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Cinco poemas e três passagens de Jovina Souza no livro O levante da fênix

Jovina Souza (foto: Tom Correia)


Hostilidades do tempo
Jovina Souza

Foi um momento ontem e já passou seu encanto.
Ficou na letra, marcada pelo desejo de retorno.
Viver novamente e sempre as delícias de anteontem.
O tempo se afastou da sintaxe e o verso não registra o que se foi.
Quando sai da poesia, o tempo tem lasciva pelo esquecimento,
funde-se a tudo para dar-lhe fim.
Flerta com a morte. Ele se mudou para minha rua
risinho nos lábios e uma lista amarelada nas mãos
mostrando meu nome.

O tempo zomba dos meus arroubos de juventude
dos meus pedidos de saúde, e da minha cama
vazia de corpos.
O tempo ri porque ainda os espero.
Debocha da tintura no meu cabelo, da minha procura
pelas curvas na cintura, pelos meus seios duros
e porque não pude curar as dores da injustiça.
São vivas!
Ele mostra retratos de ontem e nada sobre o amanhã.
Eu me levanto e clamo pelo lírico, o prazer e o sonho.
Mas, o tempo os fazem sementes arredias, cansadas
e responde aos meus apelos com um vasto jardim
de saudades.

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Manifesto feminista
Jovina Souza

Há um colar de flores em torno de mim.
Há uma fera alada sobre meu ventre,
uma serpente.
E caliente e vermelha, sou astúcia,
janelas múltiplas, novas trilhas
para o velho caminho de Zaratustra
e seus discípulos todos homens.

A sabedoria dos homens me dá tédio.
É restrita de assunto. O que é extenso
está na minha cabeça fecunda em diálogos
com todos os sentidos.
Por isso, aprofundo os tempos, as cores, o mundo
que nasce e renasce na usina de mel
e vida que eu carrego entre as pernas.
O céu das alquimias geniais,
telas de bruxas secretas que tudo vê
e fazem meu padecer virar risos e voos
sobre meus incômodos.

Meus incômodos são as epístolas do falo
que só ejacula mas não sabe o que é gozar.
Para quê essa sabedoria dos machos
se os gozos múltiplos por todo o corpo
eu me farto?

Há um colar de flores na minha cabeça.
Há uma fera alada em minha mente,
uma serpente, perspicaz, atenta.
Leio o mundo com o cérebro e os sentimentos.
Sou o sagrado, o profano, a linguagem,
a memória, o ninho da terra e das águas.
Se nada ou pouco diz de mim, fêmea e mulher,
mantra para expandir a vida nos mundos,
não me serve a sapiência dos homens.
Tem pouco assunto.

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Ocaso da resistência negra
Jovina Souza

Ouço jovens pretos nas bordas dos abismos
e os desesperos das crianças empurradas
para a fila, implorando a seus líderes o mapa para os desvios.
Os falsos heróis, meros apanhadores de corpos,
estufam o peito, proferem palavras mais letais que as balas.
Palavras sem mãos, frases com braços cortados.

Desesperam-me o mapa que lideranças negras
intelectualistas, direitistas, esquerdistas, machistas
e feministas ofertam aos jovens e crianças pretas.

As mãos, das tais vozes, não constroem unguentos
para estancar o sangue, nem fechar o corte nos corpos e nas almas,
tampouco arrimos para levantar cabeças
rumo à permanência e à liberdade.
Acariciam brancas e brancos, nova versão
dos que violaram nossos ancestres
e continuam a tarefa dos seus antepassados.
Seguem dizimando milhões de corpos pretos.
Os “vivos” eles aniquilam as identidades
e tomam para si tudo que pode:
a justiça, a esperança, o sonho, a família, o livro,
o gozo, a vida e a sanidade.

Os tais “resistentes” negros conjugam a fórmula
da escravidão pós-moderna
e oferecem aos jovens pretos a morte completa.
Pois,
seus livros são brancos, guias das suas acríticas lições,
suas mulheres são brancas, seus homens são brancos,
seus votos e conceitos de amor também são brancos.
Assim, como é branco o cuspe que lhes enfeita a cara,
e o estilete sutil, abrindo caminho para o sangue e a morte
dos seus próprios filhos, netos, sobrinhos e afilhados.
Pactuados com brancos, os “bravos” guerreiros pretos
sacralizam uma estética da serventia infinda.
Dizendo-se militantes contra o racismo,
Imploram
analgésico ao chicote e voz a quem lhes corta a língua.

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Carta de uma mãe negra
Jovina Souza

Sobrevivo nas trincheiras necessárias
dos quilombos.
Um jeito de viver os dias que ainda vivo,
tramando mudanças nas paisagens
talhadas com as faces da morte.
Excessos de cadáveres sem carpideiras,
sem flores
nem carneiras com inscrições dos seus feitos.
Hoje, é meu filho na sombra do abominável esquife
sem o ritual dos santos.

Esse pranto vivo no meu rosto serve
à rima com a dor e com a saudade.
O verso registra o percurso da negrura
que veio das minhas entranhas
e foi ninada com a melodia dos sonhos.
Mas, agora, sob meus olhos, perece
e se vai no vácuo de uma luta
tão fraca que também sepulta.

Não me é permitido nem o luto
nem os pêsames nem o desespero.
Sigo apressada nesse vale fúnebre
com meu choro sepulcro.
Pois, a bala levanta do meu filho
morto
e corre à minha procura.

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A palavra desejada
Jovina Souza

                          P/Ana de Benguela

Vivo numa guerra de frases cortadas, escondidas.
Sentidos traídos pela infidelidade da palavra.
Eu procuro letras que sejam asas de gaivotas
resistir ao mergulho até a zona abissal.
Cada muro que se levanta, há uma violência viva na sua feitura.
Um silêncio, cortando a lágrima seca em busca da cura.
Em cada pássaro preto abatido durante o voo
ou quando pousa no próprio ninho, sopra a filosofia
do espelho, teia da nossa morte e da nossa solidão.
Sou um olhar apavorado nessa regra anômala.
Ela não cansa os que matam, nem os que vão morrer,
tampouco as testemunhas.

Quero a palavra que possa acordar os olhos
e as mentes amedrontadas pela inferioridade,
imposta ou assumida, sob esse véu obsceno do racismo.
Uma palavra gozo para os famintos de prazeres,
que seja esperança, discutindo vias para vitórias possíveis,
que seja alerta para as retinas deformadas,
para os neurônios chicoteados nas violências dos saberes.

Espero que toda palavra se levante comigo
em cores berrantes, colorindo esses tempos,
fazendo ruir esse tecido mortífero de ausências.
Que seja ouvida por todos nós, como um grito
das nossas próprias vida por existência.

Que minha letra
seja corte na farsa do ‘amor não tem cor’,
celebrado sobre cadáveres pretos, por pretos!
Risíveis românticos sob o império da desonra,
tecendo com suas brancas o fim dos peles preta
na cópula letal e planejada do brancamento.
Sobre os joelhos, esses homens pretos se alegram,
em demasia, aos pés escravistas de suas donas
versão pós-moderna da velha sinhazinha.
Restam-me a palavra chamando nossas asas ancestres,
quem sabe os pássaros que fomos nos ressuscitem.
Façam voos para os campos vastos. E na abundância
do que agora nos falta, possamos abraçar nossos filhos
vivos, com seus risos e sonhos, voltando pra casa.

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“Eu não era atraente para pênis insalubres,
nem para o sagrado.
Fui cuidar do meu corpo, cobiçado e caçado pela barbárie.
Sozinha,
me fiz mulher desobediente, sem inocência, arteira na ginga
e periculosa para homens que desejam me levar e me trazer.
Quando um deles se diz o professor, não assisto suas aulas,
na minha cabeça tem saberes e minhas próprias memórias.

Quando aparece o tal Amor dizendo que sou guerreira,
a força motriz de tudo e de todos,
dou-lhe uma banana bem grande.
Ele pede demais às negras mulheres.
És um preto sem medo da minha liberdade
que é ancestral.
Apareça para um café, traga ervas perfumadas
um creme de massagem, uma cueca apertadinha,
sua inteligência e sua autonomia.
Quero sua boca e suas mãos. Vamos fazer felicidades.
O vinho eu tenho, o paraíso também.”


“Espero a noite toda escura,
o dia é claro demais, insalubre.
As manhãs poéticas não vejo,
as tardes de amor findam antes
de chegarem aos meus olhos.
É só vigilância! Esquiva sempre!
Senão perdemos a vida!

Não há tempo para o belo,
não há tempo para a poesia
nem para os vinhos doces.
O dia iluminado mata sonhos
e corpos,
seu ódio à negrura é bandeira.
Nas ruas dessa pátria negrocida
a morte prefere minha pele preta.
Quero a noite como quem deseja
o paraíso das deusas.
(...)
A noite é um Quilombo. Opõe-se ao dia
e sua única estrela.
Procuro sim, a noite negra, preta, o breu
que não se embranquece,
a festa da África que resplandece
no tom da minha pele.”


“Ficaram em mim o que de você aprendi:
as marcas de vinhos, a fala com as mãos,
alimentar os bichos, o mato e a terra.
E os delírios eróticos sem descrições, apenas
na memória dos feitos, no degredo dos corpos,
rindo do esquecimento acertado entre nós.
Tudo se foi e hoje é sua presença sutil
cravada nos móveis, no meu pensar insistente,
na minha fala urdida, no desânimo pela beleza
que é áurea no limiar dos novos amores.
Nada mais diz de mim, agora, sem você,
a não ser a calma atormentada que me veste
e a saudade que carrego sob o batom vermelho,
entre as alegrias vendidas no varejo das ruas.
Penso que de todas as mulheres que sou
nenhuma deixou de ser sua.”


Presentes no livro de poemas “O levante da fênix” (Òmnira, 2021), de Jovina Souza, páginas 52, 43-44, 89-90, 46 e 38-39, respectivamente, além dos trechos dos poemas “Biografia” (p. 41-42), “Desejo a noite” (p. 34-35) e “Para o homem da Rua K” (p. 55), presentes na mesma obra.

Comentários

Jeane Sánchez disse…
Jovina Souza nos presenteia com sua poesia forte, que põe de pé o povo preto e convoca para a luta de sobrevivência diante deste país racista, sexista e excludente.

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