“(...) Vida é vida, e não adianta fugir: quando a gente foge, ela corre atrás. É melhor ir ao encontro dela.”
“(...) ele pediu num tom implorador: deixe eu entrar que salto antes, a essa hora está difícil de encontrar táxi. Eu disse que ele entrasse. Entrou e sentou-se ao lado do chofer. E começou, virado para trás: porque ele era casado, porque era muito feliz, porque não se incomodava que sua mulher envelhecesse porque era sempre a mulher amada, porque hoje lhe mandara rosas sem ser aniversário de nada, porque... Bem — pensei — este engana sua mulher fartamente.”
“Eu ia ao Jardim Botânico para quê? Só para olhar. Só para ver. Só para sentir. Só para viver. (...) Saltei do táxi e atravessei os largos portões. A sombra logo me acolheu. Fiquei parada. Lá a vida verde era larga. Eu não via ali nenhuma avareza: tudo se dava por inteiro ao vento, no ar, à vida, tudo se erguia em direção ao céu. E mais: dava também o seu mistério. (...) O mistério me rodeava. Olhei arbustos frágeis recém-plantados. Olhei uma árvore de tronco nodoso e escuro, tão largo que me seria impossível abraçá-lo. Por dentro dessa madeira de rocha, através de raízes pesadas e duras como garras — como é que corria a seiva, essa coisa quase intangível e que é vida? Havia seiva em tudo como há sangue em nosso corpo. (...) De propósito não vou descrever o que vi: cada pessoa tem que descobrir sozinha. Apenas lembrarei que havia sombras oscilantes, secretas. De passagem falarei de leve na liberdade dos pássaros. E na minha liberdade. Mas é só. O resto era o verde úmido subindo em mim pelas minhas raízes incógnitas. Eu andava, andava. Às vezes parava. Já me afastara muito do portão de entrada, não o via mais, pois entrara em tantas alamedas. Eu sentia um medo bom — como um estremecimento apenas perceptível de alma — um medo bom de talvez estar perdida e nunca mais, porém nunca mais! achar a porta de saída.”
“Fui à cidade. Tinha um ajuntamento grande de pessoas. Perguntei o que era. Informaram-me que estavam à procura de um esfaqueador que matou seis mulheres e estava fugido no morro. Tive medo. Não quero morrer. Morrer é ruim. (...) Fui não sei para que para a Faculdade de Letras. Não quis visitar a biblioteca. Não sou culta. A freira que me atendeu não sabia de nada. Tinha uma aula de História da Arte. Não quis assistir: Chega de arte, embora eu seja artista. Tenho vergonha de ser escritora — não dá pé. Parece demais com coisa mental e não intuitiva.”
“Em outra vida que tive, eu era sócia de uma biblioteca popular de aluguel. Sem guia, escolhia os livros pelo título. E eis que escolhi um dia um livro chamado O lobo da estepe, de Herman Hesse. O título me agradou, pensei tratar-se de um livro de aventuras tipo Jack London. O livro, que li cada vez mais deslumbrada, era de aventura, sim, mas outras aventuras. E eu, que já escrevia pequenos contos, dos 13 aos 14 anos fui germinada por Herman Hesse e comecei a escrever um longo conto imitando-o: a viagem interior me fascinava. Eu havia entrado em contato com a grande literatura. (...) Em outra vida que tive, aos 15 anos, com o primeiro dinheiro ganho por trabalho meu, entrei altiva porque tinha dinheiro, numa livraria, que me pareceu o mundo onde eu gostaria de morar. Folheei quase todos os livros dos balcões, lia algumas linhas e passava para outro. E de repente, um dos livros que abri continha frases tão diferentes que fiquei lendo, presa, ali mesmo. Emocionada, eu pensava: mas esse livro sou eu! E, contendo um estremecimento de profunda emoção, comprei-o. Só depois vim a saber que a autora não era anônima, sendo, ao contrário, considerada um dos melhores escritores de sua época: Katherine Mansfield.”
“Como gato por lebre a toda hora. Por tolice, por distração, por ignorância. E até às vezes por delicadeza: me oferecem gato e agradeço a falsa lebre, e quando a lebre mia, finjo que não ouvi. Porque sei que a mentira foi para me agradar. Mas não perdoo muito quando o motivo é de má-fé.”
“O que é um espelho? Não existe a palavra espelho, só espelhos, pois um único é uma infinidade de espelhos. Em algum lugar do mundo deve haver uma mina de espelhos? Não são precisos muitos para se ter a mina faiscante e sonambúlica; bastam dois, e um reflete o reflexo do que o outro refletiu, num tremor que se transmite em mensagem intensa e insistente ad infinitum, liquidez em que se pode mergulhar a mão fascinada e retirá-la escorrendo de reflexos dessa dura água. O que é um espelho? Como a bola de cristal dos videntes, ele me arrasta para o vazio que no vidente é o seu campo de meditação, e em mim o campo de silêncios e silêncios. (...) Quem olha um espelho conseguindo ao mesmo tempo isenção de si mesmo, quem consegue vê-lo sem se ver, quem entende que a sua profundidade é ele ser vazio, quem caminha para dentro de seu espaço transparente sem deixar nele o vestígio da própria imagem — então percebeu seu mistério. Para isso há de se surpreendê-lo sozinho, quando pendurado num quarto vazio, sem esquecer que a mais tênue agulha diante dele poderia transformá-lo em simples imagem de uma agulha.”
“(...) certas pessoas achavam meus livros difíceis e no entanto achavam perfeitamente fácil entender-me no jornal, mesmo quando publico textos mais complicados. Há um texto meu sobre o estado de graça que, pelo próprio assunto, não seria tão comunicável e no entanto soube, para meu espanto, que foi parar até dentro de missal. Que coisa! (...) a compreensão do leitor depende muito de sua atitude na abordagem do texto, de sua predisposição, de sua isenção de ideias preconcebidas. E o leitor de jornal, habituado a ler sem dificuldade o jornal, está predisposto a entender tudo. E isto simplesmente porque ‘jornal é para ser entendido’. Não há dúvida, porém, de que eu valorizo muito mais o que escrevo em livros do que o que escrevo para jornais — isso sem, no entanto, deixar de escrever com gosto para o leitor de jornal e sem deixar de amá-lo.”
“(...) a mulher sabe que está sendo bom para ele: é depois de grandes jornadas e de grandes lutas que ele enfim compreende que precisa se ajoelhar diante da mulher. E, depois, é bom porque a cabeça do homem fica perto dos joelhos da mulher e perto de suas mãos, no seu colo, que é sua parte mais quente. E ela pode fazer o seu melhor gesto: nas mãos, que ficam a um tempo frementes e firmes, pegar aquela cabeça cansada que é fruto entre seu e dela.”
“Se o meu mundo não fosse humano, também haveria lugar para mim: eu seria uma mancha difusa de instintos, doçuras e ferocidades, uma trêmula irradiação de paz e luta: se o mundo não fosse humano eu me arranjaria sendo um bicho. Por um instante então desprezo o lado humano da vida e experimento a silenciosa alma da vida animal. É bom, é verdadeiro, ela é a semente do que depois se torna humano.”
Presentes no livro “Todas as crônicas” (Rocco, 2018), de Clarice Lispector, páginas 500, 493, 491, 527, 547-548, 534, 529-530, 514-515, 509-510 e 482, respectivamente.
Aforismos de Clarice nas crônicas
“O verão está instalado no meu coração”
“Quando faço charme é sem sentir e sem querer, simplesmente acontece”
“Amor será dar de presente um ao outro a própria solidão? Pois é a coisa mais última que se pode dar de si.”
“Não se faz uma frase. A frase nasce”
“Reservo-me o direito de dizer: não sei”
“Ter nascido me estragou a saúde”
“Tudo o que é forte demais parece estar perto de um fim”
“A tendência da vida é imitar ou aceitar o estabelecido”
Aforismos presentes no livro “Todas as crônicas” (Rocco, 2018), de Clarice Lispector, páginas 475, 489, 508, 532, 561, 487, 480 e 507, respectivamente.
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