As sem-razões do amor
Carlos Drummond de Andrade
Eu te amo porque te amo.
Não precisas ser amante,
e nem sempre sabes sê-lo.
Eu te amo porque te amo.
Amor é estado de graça
e com amor não se paga.
Amor é dado de graça,
é semeado no vento,
na cachoeira, no eclipse.
Amor foge a dicionários
e a regulamentos vários.
Eu te amo porque não amo
bastante ou demais a mim.
Porque amor não se troca,
não se conjuga nem se ama.
Porque amor é amor a nada,
feliz e forte em si mesmo.
Amor é primo da morte,
e da morte vencedor,
por mais que o matem (e matam)
a cada instante de amor.
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Por quê?
Carlos Drummond de Andrade
Por que nascemos para amar, se vamos morrer?
Por que morrer, se amamos?
Por que falta sentido
ao sentido de viver, amar, morrer?
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Ausência
Carlos Drummond de Andrade
Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência, essa ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.
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O outro
Carlos Drummond de Andrade
Como decifrar pictogramas de há dez mil anos
se nem sei decifrar
minha escrita interior?
Interrogo signos dúbios
e suas variações calidoscópicas
a cada segundo de observação.
A verdade essencial
é o desconhecido que me habita
e a cada amanhecer me dá um soco.
Por ele sou também observado
com ironia, desprezo, incompreensão.
E assim vivemos, se ao confronto se chama viver,
unidos, impossibilitados de desligamento,
acomodados, adversos,
roídos de infernal curiosidade.
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A hora do cansaço
Carlos Drummond de Andrade
As coisas que amamos,
as pessoas que amamos
são eternas até certo ponto.
Duram o infinito variável
no limite de nosso poder
de respirar a eternidade.
Pensá-las é pensar que não acabam nunca,
dar-lhes moldura de granito.
De outra matéria se tornam, absoluta,
numa outra (maior) realidade.
Começam a esmaecer quando nos cansamos,
e todos nos cansamos, por um ou outro itinerário,
de aspirar a resina do eterno.
Já não pretendemos que sejam imperecíveis.
Restituímos cada ser e coisa à condição precária,
rebaixamos o amor ao estado de utilidade.
Do sonho eterno fica esse gosto acre
na boca ou na mente, sei lá, talvez no ar.
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Combate
Carlos Drummond de Andrade
Nem eu posso com Deus nem pode ele comigo.
Essa peleja é vã, essa luta no escuro
entre mim e seu nome.
Não me persegue Deus no dia claro.
Arma, à noite, emboscadas.
Enredo-me, debato-me, invectivo
e me liberto, escalavrado.
De manhã, à hora do café, sou eu quem desafia.
Volta-me as costas, sequer me escuta,
e o dia não é creditado a nenhum dos contendores.
Deus golpeia à traição.
Também uso para com ele táticas covardes.
E o vencedor (se vencedor houver) não sentirá prazer
pela vitória equívoca.
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A chave
Carlos Drummond de Andrade
E de repente
o resumo de tudo é uma chave.
A chave de uma porta que não abre
para o interior desabitado
no solo que inexiste,
mas a chave existe.
Aperto-a duramente
para ela sentir que estou sentindo
sua força de chave.
O ferro emerge de fazenda submersa.
Que valem escrituras de transferência de domínio
se tenho nas mãos a chave-fazenda
com todos os seus bois e os seus cavalos
e suas éguas e aguadas e abantesmas?
Se tenho nas mãos barbudos proprietários oitocentistas
de que ninguém fala mais, e se falasse
era para dizer: os Antigos?
(Sorrio pensando: somos os Modernos
provisórios, a-históricos…)
Os Antigos passeiam nos meus dedos.
Eles são os meus dedos substitutos
ou os verdadeiros?
Posso sentir o cheiro de suor dos guardas-mores,
o perfume-Paris das fazendeiras no domingo de missa.
Posso, não. Devo.
Sou devedor do meu passado,
cobrado pela chave.
Que sentido tem a água represada
no espaço onde as estacas do curral
concentram o aboio do crepúsculo?
Onde a casa vige?
Quem dissolve o existido, eternamente
existindo na chave?
O menor grão de café
derrama nesta chave o cafezal.
A porta principal, esta é que abre
sem fechadura e gesto.
Abre para o imenso.
Vai-me empurrando e revelando
o que não sei de mim e está nos Outros.
O serralheiro não sabia
o ato de criação como é potente
e na coisa criada se prolonga,
ressoante.
Escuto a voz da chave, canavial,
uva espremida, berne de bezerro,
esperança de chuva, flor de milho,
o grilo, o sapo, a madrugada, a carta,
a mudez desatada na linguagem
que só a terra fala ao fino ouvido.
E aperto, aperto-a, e, de apertá-la,
ela se entranha em mim. Corre nas veias.
É dentro em nós que as coisas são,
ferro em brasa — o ferro de uma chave.
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As contradições do corpo
Carlos Drummond de Andrade
Meu corpo não é meu corpo,
é ilusão de outro ser.
Sabe a arte de esconder-me
e é de tal modo sagaz
que a mim de mim ele oculta.
Meu corpo, não meu agente,
meu envelope selado,
meu revólver de assustar,
tornou-se meu carcereiro,
me sabe mais que me sei.
Meu corpo apaga a lembrança
que eu tinha de minha mente.
Inocula-me seu patos,
me ataca, fere e condena
por crimes não cometidos.
O seu ardil mais diabólico
está em fazer-se doente.
Joga-me o peso dos males
que ele tece a cada instante
e me passa em revulsão.
Meu corpo inventou a dor
a fim de torná-la interna,
integrante do meu id,
ofuscadora da luz
que aí tentava espalhar-se.
Outras vezes se diverte
sem que eu saiba ou que deseje,
e nesse prazer maligno,
que suas células impregna,
do meu mutismo escarnece.
Meu corpo ordena que eu saia
em busca do que não quero,
e me nega, ao se afirmar
como senhor do meu Eu
convertido em cão servil.
Meu prazer mais refinado,
não sou eu quem vai senti-lo.
É ele, por mim, rapace,
e dá mastigados restos
à minha fome absoluta.
Se tento dele afastar-me,
por abstração ignorá-lo,
volta a mim, com todo o peso
de sua carne poluída,
seu tédio, seu desconforto.
Quero romper com meu corpo,
quero enfrentá-lo, acusá-lo,
por abolir minha essência,
mas ele sequer me escuta
e vai pelo rumo oposto.
Já premido por seu pulso
de inquebrantável rigor,
não sou mais quem dantes era:
com volúpia dirigida,
saio a bailar com meu corpo.
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Aspiração
Carlos Drummond de Andrade
Tão imperfeitas, nossas maneiras
de amar.
Quando alcançaremos
o limite, o ápice
de perfeição,
que é nunca mais morrer,
nunca mais viver
duas vidas em uma,
e só o amor governe
todo além, todo fora de nós mesmos?
O absoluto amor,
revel à condição de carne e alma.
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Eu, etiqueta
Carlos Drummond de Andrade
Em minha calça está grudado um nome
que não é meu de batismo ou de cartório,
um nome... estranho.
Meu blusão traz lembrete de bebida
que jamais pus na boca, nesta vida.
Em minha camiseta, a marca de cigarro
que não fumo, até hoje não fumei.
Minhas meias falam de produto
que nunca experimentei
mas são comunicados a meus pés.
Meu tênis é proclama colorido
de alguma coisa não provada
por este provador de longa idade.
Meu lenço, meu relógio, meu chaveiro,
minha gravata e cinto e escova e pente,
meu copo, minha xícara,
minha toalha de banho e sabonete,
meu isso, meu aquilo,
desde a cabeça ao bico dos sapatos,
são mensagens,
letras falantes,
gritos visuais,
ordens de uso, abuso, reincidência,
costume, hábito, premência,
indispensabilidade,
e fazem de mim homem-anúncio itinerante,
escravo da matéria anunciada.
Estou, estou na moda.
É doce estar na moda,
ainda que a moda
seja negar minha identidade,
trocá-la por mil, açambarcando
todas as marcas registradas,
todos os logotipos do mercado.
Com que inocência demito-me de ser
eu que antes era e me sabia
tão diverso de outros, tão mim mesmo,
ser pensante, sentinte e solidário
com outros seres diversos e conscientes
de sua humana, invencível condição.
Agora sou anúncio,
ora vulgar ora bizarro,
em língua nacional ou em qualquer língua
(qualquer, principalmente).
E nisto me comprazo, tiro glória
de minha anulação.
Não sou — vê lá — anúncio contratado.
Eu é que mimosamente pago
para anunciar, para vender
em bares festas praias pérgulas piscinas,
e bem à vista exibo esta etiqueta
global no corpo que desiste
de ser veste e sandália de uma essência
tão viva, independente,
que moda ou suborno algum a compromete.
Onde terei jogado fora
meu gosto e capacidade de escolher,
minhas idiossincrasias tão pessoais,
tão minhas que no rosto se espelhavam,
e cada gesto, cada olhar,
cada vinco da roupa
resumia uma estética?
Hoje sou costurado, sou tecido,
sou gravado de forma universal,
saio da estamparia, não de casa,
da vitrina me tiram, recolocam,
objeto pulsante mas objeto
que se oferece como signo de outros
objetos estáticos, tarifados.
Por me ostentar assim, tão orgulhoso
de ser não eu, mas artigo industrial,
peço que meu nome retifiquem.
Já não me convém o título de homem.
Meu nome novo é coisa.
Eu sou a coisa, coisamente.
Presentes no livro “Corpo” (Companhia das Letras, 2015), de Carlos Drummond de Andrade, páginas 26, 32, 21, 23, 28, 38, 40, 11, 27 e 53, respectivamente.
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