“(...) vivemos exclusivamente no presente pois sempre e eternamente é o dia de hoje e o dia de amanhã será um hoje, a eternidade é o estado das coisas neste momento.”
“Sim, minha força está na solidão. Não tenho medo nem de chuvas tempestivas nem das grandes ventanias soltas, pois eu também sou o escuro da noite. Embora não aguente bem ouvir um assovio no escuro, e passos. Escuridão? Lembro-me de uma namorada: era moça-mulher e que escuridão dentro de seu corpo. Nunca a esqueci: jamais se esquece a pessoa com quem se dormiu. O acontecimento fica tatuado em marca de fogo na carne viva e todos os que percebem o estigma fogem com horror.”
“— Por que é que você me pede tanta aspirina? Não estou reclamando, embora isso custe dinheiro.
— É para eu não me doer.
— Como é que é? Hein? Você se dói?
— Eu me doo o tempo todo.
— Aonde?
— Dentro, não sei explicar.”
“Domingo ela acordava mais cedo para ficar mais tempo sem fazer nada. (...) Devo dizer que ela era doida por soldado? Pois era. Quando via um, pensava com estremecimento de prazer: será que ele vai me matar? (...) E tinha um luxo, além de uma vez por mês ir ao cinema: pintava de vermelho grosseiramente escarlate as unhas das mãos. Mas como as roía quase até o sabugo, o vermelho berrante era logo desgastado e via-se o sujo preto por baixo. (...) E quando acordava? Quando acordava não sabia mais quem era. Só depois é que pensava com satisfação: sou datilógrafa e virgem, e gosto de coca-cola. Só então vestia-se de si mesma, passava o resto do dia representando com obediência o papel de ser. (...) A datilógrafa vivia numa espécie de atordoado nimbo, entre céu e inferno. Nunca pensara em ‘eu sou eu’. Acho que julgava não ter direito, ela era um acaso. Um feto jogado na lata de lixo embrulhado em um jornal. Há milhares como ela? Sim, e que são apenas um acaso. Pensando bem: quem não é um acaso na vida?”
“— Olhe, eu era muito asseada e não pegava doença ruim. Só uma vez me caiu uma sífilis mas a penicilina me curou. Eu era mais tolerante do que as outras porque sou bondosa e afinal estava dando o que era meu. Eu tinha um homem de quem eu gostava de verdade e que eu sustentava porque ele era fino e não queria se gastar em trabalho nenhum. Ele era o meu luxo e eu até apanhava dele. Quando ele me dava uma surra eu via que ele gostava de mim, eu gostava de apanhar. Com ele era amor, com os outros eu trabalhava. Depois que ele desapareceu, eu, para não sofrer, me divertia amando mulher. O carinho de mulher é muito bom mesmo, eu até lhe aconselho porque você é delicada demais para suportar a brutalidade dos homens e se você conseguir uma mulher vai ver como é gostoso, entre mulheres o carinho é muito mais fino. Você tem chance de ter uma mulher?”
“Estou esquentando o corpo para iniciar, esfregando as mãos uma na outra para ter coragem. Agora me lembrei de que houve um tempo em que para me esquentar o espírito eu rezava: o movimento é espírito. A reza era um meio de mudamente e escondido de todos atingir-me a mim mesmo. Quando rezava conseguia um oco de alma — e esse oco é o tudo que posso eu jamais ter. Mais do que isso, nada. Mas o vazio tem o valor e a semelhança do pleno. Um meio de obter é não procurar, um meio de ter é o de não pedir e somente acreditar que o silêncio que eu creio em mim é resposta a meu — meu mistério.”
“(...) preciso dos outros para me manter de pé, tão tonto que sou, eu enviesado, enfim que é que se há de fazer senão meditar para cair naquele vazio pleno que só se atinge com a meditação. Meditar não precisa de ter resultados: a meditação pode ter como fim apenas ela mesma. Eu medito sem palavras e sobre o nada. O que me atrapalha a vida é escrever.”
“— A cara é mais importante do que o corpo porque a cara mostra o que a pessoa está sentindo. Você tem cara de quem comeu e não gostou, não aprecio cara triste, vê se muda — e disse uma palavra difícil — vê se muda de ‘expressão’.
Ela disse consternada:
— Não sei como se faz outra cara. Mas é só na cara que sou triste porque por dentro eu sou até alegre. É tão bom viver, não é?
— Claro! Mas viver bem é coisa de privilegiado. Eu sou um e você me vê magro e pequeno mas sou forte, eu com um braço posso levantar você do chão. Quer ver?
— Não, não, os outros olham e vão maldar!
— Magricela esquisita ninguém olha.
E lá foram para a esquina. Macabéa estava muito feliz. Realmente ele a levantou para o ar, acima da própria cabeça. Ela disse eufórica:
— Deve ser assim viajar de avião.
É. Mas de repente ele não aguentou o peso num só braço e ela caiu de cara na lama, o nariz sangrando. Mas era delicada e foi logo dizendo:
— Não se incomode, foi uma queda pequena.
Como não tinha lenço para limpar a lama e o sangue, enxugou o rosto com a saia, dizendo:
— Você não olhe enquanto eu estiver me limpando, por favor, porque é proibido levantar a saia.
Mas ele emburrara de vez e não disse mais nenhuma palavra. Passou vários dias sem procurá-la: seu brio fora atingido.”
“(...) Ela não pensava em Deus, Deus não pensava nela. Deus é de quem conseguir pegá-lo. Na distração aparece Deus. Não fazia perguntas. Adivinhava que não há respostas. Era lá tola de perguntar? E de receber um ‘não’ na cara? Talvez a pergunta vazia fosse apenas para que um dia alguém não viesse a dizer que ela nem ao menos havia perguntado. Por falta de que lhe respondesse ela mesma parecia se ter respondido: é assim porque é assim. Existe no mundo outra resposta?”
“Pois não é que quis descansar as costas por um dia? Sabia que se falasse isso ao chefe ele não acreditaria que lhe doíam as costelas. Então valeu-se de uma mentira que convence mais que a verdade: disse ao chefe que no dia seguinte não poderia trabalhar porque arrancar um dente era muito perigoso. E a mentira pegou. Às vezes só a mentira salva. Então, no dia seguinte, quando as quatro Marias cansadas foram trabalhar, ela teve pela primeira vez na vida uma coisa a mais preciosa: a solidão. Tinha um quarto só para ela. Mal acreditava que usufruía o espaço. E nem uma palavra era ouvida. Então dançou num ato de absoluta coragem, pois a tia não a entenderia. Dançava e rodopiava porque ao estar sozinha se tornava: l-i-v-r-e! Usufruía de tudo, da arduamente conseguida solidão, do rádio de pilha tocando o mais alto possível, da vastidão do quarto sem as Marias. Arrumou, como pedido de favor, um pouco de café solúvel com a dona dos quartos, e, ainda como favor, pediu-lhe água fervendo, tomou tudo se lambendo e diante do espelho para nada perder de si mesma. Encontrar-se consigo própria era um bem que ela até então não conhecia. Acho que nunca fui tão contente na vida, pensou. Não devia nada a ninguém e ninguém lhe devia nada. Até deu-se ao luxo de ter tédio — um tédio até muito distinto.”
Presentes na novela “A hora da estrela” (Rocco, 2020), de Clarice Lispector, páginas 16, 15-16, 56, 31-32, 67, 12, 08, 47, 23 e 37, respectivamente.
Aforismos de Clarice na novela
“Cada dia é um dia roubado da morte”
“Minha alegria também vem de minha mais profunda tristeza”
“Quem já não se perguntou: sou um monstro ou isto é ser uma pessoa?”
“A verdade só me vem quando estou sozinha”
“Porque há o direito ao grito. Então eu grito”
“A vida é um soco no estômago”
“Enquanto eu tiver perguntas e não houver resposta continuarei a escrever”
“Eu não sou um intelectual, escrevo com o corpo”
“Tudo no mundo começou com um sim”
“Se ainda escrevo é porque nada mais tenho a fazer no mundo enquanto espero a morte”
“O sertanejo é antes de tudo um paciente”
“Basta descobrir a verdade que ela logo já não é mais: passou o momento. Pergunto: o que é? Resposta: não é”
“Só consigo a simplicidade através de muito trabalho”
Aforismos presentes na novela “A hora da estrela” (Rocco, 2020), de Clarice Lispector, páginas 14, 32, 13, 62, 11, 75, 09, 14, 09, 63, 59, 77 e 09, respectivamente.
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