“(...) Judith não seria mandada para a escola. E ninguém lê em latim sem ao menos saber as declinações. Às vezes, como tinha tanto desejo de aprender, pegava nos livros do irmão. Os pais intervinham: mandavam-na cerzir meias ou vigiar o assado. Não por maldade: adoravam-na e queriam que ela se tornasse uma verdadeira mulher. Chegou a época de casar. Ela não queria, sonhava com outros mundos. Apanhou do pai, viu as lágrimas da mãe. Em luta com tudo, mas com o mesmo ímpeto do irmão, arrumou uma trouxa e fugiu para Londres. Também Judith gostava de teatro. Parou na porta de um, disse que queria trabalhar com os artistas — foi uma risada geral, todos imaginaram logo outra coisa. Como poderia arranjar comida? Nem podia ficar andando pelas ruas. Alguém, um homem, teve pena dela. Em breve ela esperava um filho. Até que numa noite de inverno, ela se matou. ‘Quem’, diz Virginia Woolf, ‘poderá calcular o calor e a violência de um coração de poeta quando preso no corpo de uma mulher?’”
“Com 4 anos, andando na rua com grande cuidado não só para não pisar na lama, como para estar bem longe dela.
— Pedro, basta não pisar na lama! Pra quê esse cuidado?
— Para não sujar a minha sombra.”
“(...) O futuro de um homem de vanguarda é amanhã não ser lido exatamente por aqueles que mais se assemelham a ele: exatamente os mais aptos a entender sua necessidade de procura estarão amanhã ocupados demais com novos movimentos de procura. Pensando em vários homens de nossa vanguarda, ocorreu-me sem nenhuma melancolia que é então, exatamente, que o escritor de vanguarda terá atingido sua finalidade maior: se terá dado tanto e terá sido tão bem usado que amanhã desaparecerá. Eu disse amanhã. Mas depois de amanhã — passada a vanguarda, passado o necessário silêncio — depois de amanhã ele se levanta de novo.”
“De noite, me chamou na cama.
— Mamãe, estou triste.
— Por quê?
— Porque é noite e eu amo você.”
“(...) o contato com o sobrenatural é feito em silêncio e [numa profunda] meditação solitária. A inspiração, para qualquer forma de arte, tem um toque mágico porque a criação é absolutamente inexplicável. Não creio que a inspiração venha do sobrenatural. Suponho que emerge do mais profundo ‘eu’ de cada pessoa, das profundezas do inconsciente individual, coletivo cósmico. O que não deixa de certa forma ser um pouco sobrenatural. Mas acontece que tudo que vive e que chamamos de ‘natural’ é, em última instância, sobrenatural.”
“Um dia, perguntou-me por que andava eu tão diferente. (...) Expliquei-lhe então que estava apaixonadíssima por D..., e, numa maravilhosa inspiração (lamentei que o examinador não me ouvisse), disse-lhe que, no caso, eu não poderia unir os contraditórios, fazendo a síntese hegeliana. Inútil a digressão.
Jimmy olhava-me estupidamente e só soube perguntar:
— E eu?
Irritei-me.
Não sei, respondi, chutando uma pedrinha imaginária e pensando: ora, arranje-se! Nós somos simples animais.”
“(...) Como explicar a inspiração? Às vezes, no meio da noite, dormindo um sono profundo, eu acordo de repente, anoto uma frase cheia de palavras novas, depois volto a dormir como se nada tivesse acontecido. Escrever, e falo de escrever de verdade, é completamente mágico. As palavras vêm de lugares tão distantes dentro de mim que parecem ter sido pensadas por desconhecidos, e não por mim mesma. Os críticos consideram que escrevo o que chamam de ‘realismo mágico’. E um crítico, não me lembro de qual país da América Latina, escreveu sobre mim: ela não é escritora, é uma bruxa.”
“Não há direito de punir. Há apenas poder de punir. O homem é punido pelo seu crime porque o Estado é mais forte que ele, a guerra, grande crime, não é punida porque se acima dum homem há os homens acima dos homens nada mais há. (...) E não há direito de punir porque a própria representação do crime na mente humana é o que há de mais instável e relativo: como julgar que posso punir baseada apenas em que o meu critério de julgamento para tonalizar tal ato como criminoso ou não, é superior a todos os outros critérios? (...) O que é certo, na questão da punição, é que determinadas instituições, em dada época, sentindo-se ameaçadas em sua solidez com a perpetração de determinados atos, taxa-os como puníveis, muitas vezes nesses atos não há nem a sombra de um delito natural: essas instituições querem apenas se defender.”
“Em Drummond houve o divórcio ainda mais flagrante do declamatório. Drummond é a palavra nua, coberta somente por uma tênue camada: a da contenção da nudez. Drummond não se permite o êxtase, nem mesmo o do sofrimento — e nessa autoprivação ele nos dói ainda mais. Mas com isso não está nada dito sobre Drummond, nem como foi que ele nos guiou tanto. Por incapacidade minha de análise, eu não tentaria analisá-lo. Essa minha incapacidade me dá grande alegria pessoal, no caso: por não poder analisá-lo, é que fico com todo ele. (...) Lendo Drummond, não um poema, mas acompanhando a sua obra, acompanha-se a profunda respiração de um homem. Ele é um guia, sem que eu saiba dizer em quê — e isto é vanguarda para mim.”
“(...) Tenho o maior respeito por gramática, e pretendo nunca lidar conscientemente com ela. Em matéria de escrever certo, escrevo mais ou menos certo de ouvido, por intuição, pois o certo sempre soa melhor.”
Presentes no livro “Outros escritos” (Rocco, 2020), de Clarice Lispector, páginas 92-93, 81, 106, 79, 123, 19, 126, 48, 102-103 e 119, respectivamente.
Aforismos de Clarice em “Outros escritos”
“Nós somos a única presença que não nos deixará até a morte”
“Todos falam e ninguém ouve”
“Aprendo com as crianças tudo o que os sábios ainda não sabem”
“Não há mesmo nada a fazer senão viver”
“Mesmo na felicidade eu já procurava nas lágrimas o gosto prévio da desgraça experimentar”
Aforismos presentes no livro de crônicas “Outros escritos” (Rocco, 2020), de Clarice Lispector, páginas 21, 71, 75, 20 e 66, respectivamente.
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