Pepetela (foto daqui)
“(...) Era o fim de uma civilização, claro. Mas seria este o primeiro e único fim? A lenda ou mito do dilúvio universal, que levou Noé a construir a sua famosa arca, não teria sido também o fim de uma civilização, cujo eco ficou apenas no mito? (...) seriam essas civilizações tão atrasadas como apareciam na Bíblia? Não podiam ser culturas avançadas como a nossa, de que agora estamos a contemplar o fim? Ao fim de algumas gerações os sobreviventes dos cataclismos vão perdendo conhecimentos, substituem-nos por fantasias, gerações seguintes adulteram ainda mais, e tudo acaba por ficar amalgamado numa religião qualquer. Mas o verdadeiro conhecimento científico, a explicação coerente do por que de fazer determinado gesto ou utilizar uma certa técnica, esse conhecimento perdeu-se para sempre. Para sempre? Ao fim de milhares ou centenas de milhares de anos, acabam por descobrir o que já se sabia há muito, a civilização volta a instalar-se, não igual à que fora antes, mas com alguns princípios básicos comuns. A teoria do eterno retorno? Pode ser. Uma civilização desenvolve-se até poder fabricar armas capazes de a destruir, tal é o seu destino. E acaba por deixar poucos vestígios, ou então são vestígios incompreensíveis para as gerações seguintes. E o destino do homem é destruir-se, para recomeçar tudo de novo?”
“— Essa é uma questão que não me tem largado a cabeça ultimamente — disse Simba. — Se forem confirmadas as piores suspeitas e só restarmos nós no mundo, as mulheres vão ter de ser mesmo umas coelhas. Senão a humanidade acaba.
— Espera lá — cortou Ísis. — Pretendes dizer o quê? Que refaçamos a humanidade? Só nós?
— Não é uma obrigação moral?
— Obrigação coisa nenhuma, Simba. Eu ainda nem pensei em ter filhos. Nem sequer me tinha preocupado de saber se um dia casaria, antes do desaparecimento das pessoas. De repente, por causa de um qualquer imperativo moral em relação à espécie humana, desato a fazer filhos? Nem é bom brincar!
— Que se lixe a espécie, é isso? — insistiu Simba.
— É isso mesmo — respondeu Ísis. — Que fez a espécie por mim? Não me deixou sozinha? Ou quase?”
“(...) Dippenaar certamente tinha registrado o fato de agora as riquezas não terem defesa, esperaria o melhor momento para lhes deitar a mão? E a pergunta que fazemos é a seguinte: para que, de que lhe servirá tanta riqueza? Agora o mundo parecia ser deles apenas, eram mais ricos que Creso, todos os bens materiais a repartir por uns poucos. No entanto, de nada valia o ouro, os diamantes e os rubis, nem os euros ou os dólares, nada havia para comprar, tudo estava ali para ser consumido sem esforço. Estavam como o náufrago numa ilha só com um coqueiro e uma arca de joias. Se a partir deles houvesse uma nova humanidade, essas riquezas ainda seriam consideradas riquezas? (...) A nova humanidade era capaz de considerar joia uma folha seca de árvore rara ou o esvoaçar de uma pena de pavão. Quem poderia pressagiar os novos valores?”
“(...) vi muita miséria e dor neste mundo e nunca o dedo de Deus. Pelo menos para diminuir um pouco que fosse essa torrencial dor humana, que parecia sair em borbotões das entranhas da terra. Se senti o dedo de Deus foi, pelo contrário, para espalhar e agudizar ainda mais o sofrimento dos inocentes, com guerras feitas em nome d’Ele. Por isso preferia repudiar o sobrenatural, considerando essas crenças uma forma primitiva e desajeitada de uma pessoa fugir da realidade dura e sem sentido da vida. E quando falo de crenças, estou mesmo a falar de todas, pois também traía as minhas raízes africanas, não acreditando em feitiços, espíritos e assombrações. (...) religiosos desvairados interpretam liberalmente quando convém e quando não convém dizem que se deve tomar à letra tudo o que vem no livro sagrado, sem mudar uma vírgula.”
“— Estarei a ser racista, a dar mais importância aos bichos que aos homens? Tenho medo de parecer racista, é inerente a um americano liberal.
— Todos somos. Quer queiramos, quer não. O racismo está no espírito criador de todas as religiões. E mesmo os ateus foram tocados por essas culturas, adquirindo portanto tiques racistas. Quando uma pessoa de cor diferente me estende a mão e precisa de dizer, eu não sou nada racista, no fundo está a confessar que é, porque reagiu em função da minha cor diferente. Não sentiria necessidade de o dizer a um da sua cor.
— É lógico. E o meu medo de parecer racista é puro racismo. É isso que estás a querer insinuar?
— Insinuar não. Estou mesmo a dizer. Mas sem te culpar. Por isso digo, se sentes necessidade de abandonar esta religião que já não te diz nada, acho que o deves fazer. Voltar a casa. Mesmo sabendo a casa vazia.”
“(...) havia tipos que insistiam com as mulheres, conta-me tudo sobre a tua vida, não me importo, até gosto de saber das tuas experiências enriquecedoras. A mulher caía na armadilha e de boa fé narrava detalhes. Na primeira oportunidade, tudo isso lhe seria atirado à cara, nunca devia ter perdido tempo com uma gaja que até dormiu com um filipino ou um espanhol que lhe roçava o bigode na crica, ou o raio que o parta. Noutros casos às recriminações se juntam as perguntas, andas a fazer comparações, a ver qual é a pila mais bonita que conheceste, é? Ou queres saber qual era o maior fodilhão de todos os teus homens, ainda te consegues lembrar? O macho é um ser imprevisível, perigoso de encurralar no mais íntimo do seu orgulho ferido.”
“(...) nasceu e viveu na Somália até os dez anos de idade, sendo a mais velha de três irmãs. A mãe morreu no parto da terceira e o pai resolveu pegar nas filhas e fugir da guerra permanente entre tribos e senhores da guerra, vindo para sul até encontrar um sítio onde morar o seu comércio. Mais tarde, em privado, ela me contaria que a razão principal fora essa, fugir à instabilidade política de um país sem Estado, caído na mais total anarquia. Mas o pai explicou, quando ela atingiu a maioridade, que havia outra razão ponderosa, era a de evitar que ela e as irmãs sofressem a operação de excisão do clitóris, considerada cerimônia fundamental para uma mulher ser verdadeiramente mulher na terra deles e em muitos outros sítios deste mundo desgraçado e cruel. Toda a gente sabia do rito, o objetivo era fazer com que a mulher tivesse pouco prazer no ato sexual e portanto ser menos tentada a aventuras ante ou extraconjugais. (...) Se permanecessem na Somália, ele não resistiria à pressão da família e do clã, acabaria por consentir na operação mutiladora e sentir-se-ia toda a vida um ser indigno por não ter lutado suficientemente pela integridade das filhas e pelos seus princípios. A mãe dela tinha obviamente passado por essa cerimônia bárbara e o pai sempre se sentia frustrado por não poder dar-lhe grande prazer.”
“(...) Tinha conhecido um preso, partilhamos a cela comum por algum tempo, o qual me contou a partida que os polícias lhe pregaram, um dia. Levaram-no para o muro da prisão, o do fundo, cheio de buracos que diziam ser de balas de muitas execuções. Ou lhes passava o segredo do dinheiro roubado por uma quadrilha célebre ou o fuzilavam mesmo ali. O tipo sabia, aquilo não era legal, não havia sido condenado por tribunal nenhum, o seu crime era o de roubar umas galinhas para comer, mas quem pensa nessas formalidades num momento desses? Acreditou, eles falavam a sério e podiam mesmo disparar. Não sabia do dinheiro nem conhecia os membros da quadrilha, apenas a sua fama, de assassinos e ladrões audazes. Foi o que disse, não sei nada, juro, e então lhe vendaram os olhos. Se não sabes onde está o nosso dinheiro, também não nos serves para nada, vais ficar só a comer comida do povo na cadeia, o melhor é enterrar-te já, despesas a menos. O meu amigo contou, não tinha força nem sequer para ficar de pé, caiu antes de ouvir tiro de bala, que aliás não sucedeu. Tiraram-lhe a venda, rindo alarvemente da sua triste figura, e ele não entendia. Achava ter morrido e eram os anjos celestiais que riam por ele ter chegado ao paraíso. Arrastaram-no para a cela, atiraram-no para o catre e ele sentia-se morto, não pensava, não sentia, não chorava nem ria, nada, vencido. Nunca mais recuperou, não lhe deram um tiro mas mataram-no por dentro, incapaz de enfrentar a vida.”
“(...) As pessoas estavam a demarcar território, o desejo sexual lançava incenso para o ar, era isso? Nesse caso ela preferia mesmo o simpático Joseph, ao menos era divertido. E também lhe atraía nele a profissão assumida, de alto risco. Como historiadora, interessavam-lhe as guerras ou conspirações sombrias, os sórdidos crimes nas lutas pelo poder, traições cometidas pelos políticos a defenderem mesquinhos interesses e ambições, mesmo se justificados pelas ações dos deuses. A História da humanidade não estava cheia de sentimentos e urdidas inconfessáveis? Então, Kiboro, o das aventuras noturnas, seria o par ideal, ao menos arriscava a liberdade se não a vida quando entrava numa casa estranha para tirar umas coisitas que ali estavam a mais, que não faziam de fato falta aos legítimos proprietários, mas estes, como proprietários avaros, matariam sem remorsos um grupo inteiro para as conservar. Filósofo anarquista, sem dúvida, o ‘seu’ Joseph Kiboro”
“(...) O fim do mundo não é tema que se trate com ligeireza, apesar de ter entrado em todas as línguas desde aquele primeiro dilúvio que tornou famoso Noé e sua arca. Também saiu constantemente das bocas de todos os trapaceiros que por este desgraçado planeta andaram, vendendo religiões de salvação ou poções para o evitar. O fim do mundo é assunto para ser tratado com delicadeza, prudência, reverente temor mesmo, pois implicou o óbito, ou melhor, o desaparecimento de quase todos os seres vivos. (...) Se trata mesmo de desaparecimento, sumiço, eclipse, pois na realidade não sobrou nada deles, nem ossos nem cinzas, nem pelos ou unhas, nada. Presumo que nem os espíritos se aproveitaram, tão rápido e global terá sido o apagamento coletivo.”
Presentes no romance “O quase fim do mundo” (Kapulana, 2019), de Pepetela, páginas 330, 210, 304, 20/23, 169, 302-303, 124-125, 238-239, 184-185 e 09, respectivamente.
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