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Quinze passagens de Clarice Lispector nas crônicas de 1971



“Está fazendo um dia lindo de outono. A praia estava cheia de um vento bom, de uma liberdade. E eu estava só. E naqueles momentos não precisava de ninguém. Preciso aprender a não precisar de ninguém. É difícil, porque preciso repartir com alguém o que sinto. O mar estava calmo. Eu também. Mas à espreita, em suspeita. Como se essa calma não pudesse durar. Algo está sempre por acontecer. O imprevisto me fascina.”


“Se você não tomar cuidado vira número até para si mesmo. Porque a partir do instante em que você nasce classificam-no com um número. (...) O registro civil é um número. Seu título de eleitor é um número. Profissionalmente falando você também é. Para ser motorista, tem carteira com número, e chapa de carro. No Imposto de Renda, o contribuinte é identificado com um número. Seu prédio, seu telefone, seu número de apartamento — tudo é número. (...) E quando a gente morre, no jazigo, tem um número. E a certidão de óbito também. (...) Não somos ninguém? Protesto. Aliás é inútil o protesto. E vai ver meu protesto também é um número. (...) Uma amiga minha contou que no Alto Sertão de Pernambuco uma mulher estava com o filho doente, desidratado, foi ao Posto de Saúde. E recebeu a ficha número 10. Mas dentro do horário previsto pelo médico a criança não pôde ser atendida porque só atenderam até o número 9. A criança morreu por causa de um número. Nós somos culpados. (...) Nossa sociedade está nos deixando secos como um número seco, como um osso branco seco exposto ao sol.”


          “Tom Jobim foi o meu padrinho no I Festival de Escritores, não me lembro em que ano, no lançamento de meu romance A maçã no escuro. E na nossa barraca ele fazia brincadeiras: segurava o livro na mão e perguntava:
          — Quem compra? Quem quer comprar?
          Não sei, mas o fato é que vendi todos os exemplares.”


          “Essa grafia, Xico Buark, foi inventada por Millôr Fernandes, numa noite no Antonio’s. Gostei como quando eu brincava com palavras em criança. Quanto ao Chico, apenas sorriu um sorriso duplo: um por achar engraçado, outro mecânico e tristonho de quem foi aniquilado pela fama. Se Xico Buark não combina com a figura pura e um pouco melancólica de Chico, combina com a qualidade que ele tem de deixar os outros o chamarem e ele vir, com a capacidade que tem de sorrir conservando muitas vezes os olhos verdes abertos e sem riso. Não é um garoto, mas se existisse no reino animal um bicho pensativo e belo e eternamente jovem que se chamasse garoto, Francisco Buarque de Holanda seria dessa raça montanhosa. (...) Para ele, criar não é muito laborioso. Às vezes está procurando criar alguma coisa e dorme pensando nisso, acorda pensando nisso — e nada. Em geral cansa e desiste. No outro dia a coisa estoura e qualquer pessoa pensaria que era gratuita, nascida naquele momento. Mas essa explosão vem do trabalho anterior inconsciente e aparentemente negativo.
          (...)
          Chico acha que tem cara de bobo porque suas reações são muito lentas, mas que no fundo é um vivo. Só que pôr os pés no chão no sentido prático o atrapalha um pouco. Acha que o sucesso faz parte dessas coisas exteriores que não contribuem em nada para ele: a pessoa tem sua vaidade, alegra-se, mas isso não é importante. Importante é aquele sofrimento de quem procura buscar e achar. Hoje, disse-me, acordei com um sofrimento de vazio danado porque ontem terminei um trabalho.
          (...)
          Chico tem um ar de bom rapaz, desses que todas as mães com filhas casadoiras gostariam de ter como genro. Esse ar de bom rapaz vem da bondade misturada com bom humor, melancolia e honestidade. Tem o ar crédulo, mas diz que não é, é apenas muito preguiçoso.
          (...)
          Perguntei-lhe se já experimentara sentir-se em solidão ou se sua vida tinha sempre esse brilho justificável. Eu aconselhei que de vez em quando ficasse sozinho, senão seria submergido, pois até o amor excessivo dos outros podia submergir uma pessoa. Ele concordou e disse que sempre que podia dava suas retiradas.”


“Sofro se isso acontecer, que alguém leia meus livros apenas no método do vira-depressa-a-página dinâmico. Escrevi-os com amor, atenção, dor e pesquisa, e queria de volta como mínimo uma atenção completa. Uma atenção e um interesse como o seu, Tom. E no entanto o cômico é que eu não tenho mais paciência de ler ficção. (...) meus livros, felizmente para mim, não são superlotados de fatos, e sim da repercussão dos fatos no indivíduo. Há quem diga que a música e a literatura vão acabar. Sabe quem disse isso? Henry Miller. Não sei se ele queria dizer para já ou para daqui a 300 ou 500 anos. Mas eu acho que nunca acabarão. (...) Acho que o som da música é imprescindível para o ser humano e que o uso da palavra falada e escrita é como a música, duas coisas das mais altas que nos elevam do reino dos macacos, do reino animal.”


“(...) uma relação íntima estabeleceu-se entre o homem e a flor: ele a admirava e ela parecia sentir-se admirada. E tão gloriosa ficou, e com tanto amor era observada, que se passavam os dias e ela não murchava: continuava de corola toda aberta e túmida e fresca como flor nova. Durou em beleza uma semana inteira. Só depois começou a dar mostras de algum cansaço. Depois morreu. Foi com relutância que meu amigo a trocou por outra. E nunca a esqueceu. O curioso é que uma paciente sua que frequentava o consultório perguntou-lhe sem mais nem menos: ‘E aquela rosa?’ Ele nem perguntou qual, sabia da que a paciente falava. Essa rosa, que viveu mais longamente por amor, era lembrada porque a paciente, tendo visto o modo como o médico olhava a flor, transmitindo-lhe em ondas a própria energia vital, intuíra cegamente que algo se passava entre ele e a rosa. Esta — e deu-me vontade de chamá-la de ‘joia da vida’ — tinha tanto instinto de natureza que o médico e ela haviam podido se viverem um ao outro profundamente, como só acontece entre bichos e homens.”


“(...) dei o nome rebuscado de Dilermando pelo que nele havia de pernosticamente simpático e de bacharel do começo do século. (...) Nossas relações eram tão estreitas, sua sensibilidade estava de tal modo ligada à minha que ele pressentia e sentia minhas dificuldades. Quando eu estava escrevendo à máquina, ele ficava meio deitado ao meu lado, exatamente como a figura da esfinge, dormitando. Se eu parava de bater por ter encontrado um obstáculo e ficava muito desanimada, ele imediatamente abria os olhos, levantava alto a cabeça, olhava-me, com uma das orelhas de pé, esperando. Quando eu resolvia o problema e continuava a escrever, ele se acomodava de novo na sua sonolência povoada de que sonhos — porque cachorro sonha, eu vi. Nenhum ser humano me deu jamais a sensação de ser tão totalmente amada como fui amada sem restrições por esse cão. (...) às vezes sinto o mudo grito ancestral dentro de mim quando estou com eles: parece que não sei mais quem é o animal, se eu ou o bicho, e me confundo toda (...) Conheci uma mulher que humanizava os bichos, conversando com eles, emprestando-lhes suas próprias características. Mas eu não humanizo os bichos, acho que é uma ofensa — há de respeitar-lhes a natura — eu é que me animalizo.”


“Como é que ousaram me dizer que eu mais vegeto que vivo? Só porque levo uma vida um pouco retirada das luzes do palco. Logo eu, que vivo a vida no seu elemento puro. Tão em contato estou com o inefável. Respiro profundamente Deus. E vivo muitas vidas. Não quero enumerar quantas vidas dos outros eu vivo. Mas sinto-as todas, todas respirando. E tenho a vida de meus mortos. A eles dedico muita meditação. Estou em pleno coração do mistério. Às vezes minha alma se contorce toda. Tenho uma amiga que tem cálculos renais. E, quando uma pedra quer passar, ela vive o inferno até que passe. Espiritualmente, muitas vezes uma pedra quer passar, então eu me contorço toda. Depois que ela passa, fico toda pura. É mentira dizer que a gente não pode ser ajudada. Sou ajudada pela mera presença de uma pessoa vivendo. Sou ajudada pela saudade mansa e dolorida de quem eu amei. E sou ajudada pela minha própria respiração. E há momentos de riso ou de sorriso. De alegria, a mais alta. (...) No momento em que escrevo, minha nudez é casta. E é bom escrever: é a pedra passando enfim. Entrego-me toda a esses momentos. E possuo a minha morte. Já tenho uma grande saudade dos que eu deixarei. Mas estou tão leve. Nada me dói. Porque estou vivendo o mistério. A eternidade antes de mim e depois de mim.”


“Numa de minhas viagens à Europa, o avião, não sei por que motivo, teve que mudar de rota. E fui inesperadamente passar três dias no Egito. Vi antes as pirâmides de noite. Fui de carro, a noite estava completamente escura. Saltei e perguntei: mas onde estão as pirâmides? Pois estavam a uns dois metros de distância. Assustei-me. De dia elas são menos perigosas. De dia vi o deserto do Saara: as areias não são brancas, são cor de creme. (...) Vi a Esfinge. Não a decifrei. Mas ela também não me decifrou. Encaramo-nos de igual para igual. Ela me aceitou, eu a aceitei. Cada um com seu mistério.”


“Com duas pessoas eu já entrei em comunicação tão forte que deixei de existir, sendo. Como explicar? Olhávamo-nos nos olhos e não dizíamos nada, e eu era a outra pessoa e a outra pessoa era eu. É tão difícil falar, é tão difícil dizer coisas que não podem ser ditas, é tão silencioso. Como traduzir o profundo silêncio do encontro entre duas almas? É dificílimo contar: nós estávamos nos olhando fixamente, e assim ficamos por uns instantes. Éramos um só ser. Esses momentos são o meu segredo. Houve o que se chama de comunhão perfeita. Eu chamo isso de: estado agudo de felicidade. Estou terrivelmente lúcida e parece que estou atingindo um plano mais alto de humanidade.”


“Lembro-me de uma embaixatriz em Washington que mandava e desmandava nas mulheres dos diplomatas que lá serviam. Dava ordens brutas. Dizia por exemplo à mulher de um secretário de embaixada: não venha à recepção vestida com um saco. A mim — não sei por quê — nunca disse nada, nenhuma palavra grosseira: respeitava-me. Às vezes se sentia angustiada, e me telefonava perguntando se podia ir me visitar. Eu dizia que sim. Ela vinha. Lembro-me de uma vez em que — sentada no sofá de minha própria casa — ela me confiou em segredo que não gostava de certo tipo de pessoa. Fiquei surpreendida: pois eu era exatamente essa pessoa. Ela não sabia. Desconhecia-me ou pelo menos parte de mim.”


“Sei de uma história muito bonita. Um espanhol amigo meu, Jaime Vilaseca, contou-me que morou uns tempos com parte de sua família que vivia em pequena aldeia num vale dos altos e nevados Pireneus. No inverno os lobos esfaimados terminavam descendo das montanhas até a aldeia, farejando presa, e todos os habitantes se trancavam atentos em casa, abrigando na sala ovelhas, cavalos, cães, cabras, calor humano e calor animal, todos alertas ouvindo o arranhar das garras dos lobos nas portas cerradas, escutando, escutando...”


“(...) Não entendo a morte. Mas não tenho medo de morrer. Vai ser um descanso: um berço enfim. Não a apressarei, viverei até a última gota de fel. Não gosto quando dizem que tenho afinidades com Virgínia Woolf (só a li, aliás, depois de escrever o meu primeiro livro): é que não quero perdoar o fato de ela se ter suicidado. O horrível dever é ir até o fim. E sem contar com ninguém.”


“(...) você esmaga uma rosa se apertá-la com carinho demais. Sei que o tom é uma unidade indivisível por palavras. Mas estilhaçar o silêncio em palavras é um dos meus modos desajeitados de amar o silêncio. E é quebrando o silêncio que muitas vezes tenho matado o que compreendo. Se bem que — glória a Deus — sei mais silêncio que palavras.”


“Um domingo de tarde sozinha em casa dobrei-me em dois para a frente — como em dores de parto — e vi que a menina em mim estava morrendo. Nunca esquecerei esse domingo. Para cicatrizar levou dias. E eis-me aqui. Dura, silenciosa e heroica. Sem menina dentro de mim.”


Presentes no livro “Todas as crônicas” (Rocco, 2018), de Clarice Lispector, páginas 391, 430-431, 418, 415 a 417, 419, 378, 374-375, 412-413, 409, 391, 446, 377, 390, 444 e 447, respectivamente.


Aforismos de Clarice nas crônicas

“Desculpem, mas se morre”

“Escrever é tantas vezes lembrar-se do que nunca existiu”

“Quem se recusa à visão de um bicho está com medo de si próprio”

“É preciso antes saber, depois esquecer. Só então se começa a respirar livremente”

“Cada um de nós reconhece o martírio de quem está protegendo um sonho”

“De algum modo as pessoas são eternas. Quem me lê também”

“O pior de mentir é que cria falsa verdade”

“Pagam-me para eu escrever. Eu escrevo, então”

Aforismos presentes no livro “Todas as crônicas” (Rocco, 2018), de Clarice Lispector, páginas 402, 368, 375, 406, 444, 447, 461 e 392, respectivamente.

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