Joan Didion (foto: Henry Clark)
“(...) San Simeon era um lugar que, uma vez visto da rodovia, não saía da cabeça, era um dado material que existia para provar determinados princípios abstratos. San Simeon parecia confirmar o potencial ilimitado do lugar onde vivíamos. Os portões estavam sempre fechados naquela estrada que subia a colina e, no entanto, havia uma espécie de acessibilidade pioneira em torno dos Hearst; o dinheiro dos Hearst era o dinheiro do Oeste, dinheiro originalmente vindo de uma mina de prata em Nevada, dinheiro ganho e gasto num espírito de sorte, imaginação, irresponsabilidade e extravagância geral que era singular do Oeste. Se um Hearst podia construir um castelo para si, qualquer homem podia se tornar um rei. (...) Além disso, San Simeon era exatamente o castelo que uma criança construiria se tivesse 220 milhões de dólares e pudesse gastar quarenta milhões em um castelo: um castelo de areia, uma implausibilidade, um lugar nadando em luz quente e dourada e em brumas teatrais, um domo de prazer decretado por um homem que insistiu, devido ao medo sombrio que todos conhecemos, que todas as superfícies fossem alegres, brilhantes e lúdicas. San Simeon, mais que qualquer outro lugar já construído neste país, era comprometido com a proposta de que todos os prazeres da eternidade podiam ser encontrados no aqui e agora. (...) O espirito de San Simeon não era cerceado por definições adultas nervosas do que era certo e do que não era, do que era bom e do que era menos bom, do que era ‘arte’ e do que não era: se William Randolph Hearst gostava de alguma coisa, ele a comprava e a trazia para San Simeon. E uma criança teria povoado seu castelo exatamente com o mesmo elenco”
“Em Robert Mapplethorpe havia sempre uma convergência surpreendente de impulsos bastante românticos. Havia a aventura do que não parecia convencional. Havia a aventura da arte por si mesma. Havia o desejo de testar os limites do possível, de explorar o ‘interessante’ (...) Havia a aventura do menino católico dos confins da classe média baixa do Queens (...) que veio para a cidade e forçou seu caminho para chegar ao outro lado, reinventou-se como um Rimbaud das banheiras. (...) O fato de que essa agonia romântica deveria ter sido revivida como o estilo do centro da maior cidade burguesa do mundo moderno no momento de seu declínio era, em qualquer sentido histórico, previsível, e ainda assim o trabalho de Robert Mapplethorpe tem sido muitas vezes considerado um exercício estético, completamente fora de qualquer contexto histórico ou social, e ‘novo’ como se resistisse à interpretação. Essa ‘novidade’ tornou-se de tal forma uma ideia fixa a respeito de Mapplethorpe que tendemos a ignorar a fonte de sua força, que desde o início vinha menos do choque do novo do que do choque do velho, da novidade irritante da exposição a um universo moral fixo. Sempre houve a tensão, até mesmo a luta, entre luz e escuridão em seu trabalho. Havia a exaltação da impotência. Havia a sedução da morte, a fantasia da crucificação. (...) Havia, acima de tudo, a perigosa imposição da ordem sobre caos, da forma clássica sobre imagens inimagináveis. Sempre foi assim, quando juntava as coisas. Muito simétrico. (...) ‘Estou em busca do inesperado. Estou em busca de coisas que nunca vi antes. Mas tenho problemas com a palavra chocante porque nada realmente me choca — eu podia fazer essas fotos. Senti a obrigação de fazê-las.’ Essa é a voz de alguém cujo tema era, por fim, a mesma simetria com a qual ele tinha organizado as coisas.”
“‘Magia’ era o que Tony sempre quis, tanto na vida quanto no trabalho, e, como a maioria das pessoas que amam o que fazem, ele não distinguia um do outro. ‘Quero que seja mágico’, dizia, estivesse planejando um filme, uma improvisação teatral em casa ou um piquenique à luz da lua na praia: ele queria magia e conseguiu, e em nome disso hipotecou a casa, pagou a própria garantia de conclusão do filme, começou a filmar na véspera de uma greve de atores. Quando não estava fazendo um filme ou teatro, fazia o mesmo tipo de magia em casa: um almoço, um jantar ou um verão eram, para ele, material bruto, algo a ser filmado para ver como ficava na tela. A casa dele era um set, repleta de flores, pássaros, luz do sol e crianças, com amores antigos e atuais, com todas as possibilidades concebíveis de conflito; florestas de Arden, a ilha de Próspero, o orgulho de um diretor. ‘Venham comigo para a França em julho’, lembro-me de ele dizer em um jantar e, quando meu marido e eu dissemos que não poderíamos, ele se virou para a nossa filha, então com catorze anos, e anunciou que nesse caso ela iria sozinha. Ela foi. Dezenas de pessoas pareciam ser benquistas por Tony naquele mês de julho e, quando chegamos para buscar Quintana, ela estava nadando de topless em St. Tropez, dançando a noite inteira, falando francês e sendo cortejada por dois italianos, que, por um mal-entendido, pensavam que ela estava de férias da Universidade da California. ‘Tem sido absolutamente mágico’, disse Tony.”
“(...) a publicação de uma obra inacabada é uma negação da ideia de que a função do escritor em sua obra é criá-la. Esses trechos (...) já publicados podem ser lidos apenas como algo ainda não realizado, anotações, cenas no processo de serem estabelecidas, palavras estabelecidas mas ainda não escritas. Há vislumbres surpreendentes aqui e ali, fragmentos cortados para evitar o que o escritor deve ter visto como sua ruína, e um leitor bem-intencionado poderia muito bem acreditar que, se o escritor estivesse vivo (ou seja, se o escritor tivesse encontrado a vontade, a energia, a memória e a concentração), ele talvez pudesse ter dado forma ao material, ter escrito até chegar ao fim, ter feito a história funcionar da maneira como os vislumbres sugerem, a de um homem que volta para um lugar que amava e se vê, às três da manhã, enfrentando o fato de que ele não é mais a pessoa que amava aquilo e nunca mais será a pessoa que quis ser.”
“Não estou dizendo que eu era uma ‘boa’ escritora ou uma ‘má’ escritora, era apenas uma escritora, alguém que passa as suas horas mais absortas e apaixonadas organizando palavras em folhas de papel. Se as minhas qualificações fossem boas, eu nunca teria me tornado escritora. Se eu tivesse sido abençoada com uma via de acesso, ainda que limitado, à minha própria mente, não teria havido motivo para escrever. Escrevo exclusivamente para descobrir o que estou pensando, o que estou observando, o que eu vejo e o que isso significa. O que eu quero e o que eu temo.”
“(...) não havia qualquer expectativa dos meus pais de que eu passasse para Stanford ou para qualquer outro lugar. É claro que eles queriam que eu fosse feliz, e é claro que esperavam que a felicidade estivesse associada a conquistas, mas em que termos se dariam essas conquistas era problema meu. A concepção deles de suas próprias conquistas e das minhas qualidades independiam de qual faculdade eu faria, e até se eu faria uma faculdade. (...) Penso com muita estima naquele dar de ombros sempre que ouço pais falando sobre as ‘oportunidades’ de seus filhos. Minha inquietação vem da sensação de que eles estão misturando as oportunidades das crianças com as deles próprios, exigindo que a criança se dê bem não só por si mesma, mas também para a imensa glória dos pais. (...) Entrar na faculdade se transformou numa coisa barra-pesada, perversa por consumir e desviar tanto tempo, energia e reais interesses, e o aspecto ainda mais deletério disso é como os próprios jovens o aceitam.”
“(...) aprendemos a confiar no dicionário, aprendemos a escrever e reescrever e reescrever mais uma vez. ‘Faça de novo, querida, você ainda não chegou lá.’ ‘Coloque um verbo forte nessas duas linhas.’ ‘Corte, limpe, vá direto ao ponto.’ Menos era mais, leve era melhor; e a precisão absoluta, essencial para a grande ilusão mensal. No final dos anos 1950, trabalhar na Vogue não era muito diferente de treinar com a companhia de dança das Rockettes.”
“(...) eu me lembro de cada encontro como um momento de animação aguda e pavor. Eu me lembro de que todas as outras pessoas dessa turma eram mais velhas e mais inteligentes do que eu tinha esperança de ser um dia (ainda não tinha me ocorrido, de um jeito visceral, que ter dezenove anos não era uma realidade de longo prazo), não apenas mais velhos e mais inteligentes, mas mais experientes, mais independentes, mais interessantes, mais detentores de um passado exótico: casamentos e o fim de casamentos, dinheiro e a falta dele, sexo, política e a visão do Adriático ao amanhecer; não apenas a matéria da vida adulta em si, mas, de modo mais pungente para mim na época, exatamente a matéria que poderia ser transubstanciada em cinco contos. Eu me recordo de um trotskista de cerca de quarenta anos. Me recordo de uma mulher jovem que vivia com um homem descalço e um cachorro branco imenso em um porão iluminado apenas por velas. (...) Em suma, eu não tinha um passado e todas as segundas, quartas e sextas-feiras, ao meio-dia, no Dwinelle Hall, parecia ficar cada vez mais claro para mim que eu não tinha um futuro. Vasculhei o meu armário atrás de roupas que me tornassem invisível na aula e aparecia com apenas uma capa de chuva suja. Vestida com essa capa, eu me sentava, ficava ouvindo os contos dos outros sendo lidos em voz alta e perdia as esperanças de um dia saber o que eles sabiam. Participei de todos os encontros dessa disciplina e nunca abri a boca. Consegui escrever apenas três dos cinco contos exigidos. Recebi — apenas porque o sr. Schorer, hoje penso, um homem de bondade infinita e sagacidade em relação aos alunos, adivinhou intuitivamente que o meu desempenho débil era o resultado de uma paralisia adolescente, de uma ânsia em ser boa e um pavor de nunca conseguir ser, do terror de que qualquer frase que eu confiasse ao papel me revelaria como não sendo boa o suficiente — uma nota B. Não escrevi mais conto algum durante exatamente dez anos.”
“(...) Certa vez percebi que ‘tinha’ um romance quando ele se apresentou para mim como uma mancha de óleo com uma superfície iridescente; ao longo dos vários anos que levei para terminá-lo, não mencionei a mancha de óleo a ninguém, com medo de que a influência que a imagem tinha sobre mim, como um talismã, pudesse desvanecer, ficar choca, ir embora, como um sonho que se conta no café da manhã. ‘Se fala demais, você perde um pouco desse mistério’, disse Robert Mapplethorpe entrevistador da BBC que queria conversar sobre o seu trabalho. ‘Você quer conseguir apreender a magia do momento. Esse é o barato de fotografar. Você não sabe por que está acontecendo, mas está acontecendo.’ (...) de todas as mulheres que Robert Mapplethorpe fotografou, talvez apenas Yoko Ono tenha se apresentado como ‘moderna’, completamente dona de si, uma mulher que havia transposto as exigências do sexo e da celebridade para se mostrar diante de nós como uma sobrevivente de meia-idade, com lapelas sensatas, olhos claros, cabelos esvoaçantes.”
“O tom era o de quem tinha ajustado o jeito de falar em público ao de comerciais de analgésicos, mas ela não estava propriamente vendendo um produto. Estava fazendo uma ‘confissão’ em uma reunião dos Jogadores Anônimos que frequentei pouco tempo atrás (...) A fumaça ficou mais espessa; o depoimento, mais intenso. Eu não ouvia tantas revelações desse tipo desde a época em que puxava assunto nos ônibus da Greyhound com a ideia equivocada de que conversas assim eram uma boa maneira de aprender sobre a vida. ‘Sabe, acabei de desfalcar uma boa quantia de dinheiro do meu patrão’, eles contavam um ao outro (...) havia alguma coisa não muito certa, alguma coisa perturbadora. De início, pensei que fosse apenas a predileção de muitos dos membros por ficar remoendo quão ‘impotentes’ eram, quão fustigados por forças além de seu controle. Falava-se muito de milagres e Presenças Superiores e um Poder Maior que Nós; o programa do Jogadores Anônimos, como o do Alcoólicos Anônimos, tende a reforçar o ponto de vista bastante passivo que o viciado tem de sua condição. (...) ‘Não tem sido fácil’, disse Frank L., ao lado da esposa, dos filhos e dos sogros. ‘Mas nas últimas três, quatro semanas, nós conquistamos uma... serenidade em casa.’ Pronto, ele falou. Saí rápido de lá, antes que mais alguém dissesse ‘serenidade’ de novo, pois eu associo essa palavra com morte, e por muitos dias depois dessa reunião eu só queria ficar em lugares bem-iluminados e onde ninguém contasse os dias.”
Presentes no livro de ensaios “Vou te dizer o que penso” (HarperCollins Brasil, 2023), de Joan Didion, traduzido por Mariana Delfani, páginas 40-41, 94-95, 98-99, 120, 66, 48-49, 77-78, 74 a 76, 91 e 94, e 35-36+38-39, respectivamente.
Aforismos de Joan Didion em “Vou te dizer o que penso”
“Toda criança é moldada pela geografia real e emocional do lugar em que cresce, pelas histórias que ouve e pelas histórias que inventa”
“Estou falando aqui de algo peculiar e que nos amortece: a incapacidade de todos nós de falar claramente uns com os outros”
“Torne um lugar acessível à vista e de certa forma ele não é mais acessível à imaginação”
“A minha antipatia se dava pela minha necessidade de espaço para brincar com o que eu não entendia”
“Escrever é, em muitos aspectos, o ato de dizer ‘eu’, de se impor em relação a outras pessoas, de dizer me escute, olhe para isso do meu jeito, mude de ideia.”
“Aprendi a ter uma espécie de facilidade com as palavras, um modo de olhar para as palavras não como espelhos da minha própria inadequação, mas como ferramentas, brinquedos, armas a serem mobilizadas estrategicamente no papel”
Aforismos presentes no livro de ensaios “Vou te dizer o que penso” (HarperCollins Brasil, 2023), de Joan Didion, traduzido por Mariana Delfani, páginas 42, 29-30, 44, 82, 63 e 76-77, respectivamente.
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