamento com um casal e uma ou mais crianças, o tempo todo juntos, é um pequeno hospício.’”.

Crônica de 08/07/2020, leia aqui


Santiago Fontoura  Foto daqui


“Para essa gente que arrota brócolis, aplaude o pôr do sol e transforma maconha em incenso não é suficiente alguma coerência, com leves lampejos de contradição. É necessário que seja coerência absoluta, irretocável, coesa, integral e irrestrita. Por fim, do bem. Porém, inalcançável. Mas é preciso que alguém lhes diga isso. Porque senão estaremos muito longe de diminuir mortes futuras advindas da multiplicação anormal e descontrolada das células. Sim, em breve, a busca pela plena coerência causará câncer. O bacon já pode tirar das costas uma culpa que lhe amaldiçoou por décadas”.

Crônica de 01/08/2020, leia aqui


“Até mais ou menos dez anos de idade, deus, para mim, era equivalente a minha mãe. Eu nutria algum amor e necessidade de me sentir seguro, e ao mesmo tempo vivia tenso temendo que qualquer falha minha fosse suficiente para levar uma surra. No caso de deus, a surra seria o inferno. No caso de minha mãe, muito pior: o cinto de couro e a ardência do solado das sandálias havaianas. A diferença entre essas duas entidades repressoras ficou evidente no dia que resolvi desafiar deus. Na geladeira, minha mãe havia estabelecido uma regra: a garrafa de água maior serviria para todos menos para meu pai, que detinha uma garrafa menor, e de plástico. A separação se dava em função de meu pai ter o hábito de beber água diretamente na boca da garrafa. Sempre que o via entornando o líquido precioso sem se submeter ao ato civilizado de utilizar um copo, eu pensava: ‘Eu quero isso pra minha vida.’ Eu abriria mão de todas as figurinhas que estivessem faltando no álbum só para saborear, por um dia que fosse, aquela fundamental subversão”.

Crônica de 21/07/2020, leia aqui


“(...) Os pedaços de boi, vaca, porco, galinha e adjacências me convenceram de que a vida, somente a vida, existe. A morte é apenas parte de um ciclo ininterruptamente vivo. A vida, enquanto matéria, então, já é eterna. Desconfio que não há metafísica que fique de pé frente a esta constatação. (...) Acatei aos quase três quilos de alcatra que o atendente me entregou – apesar de ter pedido dois quilos – menos por equivocada condescendência, e muito mais por estar deslumbrado: aquele tanto de carne me alimentaria na mesma proporção em que maior parte de tudo o que reveste meu corpo também servirá de alimento. Nesse dia, eu tomei a decisão mais importante de minha vida. Sem mais delongas, avisei a minha esposa: ‘Quando eu morrer, não quero mais ser cremado. Me enterre. Ou me bote na gaveta. Me jogue até no Dique do Tororó. Nada de me transformar em cinzas.’”.

Crônica de 03/08/2020, leia aqui


“(...) Havia mais dois apartamentos lá embaixo: num deles, dona Marocas e suas muitas filhas. Até hoje não sei quantas eram. Não havia homens na casa. Lembro que, por algum motivo (embora qualquer coisa fosse motivo), entrei lá e precisei ir no banheiro. Assim que abri o vaso, boiava na água um tolete de porte médio e amarelo. Aquelas mulheres cagavam cocô amarelo. Fiquei anos pensando o que seria necessário comer para também fazer cocô amarelo. Jamais consegui fazê-lo. A vizinha do lado dessas mulheres que cagavam a luz do sol era dona Nelcy. Eu nunca vi dona Nelcy sorrir. O semblante era sempre fechado. Para boas e más notícias. Nós usávamos o telefone dela para receber e fazer ligações (olha só o nível de interação entre vizinhos!). Um dia, fui atender uma tia minha. Era domingo à noite. Na tv de dona Nelcy passava Os trapalhões. Nem prestei atenção ao que minha tia falava porque não conseguia crer que mesmo diante do programa humorístico dona Nelcy era incapaz de, ao menos, esboçar leveza na cara carrancuda. Só o irmão dela, que devia ter uns 5 metros de altura, era velho também e parecia maluco, se acabava de rir do programa”.

Crônica de 11/07/2020, leia aqui


“‘A vida é uma causa perdida’. O finado e trágico Antônio Abujamra repetiu essa frase em todas as edições do programa ‘Provocações’, na TV Cultura. Desde a primeira vez que a escutei, passei a utilizá-la e afirmá-la constantemente. Diante dela, as mais variadas reações. Muitos não entendem a frase. Alguns, assumindo a ignorância, perguntam o que aquilo quer dizer. Não são poucos os que entendem e apontam dedo em riste contra esse meu pessimismo – que, desavergonhadamente, julgam como um pensamento negativo ao qual eu precisaria me desfazer para que as coisas em minha vida pudessem ter sucesso, pois com toda aquela carga maligna seria impossível alcançar meus grandes objetivos. Apenas nunca soube exatamente que objetivos eram estes”.

Crônica de 17/07/2020, leia aqui

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