Sandra Godinho (foto daqui)
“(...) Ele não me entendia, não entendia como um menino de dez anos podia acordar na rede pela manhã e ser invadido de oração, não entendia que essa era a verdadeira covardia, impingir a uma criança qualquer crença que não era a dela.”
“— Algumas pessoas dizem que os índios o mataram porque trouxe doença para a esposa de um dos chefes que acabou morrendo...
— Vão arranjar uma justificativa.
— Outros falam que os índios tinham raiva porque ele era espião dos brancos, descobria as malocas e dedurava para os soldados que vinham para matar...
— O Geraldo? Absurdo!
— Outros acham que é vingança pelo veneno branco que foi lançado e matou muita gente. Ninguém sabe direito o que pensar...
— Ninguém fala que os militares podem estar envolvidos?
— Não...
— Decerto, de agora em diante, a área vai ficar sob o domínio do Exército, ninguém mais vai poder entrar sem autorização dos militares ou da Funai.
— Exatamente.
A repulsa me formigou a pele, não pelo que estava acontecendo, mas pelo que ainda podia acontecer. Havia um entendimento implícito entre a madre e eu sobre o que deveria ser feito para honrar a morte de tantos inocentes, meu ideal tomando forma, expandindo-se em mim à minha revelia. Nenhum de nós ousou falar sobre isso aquele dia.”
“(...) Saía sempre depois do sol se pôr, nessa zona fronteiriça que beirava o escuro, cheia de sons e de matéria viva. E de fosforescência, parecendo magia. Não era à toa que os caboclos viam heróis, espíritos e deuses desfilando nesse cenário negro que cintilava à noite. As mucuras espreitavam, os guaribas uivavam e as araras faziam festa. Era nesse palco encantado que os verdadeiros predadores saíam em busca de presas. Onças malhadas ou pretas, jacarés de muitos metros, sucurijus gigantes, nenhum deles tolerava o fraco. Nem Paulo. (...) Chiarelli se referia aos Atroaris chamando-os de índios e de filhos da terra. Paulo os chamava de selvagens e de assassinos.”
“— É o monstro coberto de couro de onça e de olhos incandescentes que sai da pedra à noite para castigar o índio que fizer pacto com o branco.
Para pai, um símbolo de vingança com o qual devesse manter distância, um cometa que vasculhava os confins da mata até achar um Waimiri-Atroari infiel. Para mim, uma força maior que o Deus dele e o da mãe. Pai abaixou os olhos, por medo ou respeito, não soube bem, ligou o motor e começou a se afastar com a voadeira.
(...)
— (...) Então os Waimiri-Atroari fizeram o juramento de Sangai, de nunca se aproximarem do inimigo.
— E se eles se aproximarem?
— Então o Olho de Pavela os castiga, com bordunas no lombo até o desinfeliz se prostrar no chão.
Era o Olho se mostrando, em viço e vigor. Gostei de achar finalmente algo maior que Deus. Algo maior que esse compromisso (sem sentido) com o nada, só na crença e no credo dos antigos, especialmente da mãe, que vivia de prece, promessas e orações.”
“(...) Não está certo o que o xucro do seu marido está fazendo!, o sócio repetia. E insistia, dizendo que a mulher merecia coisa melhor. Deu-lhe quinhentos mil cruzeiros nas mãos e pediu a ela que sumisse, sem lhe dar maiores explicações. Vai ser feliz, mulher. Suma daqui enquanto pode. Falou que o marido era um mentiroso que tinha matado gente. A mulher engasgou com a narrativa. E Paulo, sorrateiro atrás da porta, ouvindo tudo, engasgou com o dinheiro. (...) Escondeu-se na mata, esperou o homem sair do casebre para amansar seu pitéuzinho. Inventou outra estória para ela, a de que tinha se convertido em evangélico da Igreja Batista e a convenceu a lhe entregar o dinheiro para aplicar num projeto (...) Elza foi manipulada pelo tempo e pela astúcia, mal de mulher é se fiar em qualquer um que sussurre com voz de veludo. (...) Já tinha abandonado uma pelo Rio de Janeiro com cinco filhos, o última ainda na barriga. Não custou. Abandonei a segunda com mais três no meio da mata. Sem mantimento ainda por cima, para ela deixar de enxerimento e aprender a lição.”
“(...) O governador Arthur Reis a chamava de excrescência e alardeou com seu egocentrismo extravagante que erradicaria esse infortúnio de ladrões da porta da cidade, levaria para longe as prostitutas e as doenças do centro. A nova Manaus — que ele almejava (re)construir — não merecia tanta feiura na entrada do porto. O homem parecia determinado a esconder as vergonhas, como se elas não existissem. As pessoas do lugar viviam na corda bamba, não porque os flutuantes vivessem amarrados por cordas, mas porque tinham os dias contados. (...) Uma injustiça, porque o lugar era divino, como todo lugar sem mando devia ser, livre de tanto rechaço e repugnância. Sem gente retorcendo a boca ao ouvir nosso linguajar caboclo, sem ninguém querendo expulsar de nós a essência. Cada pinguela, catraia ou banzeiro que ondulava o Negro trazia um cheiro de liberdade pelas águas. A cidade flutuante era uma bolha de residências desordenadas na superfície do rio, quebrando a monotonia dos caminhos andantes, habitados por seres que não desistiam de viver, tipos que sabiam escorrer pelas águas, tipos como eu que se acendia ao avistar o mingauseiro ao final da tarde, deslizando o rio com sua canoa.”
“(...) Paulo peitava o bolor, as goteiras, o mofo e as noites úmidas que dificultavam a respiração. E dormia em redes, pulando de pé feito gato maracajá às cinco e meia da manhã, danando a medir o terreno. Trabalhava na sombra em pleno dia, as copas das árvores se entrelaçando acima de nossas cabeças, impedindo a passagem do sol e criando uma espécie de estufa que evaporava a água num instante. (...) Muitos homens caíram doentes de malária (ou febre amarela), ou acabavam mordidos pelas formigas de fogo, ou não conseguiam dormir por causa dos carapanãs. A alimentação era deficiente, composta de farinha, pimenta verde, frutas ácidas, peixe e carne, que muitas vezes estragava rápido devido ao calor. Sem falar no consumo excessivo de comprimidos para prevenir as doenças tropicais, o que causava carência de vitaminas e de sais minerais.”
“(...) Desde cedo, entendi que a velhota me havia condenado em vida. O que fazer quando seus pais fermentam ideias erradas? Quando nasci, ela já passava dos quarenta, gasta de idade, levou três dias e três noites para parir. Vim ao mundo roxo e sem chorar, manso como todo cordeiro devia ser. A parteira quase me deu por morto. Chegou a fazer o sinal-da-cruz, no que mãe não se conformou. Tanto enjoo, tanta cólica e tanta azia para nada? Arrancou-me de sua mão e prometeu em voz alta que, se o filho vingasse, ela o entregaria a Deus, formando-me padre. Deu duas palmadas com gosto no meu traseiro e caí no berreiro. No aperto do parto, virei paga de promessa. Por que não esperou um pouco o curso da natureza? Eu era lerdo, leso e lento, mas era bom, um cordeiro sem voz. Não, ela foi logo fazer a promessa. Fazer promessa à custa dos outros era fácil, o filho que pagasse depois com a própria vida.”
“Sabá falou o tipo de coisa que eu queria ouvir: montar nos ossos e partir, o sonho que se cria no peito dos homens. O sonho do pai de Sabá era tornar o filho um feirante conhecido nas redondezas, o sonho do filho era tomar um barco e sumir no mundo. (...) Tentou embarcar num navio de carga, sem documento ou vergonha, só com a roupa do corpo. Avisou aos tripulantes que podia ser o que fosse preciso, foguista, maquinista, marinheiro. Só se esqueceu de que tinha dez anos e uma janela nos dentes da frente. Os homens gargalharam e Sabá se injuriou por não ter sido levado a sério. Desembarcou, ou melhor, foi desembarcado. (...) Jurou que, assim que tivesse idade e meios, se banderia para qualquer lugar do planeta. Eu me identifiquei com ele, com esse sonho que também era o meu (...) O planeta era grande demais para se enraizar na cidade flutuante, que nem raiz tinha, só oscilando em banzeiro, acordando e adormecendo na incerteza de existir.”
“Uma pessoa é muito mais que um pedaço de terra. É muito mais que sua teimosia. É muito mais que seu sonho. (...) Eu era um desmemoriado da minha cronologia, vivendo um futuro oriundo de um passado equivocado, com o presente à deriva de mim mesmo, refém de Deus, condenado ao inferno, um encarcerado de minha própria prisão. E no fundo, a figura de Chiarelli surgiu-me como a única coisa que pudesse me restaurar, a palavra essencial, a imagem da bondade sem pieguice, da loucura sem demência, da sensatez sem arrogância.”
Presentes no romance “Tocaia do Norte” (Penalux, 2021), de Sandra Godinho, páginas 27, 304, 115, 26-27, 112-113, 22, 114-115, 21-22, 33 e 102, respectivamente.
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