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Quinze passagens de Paul Auster no romance 4 3 2 1



“O que estou dizendo é que a gente nunca sabe se fez a opção errada ou não. Seria preciso saber de todos os fatos antes de decidir, e a única maneira de obter todos os fatos é estar em dois lugares ao mesmo tempo — o que é impossível.”


“‘Não acredito mais em Deus’, escreveu numa delas. ‘Pelo menos, não no Deus do judaísmo, do cristianismo ou de nenhuma religião. A Bíblia diz que Deus criou o homem à sua própria imagem, mas foram os homens que escreveram a Bíblia, não é? O que significa que foi o homem que criou Deus à sua imagem. O que também significa que Deus não toma conta de nós e com certeza não dá a mínima para o que os homens pensam ou sentem. Se ligasse para nós, por pouco que fosse, não teria feito um mundo com tantas coisas terríveis. Os homens não lutariam em guerras nem se matariam uns aos outros nem construiriam campos de concentração. Não mentiriam, não enganariam, não roubariam. Não estou dizendo que Deus não criou o mundo (não foi nenhum homem que fez isso!), mas, terminado o trabalho, ele desapareceu nos átomos e nas moléculas do universo e nos deixou de lado, para a gente se virar sozinho.’”


“(...) por mais que tivesse sido divertido ficar com Ferguson no ano anterior, o que eles tinham feito não passava de coisa de criança, na verdade, e Brian tinha largado aquilo depois que entrou para a faculdade, tinha deixado tudo para trás, para sempre, e ainda que Ferguson continuasse a ser seu amigo número um de toda a vida, a amizade deles teria de ser apenas uma amizade normal dali em diante. (...) Normal. O que significava normal, Ferguson se perguntava, e por que não era normal para ele sentir o que sentia, quanto tinha vontade de beijar e fazer amor com outros rapazes, o sexo de um sexo só era tão normal e natural como o sexo de dois sexos, talvez até mais normal e mais natural, porque o pênis era uma coisa que os rapazes compreendiam melhor do que as moças e, portanto, era mais fácil saber o que o outro queria, sem ter de ficar adivinhando, sem ter de representar os jogos da paquera e da sedução, que podiam tornar confuso o sexo de dois sexos, e por que uma pessoa tinha de escolher entre um e outro, por que bloquear metade da humanidade em nome do normal ou do natural, quando a verdade era que todo mundo era duplo e as pessoas e a sociedade e as leis e as religiões das pessoas em sociedades diferentes apenas tinham muito medo de admitir isso. Como a garota vaqueira da Califórnia tinha lhe dito, três anos e meio antes: Eu acredito na minha vida, Archie, e não quero ter medo dela. Brian tinha medo. A maioria das pessoas tinha medo, mas ter medo era um jeito burro de viver, Ferguson sentia, um jeito desonesto e desmoralizante de viver, uma vida sem saída, uma vida sem vida.”


“(...) muito embora se sentisse completamente arrancado para fora de si mesmo, flutuando em algum local fora do corpo, mas ao mesmo tempo com a mente clara, completamente lúcida, sem nenhuma inclinação para se desesperar ou chorar, não, tudo aquilo era grande demais para fazer isso, deixou a mulher atrás de si soluçando até estourar o coração, na certa isso a faria se sentir melhor, mas ele nunca iria se sentir melhor e, portanto, não tinha o direito de chorar, só tinha o direito de pensar, de tentar compreender o que estava acontecendo, aquela coisa grande que não se parecia com nada que já tinha acontecido com ele. (...) O evento enorme que rompe o coração das coisas e transforma a vida de todo mundo, o momento inesquecível em que algo termina e outra coisa começa. Será que é isso, ele se perguntou, um momento semelhante à eclosão de uma guerra? Não, não exatamente. A guerra anuncia o início de uma realidade, mas nada começou hoje, uma realidade terminou, só isso, algo foi subtraído do mundo e agora havia um buraco, um nada onde antes havia algo, como se toda árvore no mundo tivesse desaparecido, como se a própria noção de árvore ou montanha ou lua tivesse sido apagada da mente humana. (...) Um céu sem lua. (...) Um mundo sem árvores.”


“(...) era importante fazer distinções, ele dizia consigo, era importante reconhecer que havia coisas ruins neste mundo defeituoso, e havia coisas ainda piores, e quando se tratava de votar numa eleição, o ruim era melhor do que o pior. Amy não admitia mais traçar esse tipo de distinções. No que lhe dizia respeito, os democratas eram todos iguais, todos eram liberais vendidos, e ela não queria ter nada ver com eles, eram os responsáveis pelo Vietnã e por todos os outros horrores que os Estados Unidos tinham infligido ao mundo, e que se danassem todos eles e tudo aquilo que defendiam, e se os republicanos ganhassem, bem, talvez fosse até melhor para o país a longo prazo, porque os Estados Unidos se transformariam num Estado fascista policial e o povo acabaria se revoltando contra isso, como se um povo que tivesse acabado de eleger os republicanos fosse querer derrubá-los assim que chegassem ao poder, como se o povo pudesse não preferir viver num Estado fascista policial, se isso servisse para prender os radicais antiamericanos, como ela.”


“O desafio agora era este: imaginar se Deus ainda estava dentro dele, no silêncio, ou se tinha desaparecido de sua vida para sempre. Ferguson não teve coragem de praticar um ato consciente de crueldade, não conseguiu se obrigar a mentir ou enganar ou roubar, não tinha nenhuma inclinação para machucar ou ofender sua mãe, mas, no âmbito estreito das maldades de que era capaz, entendeu que o único jeito de responder aquela pergunta era romper sua parte do trato o maior número de vezes que pudesse, para contestar a imposição de obediência aos mandamentos sagrados, e depois esperar para ver se Deus ia fazer alguma coisa ruim com ele, algo torpe e pessoal, que serviria como um claro sinal de retaliação deliberada — um braço quebrado, um ataque de furúnculos na cara, um cachorro raivoso que arranca um bife da sua perna com uma mordida. Se Deus não o castigasse, isso comprovaria que Ele tinha, de fato, desaparecido quando a voz parou de falar, e como Deus, supostamente, estava em toda parte, em toda árvore e folha de capim, em toda rajada de vento e sentimento humano, não fazia sentido que Ele pudesse desaparecer de um lugar e continuar presente em todos os outros. Obrigatoriamente, Ele tinha de estar com Ferguson, porque Ele estava em todos os lugares ao mesmo tempo, e, se Ele estava ausente do lugar onde Ferguson por acaso se encontrava, isso só podia significar que Ele não estava em lugar nenhum, nunca tinha estado em lugar nenhum, que na verdade Ele nunca tinha existido e a voz que Ferguson havia tomado pela voz de Deus não era outra a não ser sua própria voz, que falava para ele numa conversa interior consigo mesmo.”


“(...) Os argumentos contrários à intervenção militar eram tão claros para Ferguson, tão persuasivos em sua lógica, tão evidentes depois de um exame abrangente dos fatos, que era difícil para ele compreender como alguém podia apoiar a guerra, mas milhões apoiavam, muito mais milhões, nessa altura, do que os milhões que se opunham, e aos olhos das força pró e antianti, qualquer um que se opusesse à política de seu governo era um agente inimigo, um americano que tinha perdido o direito de ser chamado de americano. Toda vez que via mais um dissidente se arriscar a ficar cinco anos preso por queimar sua carta de convocação, berravam traidor e lixo comuna, ao passo que Ferguson olhava para aqueles rapazes com respeito e considerava que eram os americanos mais corajosos e mais íntegros do país. Estava totalmente a favor deles e iria aos protestos contra a guerra, até que o último soldado voltasse para casa”


“(...) ler Crime e castigo o transformou, Crime e castigo foi o raio que caiu do céu e o fez em mil pedaços, e quando ele juntou de novo seus pedaços, Ferguson já não tinha mais dúvidas sobre o futuro, pois se era isso o que um livro podia ser, se isso era o que um romance podia fazer com o coração, a mente e os sentimentos mais profundos de uma pessoa a respeito do mundo, então escrever romances era certamente a melhor coisa que uma pessoa poderia fazer na vida, pois Dostoiévski lhe ensinou que histórias inventadas podiam ir muito além do divertimento e da distração, podiam virar você pelo avesso e abrir o tampo de sua cabeça, podiam ferver e congelar você, deixar você nu em pelo e entregá-lo às rajadas de vento do universo, e desse dia em diante, depois de ter vagado sem rumo durante toda a adolescência, perdido numa neblina de perplexidade cada vez mais densa, Ferguson finalmente sabia para onde estava indo, ou pelo menos sabia aonde queria ir, e nem uma vez em todos os anos seguintes ele recuou em sua decisão, nem mesmo nos anos mais difíceis, quando parecia que podia despencar pela beirada do mundo.”


“(...) O tempo se movia em duas direções, porque cada passo para o futuro trazia uma lembrança, do passado, e, apesar de Ferguson ainda não ter feito quinze anos, tinha acumulado memórias suficientes para saber que o mundo à sua volta era continuamente moldado pelo seu mundo interior, assim como a experiência que todos tinham do mundo era moldada por suas próprias memórias e, embora todas as pessoas estivessem unidas pelo espaço comum que compartilhavam, suas jornadas através do tempo eram todas diversas, o que significava que cada pessoa vivia num mundo ligeiramente distinto do de todos os demais.”


“(...) Ferguson era crescido o suficiente para saber quanta sorte tinha de habitar no mais elevado escalão da riqueza, já era crescido o suficiente para saber que nove décimos da humanidade passavam frio e fome, eram ameaçados pela necessidade e pelo temor perpétuo, e quem era ele para reclamar de seu destino, como podia se atrever a exprimir a mais ínfima nota de insatisfação, e, já que sabia qual era sua posição no quadro geral da luta humana, sentia vergonha da própria infelicidade, se revoltava com sua incapacidade de aceitar as vantagens que tinha recebido, mas sentimentos são sentimentos e ele não conseguia deixar de sentir indignado e frustrado, pois nenhum ato de vontade era capaz de mudar o que uma pessoa sentia.”


“Nunca vamos ser mais jovens do que somos agora, disse Tim, e quando a gente deixa de ser jovem, tudo vai ladeira abaixo bem depressa. A maçante vida adulta. Os papos furados do grande papo furado universal. Emprego, esposa, filhos e depois você está arrastando os pés metidos num par de chinelos, à espera de que venham carregar você num leito com rodinhas rumo à grande fábrica de cola — sem dente, sem nada. Portanto, por que não viver ao máximo e se divertir bastante enquanto pode?”


“(...) Para Ferguson, a decisão de perder de propósito era um magnífico gesto de desafio, um emocionante gesto de revolta contra a autoridade, e seu coração frio e indignado se sentiu aquecido ao ver aquele descarado Foda-se retratado na tela, pois, ao insultar o diretor daquela forma, o herói disse não para o mundo corrupto e envelhecido que o diretor do reformatório representava, o decadente sistema britânico de recompensas vazias, punições arbitrárias e injustas barreiras de classe, e ao fazer isso, o herói encontrou sua honra, sua força, sua humanidade. Linda voltou os olhos para o alto. Que absurdo, disse ela. Em sua opinião, perder a corrida de propósito foi um passo tolo, a pior coisa que o herói podia fazer, pois a corrida de longa distância era o passaporte para sair do inferno que era aquele reformatório, e agora ele seria castigado de novo, iam arrancar seu couro, e teria de recomeçar tudo desde o início, e qual era o sentido, perguntou Linda, ele obteve uma vitória moral, mas ao mesmo tempo arruinou sua vida, e como alguém podia chamar isso de magnífico? (...) ela estava defendendo a conveniência contra o valor, e ele detestava discussões desse tipo, a abordagem prática da vida, usar o sistema para derrotar o sistema, jogar obedecendo a um bando de regras podres, porque não havia outras regras em uso, ao passo que tais regras precisam ser destruídas e reinventadas, e como Linda acreditava nas regras do mundo deles, seu mundinho suburbano de ir em frente e tocar a vida e arranjar um bom emprego e casar com alguém que pensava da mesma forma que você e aparar a grama e dirigir o carro novo e pagar os impostos e ter 2,4 filhos e não acreditar em nada a não ser no poder do dinheiro, Ferguson compreendeu que seria inútil prolongar a discussão. Linda tinha razão, é claro, mas ele também tinha razão, e de repente Ferguson já não a queria mais.”


“(...) Na visão de mundo de Amy, as tragédias estavam reservadas para a morte e para as deficiências devastadoras — paralisia, danos cerebrais, desfiguração brutal —, mas a perda de dois dedos não passava de uma questão trivial e, como a batida de um carro de encontro a uma árvore poderia acarretar morte ou desfiguração brutal, era antes para se comemorar o fato de que Ferguson tinha sobrevivido ao acidente sem nenhuma consequência trágica. (...) Quase tudo acontece para o pior, mas nem sempre, veja, nada nunca é sempre, mas eu estou sempre contando com o pior e, quando o pior não ocorre, fico tão entusiasmada que começo a falar como uma otimista. Eu podia ter perdido você, Archie, mas não perdi. E é só nisso que sou capaz de pensar: como sou feliz por não ter perdido você. (...) começou a beijar as pequenas ataduras na sua cabeça, uma por uma, seis vezes cada uma, sete vezes, oito vezes. Quando Ferguson perguntou por que estava fazendo aquilo, ela respondeu que era porque aquelas eram as partes dele que ela mais amava agora. Como ela podia dizer aquilo?, retrucou Ferguson, eram nojentas, como alguém podia amar o que era nojento? Porque, disse Amy, essas feridas eram uma lembrança do que tinha acontecido com ele, o que significava que as marcas em seu corpo eram sinais de vida e, por causa disso, para ela, não eram nojentas, eram lindas. (...) quando olhou dentro dos olhos de Amy, ele se perguntou se ela estava mesmo dizendo a verdade. Será que podia acreditar no que Amy tinha acabado de lhe dizer, ou ela estaria apenas fingindo acreditar, pelo bem dele? E se ela mesma não acreditava, como é que ele poderia acreditar nela? Acontece que ele tinha de acreditar em Amy, Ferguson decidiu, porque acreditar nela era sua única opção, e a verdade, a chamada verdade todo-poderosa, não significava nada quando Ferguson pensava no que aconteceria com ele se não acreditasse nela.”


“(...) Ferguson observou com horror e fascínio como outras áreas do corpo também se transformavam, os pelinhos alourados quase invisíveis nas pernas e nos antebraços foram ficando mais escuros, mais grossos e mais abundantes, a emergência do pelo pubiano em seu baixo-ventre antes liso, e mais tarde, logo depois de completar treze anos, as detestáveis penugens que começaram a brotar entre o nariz e o lábio superior, tão nojentas e deformadoras que um dia, de manhã, ele raspou tudo aquilo com o barbeador elétrico do pai e, quando voltaram a crescer algumas semanas depois, ele raspou de novo. O horror consistia em não ter controle do que estava acontecendo com ele, de sentir que o próprio corpo tinha se transformado num campo de experiências realizadas por algum cientista louco e brincalhão, e, enquanto pelos novos continuavam a proliferar sobre áreas cada vez mais vastas da pele, Ferguson não podia deixar de pensar no Lobisomem, o herói daquele filme horripilante que tinha visto com Howard na televisão, certa noite, no outono, a metamorfose de um homem normal num monstro de cara peluda, que Ferguson então compreendeu se tratar de uma parábola da impotência que a pessoa experimenta durante a puberdade, pois a gente é condenado a se tornar aquilo que os genes decidiram que a gente vai ser e, até a conclusão do processo, não temos a menor ideia do que o dia seguinte nos reserva.”


“(...) ele era várias pessoas ao mesmo tempo, dentro dele havia muitas pessoas, na verdade, uma forte e outra fraca, uma reflexiva e outra impulsiva, uma generosa e outra egoísta, eram tantas as pessoas diferentes que, no final, ele era tão grande quanto todo mundo ou tão pequeno quanto ninguém, e, se isso era verdade para ele, então tinha de ser verdade para todo mundo, o que significava que todo mundo era todo mundo e ninguém ao mesmo tempo, e com essa ideia quicando para lá e para cá dentro na cabeça, chegou ao cruzamento da Marylebone High Street com a Blandford Street (...) desceu do meio-fio e começou a atravessar a rua, sem entender que o carro que não tinha visto tinha o direito de passar pela rua, e, quando o carro se chocou com o corpo de Ferguson, bateu com tanta força que ele saiu voando, como se fosse um míssil humano lançado para o espaço, um jovem a caminho da lua e das estrelas, além, e quando alcançou o cume de sua trajetória, começou a descer e, quando aterrissou, o topo de sua cabeça bateu de encontro à quina do meio-fio, ele fraturou o crânio, e, a partir daquele momento, todo futuro pensamento, palavra e sentimento que poderiam nascer dentro daquele crânio foram apagados. Do alto de sua montanha, os deuses olharam e deram de ombros.”


Presentes no romance “4 3 2 1” (Companhia das Letras, 2018), de Paul Auster, traduzido por Rubens Figueiredo, páginas 233, 173, 529, 141, 600-601, 186, 479, 334, 332, 226, 495-496, 341-342, 287-288, 169 e 668, respectivamente.


Aforismos de Paul Auster no romance

“Nada nunca é sempre”

“Os vivos jamais poderiam substituir os mortos”

“Indignação e decepção podiam levar a gente bem longe (...) mas sem curiosidade estamos perdidos”

“A verdadeira definição de felicidade, ignorar que você era feliz, não se importar com nada, senão com estar vivo no aqui e agora”

“Como é que uma pessoa podia aprender alguma coisa se só conversava com pessoas que pensavam exatamente como ela?”

“Quanto mais poderoso o homem, maior o potencial para corrupção”

“A bendita indiferença com a vida particular dos outros”

“Prestar atenção (...) era o primeiro passo no aprendizado de como viver”

“A única constante neste mundo é a merda”

“A necessidade de música que percorria seus corpos (...) não era em nada diferente da necessidade de encontrar um meio de existir no mundo”

Aforismos presentes no romance “4 3 2 1” (Companhia das Letras, 2018), de Paul Auster, traduzido por Rubens Figueiredo, páginas 287, 453, 230-231, 100, 458, 117, 384, 237, 285 e 124, respectivamente.

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