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Dez trechos da revista Laroyê #03



“na rua deserta, borboletas voam no esforço pela continuidade da vida. alheias às angústias e medos, elas enfeitam a tarde. tão miudinhas. tão frágeis. verdinhas-translúcidas, amarelas-branquinhas, livres e leves, elas dançam, elas giram, elas resistem, elas salvam a moça que assiste a tudo sozinha do lado de dentro da janela.

(...)

uma moça. duas moças. três moças. quatro moças. tantas moças, todas negras, sobem apressadas, logo cedo, a ladeira do morro do gato. e descem no final da tarde, exaustas, após servirem por horas a fio homens e mulheres de bem que defendem no twitter o distanciamento social, o auxílio emergencial e dormem tranquilos em suas camas king size cobertas por lençóis de algodão egípcio 400 fios.

(...)

tricentésimo nono dia. escrevo para habitar meu desespero.

(...)

cinquenta por cento do pulmão comprometido. por que ele e não eu? por que não o prendi no meu abraço? quem escutará os meus silêncios? quem me fará rir até chorar?”

[Mônica Menezes]


          “A senhora das águas e dos governos compreendeu o destino daquela cidade escolhida para ser entreposto por meio das artes de visualizar o que está para acontecer, e que domina bem. Até então, aquele território vibrava nas redes do canto de outra encantada e celebrada pelos povos que chamavam a baía de Kirimurê. Não tardou para ser forjada a aliança entre as forças de nomes diversos, mas conectadas em um mesmo ethos: Janaína, Mãe D’Água, Oxum, Dandalunda, Kayala e Iemanjá.
          E o Senhor dos Caminhos gargalhou de novo. Como havia pensado antes que o pensamento ganhasse forma, sua Cidade da Baía ia ficar cada vez mais potente. Para expor seu plano nem precisou dizer muito, pois Oxum arqueou a sobrancelha em entendimento absoluto e ‘aceite’. Ela seria a mãe dos filhos da cidade nascida com vocação de abrir as portas para o vai e vem pelos caminhos de tantas potencialidades.
          Esse acordo entre deusa e deus chegou aos ouvidos, pensamento e coração de outro bardo, cantador, poeta arteiro e versado em entender, mas não contar tudo sobre o mistério; apenas o que é preciso saber para sentir. E foi então que Gerônimo compôs É d'Oxum (...) Este canto versa sobre as alianças mágicas traçadas nas águas receptoras de mistérios não à toa chamada, em português, de Todos-os-Santos. Os lusitanos pensavam estar no controle, mas os povos donos da terra se aliaram aos recém-chegados de forma compulsória. Estes grupos e mais dos que viriam depois, forjaram uma aliança que só deu maior peso a essa consagração da baía, e por extensão à cidade que se abriga às suas margens, a todos os sagrados possíveis.” [Cleidiana Ramos]


          “Cresci com um pendor para a penumbra, para me esgueirar pelos cantos. Uma discrição que beirava a ausência. Preferia o cercadinho da minha casa à convivência com os outros meninos. Ocupava o tempo lendo o que me caía nas mãos. Alguns quadrinhos, revistas de fofoca, enciclopédia Barsa. Eu havia adquirido uma ilustração genérica e um conhecimento apenas superficial, até entrar para a faculdade. Eu ainda ignorava as profundidades.” [Marcus Borgón]


          “Um adorador dos orixás dirá que ele se faz presente de muitas maneiras: no transe em que arrebata seus iniciados, em ritmos e melodias que o evocam, em seus símbolos e imagens, em animais ou plantas de sua escolha, em danças cheias de seu frenesi, nos assomos com que empolga até mesmo profanos, quando inspira, espicaça, anima ou agita quem sequer o conhece. O devoto pode ainda dizer quer ele tem presença assegurada em todos os atos de culto, visto como Exu Odara é o portador das oferendas, sacrifícios e preces, agência indispensável nos principais sacramentos do candomblé e dos ritos africanos que lhe deram origem. De resto, não se podem esquecer as aparições surpreendentes em que o poderoso Elebará, cavalgando sonhos ou penetrando de súbito no curso da vida cotidiana, toma inúmeras formas aos olhos abertos para seu mistério: feição de criança inocente e malina a fazer traquinagens incríveis, de homem embriagado ou de cavalheiro elegante e irônico, de moço bizarro, de mulher assanhada, de bicho esquisito (cão, ave, serpente, qualquer coisa viva e fogosa). Mesmo no que a gente considera inanimado ele é capaz de manifestar-se com um toque extravagante. Além disso, para quem o cultua Exu é capaz de revelar-se sem propriamente aparecer, na irrupção de um acontecimento inesperado. (...)
          O difícil é separar umas das outras essas manifestações. E o problema se torna ainda mais complicado quando a gente se lembra de um dado perturbador da teologia africana (e afro-brasileira) em que o divino Mensageiro figura com destaque: no seu panteão, Exu vem a ser um orixá que se associa a todos os outros, irmãos que não raro falam por sua boca. É um mediador entre divinos e humanos, entre os vivos e os mortos. A um tempo, incorpora a distância irrecorrível entre esses domínios e encarna o mais imediato — pois está presente em nosso corpo, em nossa gana: é um Senhor do Corpo.” [Ordep Serra]


          “E o céu? Você acha que o céu existe? Eu achava que sim, até o senhor me fazer essa pergunta, agora não sei mais. Uma vez um erê me disse que o céu é a mãe do arco-íris. Rindo, o motorista avisa, você é mais confusa do que eu. Mas o céu, menina, esse existe. É mesmo? Por que o senhor tem certeza? Existe porque tem função. O céu é o tampo do mundo, como a lona de um circo.
          Essa é boa. O senhor parece taurino. Eu sou taurino mesmo, como é que você sabe? Um touro reconhece outro e só um taurino para justificar a existência do céu pela necessidade de um telhado para o mundo.
          A Terra é o circo e o céu é a lona. Mas é lona furada, porque de lá cai chuva, arremata o motorista. É, sim! O senhor tá certo. A chuva cai e enche o mar. E o mar vai dar aonde? O senhor sabe aonde o mar vai dar? Essa é fácil! Uai, é mesmo? Aonde é?” [Cidinha da Silva]


          “Não se pode confiar na PM.
          Jaime Anão andava pra cima e pra baixo com uma imitação de farda ajustada ao pequeno corpo, repassando as ordens dos policiais militares que tomavam conta de nossa área. A galera do tráfico tinha sido expulsa, parece que correu todo mundo para os lados da cidade baixa. 
          Aderimos à nova ordem. Todo mundo precisa sobreviver. Eu entendo. Só que Jaime Anão gostava desse negócio de ser piru dos homens. Isso ninguém perdoava. Não sei dizer o motivo, mas ele caiu em desgraça com os PMs e o pessoal da rua se aproveitou. Os PMs assistiam, distantes uns dez metros da cena. Gargalhavam, assobiavam, aplaudiam enquanto bebiam encostados nas viaturas.
          Jaime Anão ficou nu. Juninho cortava os longos cabelos dele com uma tesoura. Um outro cara pintou a boca com um batom vermelho. Alguém apareceu com uma calcinha vermelha e uma peruca. Juninho esticou o pau de Jaime Anão e fez menção de cortá-lo com uma tesoura.
          ‘Vai virar Jana, vou abrir uma buceta em você’.” [Flávio VM Costa]


          “A Espada de Ogum pertencia a um português falador apelidado Bololó, conhecedor das folhas. Alguns até diziam ser estudado, doutor em botânica. Não seria tonto de recusar um pedido do feirante mais antigo. E foi assim que Piloto descansou pela primeira vez os braços sobre um balcão. Entre as paredes da loja, de onde avistava a rua que ia dar no ferry, sentia-se importante de crachá: José Cândido. O problema é que não sabia ler. De alho a rosas, guiava-se pelo instinto em um universo iletrado que resistia a desaparecer frente àquele outro, no qual Bololó consultava livros sobre a origem das espécies.
          ‘É fácil, caso não localize nas páginas, basta jogar no Google.’
          Cândido olhava o compêndio de botânica, e a máquina sobre o balcão, sem se sentir no direito de aprender. Nunca estivera próximo de um computador, assim de usar, de ter um seu, de se permitir navegar ou mesmo tentar entender como se dava aquela navegação. Não saber ler nem era um drama. O mundo lhe chegava pelas coisas. No que intuía, conformado, ser aquela outra forma de leitura. Pois um peixe é um peixe, estando morto ou vivo, e não precisa ser lido ou escrito para que se saiba se está podre ou se tem escamas. Do mesmo modo, imaginou lidar com as folhas.
          Dias a fio, dedicou-se a associar cada espécie às suas forças, sentindo a textura entre os dedos, levando ao nariz os maços. Quando desafiado a entender, arrancava um naco e punha na boca, identificando na língua o que era insosso, azedo, amargo. Por dois meses, deu certo. Atendeu fregueses muito falantes. Alguns chegavam já anunciando a encomenda e não faziam cerimônia quanto a procurar o que queriam por si mesmos nas prateleiras de folhas.” [Kátia Borges]


          “Quando passei ao lado do palco, vi uma multidão hipnotizada a olhar para um ponto específico entre os músicos. Parei, abri minha cerveja e dei um gole. A atenção de todo o público se concentrava no cantor da banda. O sujeito, para meu espanto, deveria ser uma das pessoas mais feias do mundo. Era magro, desajeitado, não se vestia bem, o cabelo aparentando ter sido cortado por um serrote cego, a boca com dentes pontudos e amarelos como os de um animal, os braços pálidos cobertos de pelos muito pretos e os olhos injetados de vermelho. Surpreendentemente, os demais componentes da banda representavam o seu oposto: tinham cara de filhinhos de papai que foram criados com leitinho morno pra não queimar a língua. Eram fortes, saudáveis, típicos estudantes de escola particular com pele macia e dentes brancos. Havia um baixista, um baterista e um guitarrista. Todos os três bonitos de maneiras diferentes. Contudo, as pessoas estavam encantadas justamente por aquele cantor de aparência medonha e voz possante. Que misterioso magnetismo ele exercia! Observei a plateia mais atentamente e notei uma grande quantidade de lindas meninas gritando, dançando e chorando ao mesmo tempo. Sem perceber, mesmo achando a música pobre, comecei a balançar o meu corpo da mesma maneira que os demais balançavam os corpos deles, olhos presos nos passos e gestos teatrais do vocalista. Terminei minha latinha de cerveja e continuei a dançar, tomado pela certeza de que não voltaria ao meu posto e não mais precisaria de bermuda e camisa de marca para conquistar o amor de ninguém.” [Lima Trindade]


          “Nas calçadas, o abandono se perpetuava. Pessoas morriam a caminho de casa, sem retorno, petrificadas em seus gestos, risos, suspiros. Correntes de ar advindas dos subterrâneos traziam a maldição, numa espécie de Vesúvio invisível que massacrava a Cidade. Eram cinzas tóxicas que penetravam os pulmões, ossos e o corpo, enquanto o sangue, em combustão, explodia. Estávamos sem ar. Mais uma vez, em nossas vidas, não conseguíamos respirar. O contato daquela experiência química com a atmosfera marítima e com a história de sangue do lugar provocava o estado pétreo dos corpos. O medo rondava nossas pupilas. Comíamos investigando se ainda havia paladar, olfato e sinais dos sentidos. Uma anosmia coletiva impedia de sentirmos o odor dos mortos, que grassava em toda parte. As gentes eram tomadas pela demência, fraqueza do pensamento, tibieza que rondava o estado das pessoas, cuja musculatura já não comportava os ossos, o medo, o esqueleto, o desespero e a consciência. Buscava-se oxigênio. Matava-se por oxigênio. Aviões de oxigênio cruzavam horizontes, invadiam os céus e se chocavam no mar.

          (...)

          No Passeio Público, um homem negro e carpido pelo tempo, cego, muito forte e bonito chupava mangas amarelas, maduras e doces que caíam das árvores diretamente em suas mãos, como se ele ordenasse a queda. Era Tirésias com o seu bastão, cumprimentando os frequentadores do lugar, inclusive as deidades anfitriãs, explicando às divindades forasteiras o que acontecia ali. Os deuses de outras terras resolveram pedir permissão aos Deuses da Bahia para se mudarem temporariamente para a Cidade. A Baía é um Golfo! Deuses caminhavam pelo Campo Grande e se sentavam nas escadarias do Teatro Castro Alves, tomavam toda a arquitetura do lugar, entristecidos.” [Rita Santana]


          “(...) um campus universitário aberto, frondoso, arejado... Aproveite, pois não vai durar muito. O objetivo está posto e é nítido: já dá pra ver prédios residenciais e comerciais subindo no lugar desses pavilhões de aula. Ou ruínas, embora duvide disso, pois não deixarão de aproveitar o terreno para aumentar suas fortunas.
          Aqui deixou de ser espaço de resistência pra Camila, talvez ela consiga em outro lugar, em outro momento. Eu mesmo vi essa garota sendo perseguida até o ponto de ônibus da Adhemar de Barros, cercada por um grupinho de fortões de camisetas amarelas, a ouvir torpezas, tipo, vou lhe foder toda, vou lhe ensinar a gostar de macho, você vai aprender a gozar num caralho, vou arrancar na gilete esta sua tatuagem, filha de satã! E mais outras ameaças vis, coisas que estão na lei como crimes, mas que atualmente dizem ser ‘exercício do direito de expressão’.” [Carlos Barbosa]


Presentes na revista Laroyê #03, páginas 67-68, 19-20, 30-31, 07-08, 14, 59, 55, 53, 45-46 e 39-40, respectivamente.

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