Ferreira Gullar em julho de 1950
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Ferreira Gullar
Prometi‑me possuí‑la muito embora
ela me redimisse ou me cegasse.
Busquei‑a nas catástrofes, da aurora,
e na fonte e no muro onde sua face,
entre a alucinação e a paz sonora
da água e do musgo, solitária nasce.
Mas sempre que me acerco vai‑se embora
como se me temesse ou me odiasse.
Assim persigo‑a, lúcido e demente.
Se por detrás da tarde transparente
seus pés vislumbro, logo nos desvãos
das nuvens fogem, luminosos e ágeis.
Vocabulário e corpo — deuses frágeis —
eu colho a ausência que me queima as mãos.
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P.M.S.L.
Ferreira Gullar
Impossível é não odiar
estas manhãs sem teto
e as valsas
que banalizam a morte.
Tudo que fácil se
dá quer negar-nos. Teme
o ludíbrio das corolas.
Na orquídea busca a orquídea
que não é apenas o fátuo
cintilar das pétalas: busca a móvel
orquídea: ela caminha em si, é
contínuo negar-se no seu fogo, seu
arder é deslizar.
Vê o céu. Mais
que azul, ele é o nosso
sucessivo morrer. Ácido
céu.
Tudo se retrai, e a teu amor
oferta um disfarce de si. Tudo
odeia se dar. Conheces a água?
ou apenas o som do que ela
finge?
Não te aconselho o amor. O amor
é fácil e triste. Não se ama
no amor, senão
o seu próximo findar.
Eis o que somos: o nosso
tédio de ser.
Despreza o mar acessível
que nas praias se entrega, e
o das galeras de susto; despreza o mar
que amas, e só assim terás
o exato inviolável
mar autêntico!
O girassol
vê com assombro
que só a sua precariedade
floresce. Mas esse
assombro é que é ele, em verdade.
Saber-se
fonte única de si
alucina.
Sublime, pois, seria
suicidar-nos:
trairmos a nossa morte
para num sol que jamais somos
nos consumirmos.
São Luís, 6-7-51
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Ferreira Gullar
Neste leito de ausência em que me esqueço
desperta um longo rio solitário:
se ele cresce de mim, se dele cresço,
mal sabe o coração desnecessário.
O rio corre e vai sem ter começo
nem foz, e o curso, que é constante, é vário.
Vai nas águas levando, involuntário,
luas onde me acordo e me adormeço.
Sobre o leito de sal, sou luz e gesso:
duplo espelho — o precário no precário.
Flore um lado de mim? No outro, ao contrário,
de silêncio em silêncio me apodreço.
Entre o que é rosa e lodo necessário,
passa o rio sem foz e sem começo.
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Ferreira Gullar
Fluo obscuro de mim, enquanto a rosa
se entrega ao mundo, estrela tranquila.
Nada sei do que sofro.
O mesmo tempo
que em mim é frustração, nela cintila.
E este por sobre nós espelho, lento,
bebe ódio em mim; nela, o vermelho.
Morro o que sou nos dois.
O mesmo vento
que impele a rosa é que nos move, espelho!
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As peras
Ferreira Gullar
As peras, no prato,
apodrecem.
O relógio, sobre elas,
mede
a sua morte?
Paremos a pêndula. De-
teríamos, assim, a
morte das frutas?
Oh as peras cansaram-se
de suas formas e de
sua doçura! As peras,
concluídas, gastam-se no
fulgor de estarem prontas
para nada.
O relógio
não mede. Trabalha
no vazio: sua voz desliza
fora dos corpos.
Tudo é o cansaço
de si. As peras se consomem
no seu doirado
sossego. As flores, no canteiro
diário, ardem,
ardem, em vermelhos e azuis. Tudo
desliza e está só.
O dia
comum, dia de todos, é a
distância entre as coisas.
Mas o dia do gato, o felino
e sem palavras
dia do gato que passa entre os móveis
é passar. Não entre os móveis. Pas-
sar como eu
passo: entre nada.
O dia das peras
é o seu apodrecimento.
É tranquilo o dia
das peras? Elas
não gritam, como
o galo.
Gritar
para quê? Se o canto
é apenas um arco
efêmero fora do
coração?
Era preciso que
o canto não cessasse
nunca. Não pelo
canto (canto que os
homens ouvem) mas
porque, can-
tando, o galo
é sem morte.
14-7-51
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Ferreira Gullar
Um fogo sem clarão queima os frutos
neste campo. Onde a vegetação não ri.
Cavamos a palavra. Sob o seu lustro
a cal; e cavamos a cal.
Onde jorrara a fonte, as pedras
secas. Onde jorrara
a fonte, jorrara a fonte.
Aqui jorrara a fonte.
Um fogo sem clarão cria os frutos deste campo.
Isto é a poeira florindo
sem rumor e sem milagre. A poeira
florindo o seu milagre.
Isto é um verão se erguendo
com as suas folhas e o seu sol.
Duma garganta clara,
o mar (um verão)
se erguendo sem barulho.
Numa altura do ar,
esplendentes,
as frutas.
Aonde não chega a fome, a nossa
fome, nos mostro:
as frutas!
Onde jorrara a fonte, jorrara
a fome. Onde jorrara
a morte, jorrara
a fonte. Aqui,
jorrara a fonte.
Aqui, onde jorrara
a morte, a água sorria
livre; a primavera
brilhava nos meus dentes.
Onde jorrando a morte, a fome vinha
e a boca apodrecia, bem, seu hálito;
e, no hálito, as rosas
desta fonte; e, nas rosas,
a morte desta fome.
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Ferreira Gullar
O odor
do corpo é impuro,
mas é preciso amá-lo.
Nenhum outro sol me clareia,
senão esse, mortal
como um pássaro,
que meu trabalho acende
desse odor.
E é assim que a alegria constrói;
dentro de minha boca,
o seu cristal difícil.
Out. 1952
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Ferreira Gullar
O mito nos apura
em seus cristais.
Os ventos que enterramos
não nos deixam.
Estão nos castigando
com seu escuro fogo.
A altura em que queimamos
o sono
estabelece o nosso inferno
e as nossas armas.
10-11-52
“A luta corporal” está incluído em “Toda poesia” (Companhia das Letras, 2021), de Ferreira Gullar, donde esses poemas foram peneirados, páginas 16, 24-25, 17, 18, 27-28, 55-56, 59 e 61-2, respectivamente.
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