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Dez passagens de Tom Correia no livro de contos Clube dos niilistas



“Dormir de favor é sempre um constrangimento. A gente se torna o pó amontoado sobre os móveis. O lodo esverdeado que se acumula no fundo de um vaso sanitário branco. As pessoas fingem naturalidade dizendo que a casa é sua, mas é possível ver o desconforto delas grudado no teto, uma gosma repulsiva ameaçando cair sobre sua cabeça. Acorda-se bem mais cedo do que o habitual porque se tem dificuldade para se adaptar ao cubículo onde passa-se a noite: num sofá-cama duro, sem travesseiro, cheio de ácaros e manchas suspeitas. Já é o terceiro lugar diferente que me abriga em duas semanas. As coisas se sucederam de maneira tão rápida que eu não tive tempo sequer para pensar numa solução extrema. Por me sentir um invasor, eu me levanto sempre evitando fazer barulho. Passo pelos cômodos evitando criticar os móveis e a decoração. Sinto-me cansado para continuar minha busca. Fecho a porta com cuidado. Saio sem tomar café.”


“(...) Certa vez, um otário lançou a bola enquanto eu, distraído, ainda recolhia os pinos. A pancada deixou um pitombo na minha canela por vários dias. Eu ouvi a gargalhada dos filhos da puta, mas não pude fazer nada. Às vezes, quem lê muito termina perdendo o ímpeto de socar o nariz de quem merece.”


“(...) o velho piorou muito. Não queria comer nada. Não tinha mais força nem pra tossir. Fiquei em dúvida se chamava um socorro ou se assistia quieta o seu fim. Sua respiração estava bem fraca. Passei um tempo observando aquela criatura sem sentir nada. Resolvi subir na cama. Fiquei em pé. Olhando de cima, ele me pareceu um fiapo tristonho. Ele não se movia, apenas me investigava com seus olhos miúdos querendo descobrir o que eu pretendia. Me coloquei à altura do seu rosto pálido, suspendi meu vestido e fui me agachando devagar. Puxei minha calcinha pro lado e comecei a me esfregar nele com força, me segurando com uma mão na cabeceira da cama. Ele estava trêmulo, as mãos suavam frio. Quanto mais eu me esfregava, aumentava a sua agonia. Cavalgando em sua cara murcha, senti os tapas inofensivos que ele dava em minhas pernas, tentando respirar. A possibilidade de antecipar o seu fim foi me deixando úmida. Acelerei o ritmo dos quadris, fazendo estalar a estrutura de madeira da cama. Rebolando cada vez mais rápido, larguei todo meu peso sobre seu rosto até sentir um gozo repugnante, uma dor aguda que me rasgou a coxa direita.”


“(...) Eu era apenas um Ultraman falido, a luz no meu peito sempre piscando para alertar sobre a minha morte iminente. Quando o movimento caía, eu me abrigava um tempo sob o toldo. As meninas me ofereciam água que eu bebia em grandes goles, pois ainda precisava repor as prateleiras. Os pais, levando os filhos pela mão, se aproximavam com mais interesse quando me reconheciam. Indivíduos barrigudos, já ficando grisalhos, chegavam a me abraçar com entusiasmo ao posar para as fotos. Os mais desinibidos se expunham ao ridículo fazendo o papel de monstros toscos, rosnando. Faziam barulhos sibilantes com a boca simulando disparos e raios numa batalha épica de perdigotos. Isso atraía os curiosos. A porta da loja se tornava intransitável. Motoristas paravam para ver do que se tratava. O engarrafamento ganhava proporções consideráveis. As meninas da loja aproveitavam para fazer propaganda, arremessando panfletos coloridos em todas as direções. Para os mais crescidos, os pais explicavam que tiveram a infância marcada pelo Ultraman. Algumas mães também se lembravam do super-herói, mas apenas de maneira vaga. Muitas delas fechavam a cara com a empolgação dos maridos. Já os filhos adolescentes os desprezavam. Os pais conversavam comigo através de uma minúscula tela da minha vestimenta. Eles me contavam que, no auge do seriado, criaram fã-clubes com carteirinha e estatuto. Apesar de decepcionados por não encontrarem miniaturas do ídolo na loja, jamais saíam de mãos vazias. Submetiam-se aos garotos implicantes e levavam até um brinquedo a mais como recompensa. Camuflado, eu percebia as mudanças com mais nitidez. Eu só não sabia como tudo havia se perdido e os pais se transformaram em reféns apalermados da própria cria. O problema era todo deles, eu pensava.”


“(...) quando o pastoreco gritou LEVANTEM! eu levantei painho levantou e todos que não estavam doentes se levantaram e ficamos olhando para vôinho o único a permanecer sentado e imóvel com seus olhinhos tristes pedindo para a gente resolver aquilo pois não estava certo ele tinha a quitanda de frutas para abastecer e seus clientes para atender sem poder esperar e agora ele estava ali inválido diante de um pastor medonho que só sabia gritar e espernear e vimos que não tinha mais jeito e voltamos para casa abatidos empurrando seu corpanzil jogado em cima daquela estrutura de rodas pouco azeitadas travando no asfalto quente e depois de deixarmos vôinho melhor acomodado em sua poltrona que tinha ao lado uma caixinha de madeira cheia de pó de serra em que ele cuspia o fumo preto que ele mascava com prazer e agora nem isso mais podia pois o médico disse que fazia mal e um dia vôinho sentado nessa poltrona já sem os movimentos dos braços deixou seu membro flácido escapar pela braguilha escancarada para tentar ganhar o mundo com a ilusão de tornar-se de novo rígido para quem sabe ainda gerar o último filho e após o meu alerta envergonhado mãezinha Joana veio com seu cabelo curtinho e alvo e seu ar maroto andando devagar para guardar nostálgica aquele pedaço de carne inútil e comentar que o banho de vôinho só acontecia a cada oito dias e era sempre delicado levá-lo apoiado nos ombros e que transpor os poucos passos da sua poltrona até o banheiro era como atravessar um oceano inteiro escutando o barulho do chinelo do seu pé esquerdo dormente se arrastando no piso frio da grande casa construída por ele e alvo de disputa antecipada de um espólio que só fez afastar os irmãos já desunidos”


“Ao final de tanta história vaga, você pressente que aquilo não daria em nada. Tem muito plano de vida que já nasce morto. As pessoas tentam te convencer a embarcar no delírio, pois precisam de alguém para pôr a culpa quando tudo desmoronar.”


“(...) antes de você ir se apresentar no egódromo, o pátio onde eles se reúnem pra falar apenas deles mesmos, leia as regras de ouro que eles redigiram após anos de deliberações até chegarem a um consenso. Não sei se você já circulou pelo ambiente, mas o egódromo tem um local de oposição: a carpoaria. Ela ocupa uma pequena sala dentro do almoxarifado onde se reúnem os poucos santuaristas que também são críticos e também alguns críticos visitantes que passam horas destruindo a carreira de quem tenha sido eleito o escritor do ano. Tempos atrás ocorreu um concurso oficial pra escolher o destaque entre os santuaristas, mas após cinco anos seguidos de tentativas tivemos que extingui-lo, pois cada escritor votava apenas em si mesmo. Depois disso, vários deles se mobilizaram pra organizar seus próprios concursos literários particulares: o prêmio levava o nome do organizador, mas ninguém se inscrevia e isso foi deixado para outro momento, é o que se conta pelos corredores. (...) Eles abominam ser interrompidos. Todos os dias eles assistem aos vídeos de suas participações em feiras literárias, bienais, entrevistas, oficinas criativas, recebimento de premiações e assim por diante. Depois disso, eles vão ao egódromo para comentar seus desempenhos. Os aplausos são mecânicos, pois ninguém escuta o que o outro diz e todos falam de si ao mesmo tempo”


“(...) Negra de potentíssima voz, sorriso equino com dente falhado saltando dos lábios, cabelo curtíssimo, fazendo minha alma tremer ao revê-la toda nua, logo de manhãzinha, em frente à escola onde esperávamos abrirem os portões. Na igrejinha ali perto, dobravam os sinos intimando os fiéis a se acomodarem sobre os genuflexórios e condenarem a suposta sem-vergonhice da minha amada irmã Da Paz tão nova, nem bebia ainda, nem cantava ainda, os pequenos lindos seios duros, com seus pelos púbicos começando a crescer, os braços cruzados e a cabeça baixa de vergonha sob a chuva e sob o sol. Ainda hoje rememoro minha culpa de não tê-la protegido dos pivetes que não tiravam os olhos do seu triângulo intocado, muitos deles com seus pauzinhos já duros, desejando comer sem piedade a minha irmãzinha negra, engravidando-a se assim tivesse de acontecer com o único intuito de contar vantagens. As meninas se sentiam felizes por não estarem nuas em plena praça diante dos homenzinhos com quem já flertavam; e elas a humilhavam fazendo comentários maldosos, mas sem saber o que as aguardava, servidoras submissas aos imprestáveis maridos sem nenhuma possibilidade de fuga. Antes Da Paz cantando nua e liberta; antes Da Paz com seu brado feroz ecoando pelas ruas; antes Da Paz com sua voz rasgando a garganta, voz que não reconhecíamos, pois, estávamos esmagados pelas fórmulas de inútil pedagogia que seguíamos como ovelhas de olhos caídos.”


“Numa tarde em que fui surpreendido na poltrona da sala por um sonho repentino, me vi diante de uma plateia imensa. No palco, estávamos eu e uma espécie de mediador cujo rosto era indefinido. Eu não conseguia diferenciar se ele era homem, mulher ou trans. As pessoas foram ao evento apenas porque haviam divulgado minha presença na cidade. Eu escutava frases carinhosas vindas de vários pontos. O apresentador era espirituoso: pedia que o público se contivesse e tentava fazer graça, talvez para me deixar mais à vontade. Ele ou ela não sabia, mas isso nunca dava certo comigo, fosse ali ou na vida real, pensei assim, dentro do próprio sonho. Quando ela ou ele me passou o microfone, me atrapalhei e deixei cair papéis que se despedaçaram em centenas de pedaços vitrificados. A plateia veio abaixo, gargalhando. Ensaiei uma fala tímida, sem atrativo e o público se revoltou, passando a me xingar. Queriam o dinheiro de volta, enquanto arremessavam objetos no palco. Mesmo sem enxergar, antevi dezenas de pares de sapatos voando em minha direção. Me esquivei como Bush fez naquela entrevista coletiva. Tentei me levantar para sair correndo às escuras, mas lembrei do cachê e decidi encarar o mau humor da plateia indócil. O mediador estava contrariado e me alfinetou com frases irônicas. Evitei rebater suas críticas e para minha alegria notei que tinha voltado a ficar cego, acolhido pela escuridão. Só então consegui ver o rosto do mediador com nitidez: era Harena, meu ex cão-guia.”


“Você anota o endereço sem ter ideia de como chegar lá. Vai perguntando a um e a outro. Você está paralisado depois do que aconteceu. No caminho você pensa que não importa o quanto a alma das pessoas traga em si alguma compaixão. Basta apenas uma pedra ser arremessada e tudo desmorona. Às vezes, você se arrepende. Você poderia estar no mesmo lugar de sempre, sem se ver obrigado a viver em desterro. Você só consegue chegar ao sobrado no final da tarde. As sombras e a brisa te acalmam, mas é mentira. Você sente que já não é mais o mesmo. Algo se rompeu por dentro. Sobe as escadas. Sente o cheiro de parede descascada e pronta para receber tinta. Vê um latão e tenta presumir a cor para distrair sua mente. Um cara franzino e calvo fuma um cigarro à janela. Ele se levanta de modo brusco ao te ver, como se tivesse sido flagrado cometendo um crime terrível. Era um curso para modelos. A mesa estava repleta de fichas das alunas.”


Presentes no livro de contos “Clube dos niilistas” (Urutau, 2021), de Tom Correia, páginas 45, 69, 84-85, 48-49, 59-60, 18, 97-98, 40-41, 33-34 e 13-14, respectivamente.

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