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Dez poemas de Jovina Souza no livro P/ o homem da rua K



Carta 31
Jovina Souza

Eu sou uma mulher dos mares abertos,
renovo-me nas marés todos os dias.
Se encontro interdição das pedras,
salto em gotas cintilantes, espraiando
para fertilizar areias.
Não me basta o império do mórbido,
nem dos rebotalhos, nem do branco.
Nenhum deles curvará meu coração
para a surdez ou para a indiferença.
Eu quero a dança dos pratos cheios,
quero deuses grávidos de clemências
e as fronteiras abertas para os abraços
implorados.

Não há bondades nos corações calados.
Eles esquecem de gente, não escutam
os soluços do mundo.
Para que serve um coração surdo?

Prendo o amor na palavra e escrevo a ti
para enviar os frutos doces do meu pomar
e as imagens belas guardadas dentro mim.
Escrevo-te para ter sonhos, para renovar ruínas.
Escrevo a ti para minha solidão ficar à míngua.
Quando me respondes, o amor invade minha casa
como o paraíso da vida.

--------

Carta 14
Jovina Souza

Sempre amei os pássaros.
Sou louca por asas.
Elas cicatrizam cortes,
fazem ruir todas as cordas.

Sou amante dos crisântemos,
não há máculas em seus limites
onde eu ando e bebo águas.

Eu sempre amei o vento.
Ele traz pétalas que em mim
são perfumes
e no teu coração são pérolas.
Se teus olhos me querem,
abro-te os braços e as pernas.
Pois, tu, meu homem de ébano,
tens asas, crisântemos e pérolas.

--------

Carta 13
Jovina Souza

O amor que você cantou tem cheiro
de suor, esquenta ou esfria é no corpo.
O cotidiano não o enfraquece.
Ele sustenta sua insistência em ser.
Acorda cedo,
toma café com leite e pão nas esquinas,
anda de nave espacial, de metrô ou a pé,
não se desencanta à toa.
Sequer pensa na morte, anda nas ruas,
nos bares, se diverte na corda bamba.
Beija nossas trancinhas, trabalha para
que tenhamos vida, prosperidade e sorte.
Joga-se nas ruas para nos acalentar, curar...
Seu amor tem aura de amanhecer feliz,
despreza a ingratidão, a razão e a norma.
Embriaga.
Se não aguentar o tranco desse raio fortaleza,
a pessoa fica rodando, rodando igual pião
e gritando “Eu te amo! Eu te amo!”
Nosso amor pode até morrer, mas é vivo,
traz a marcha do belo para o trivial dos dias.
O cara é louco, doido varrido, abre caminhos
e se faz pedaços de sol, acalmando ventanias.

--------

Carta 10
Jovina Souza

Sinto nossas forças enlaçadas
pela negrura que nos cobre.
Há em tua pele o esperado
ao longo de muitas vigílias.

Deite sobre mim a ternura
das tuas palavras e a ousadia
dos teus dedos,
templos dos delírios reais.

Em ti todo gesto é verso do amor
que é nosso e permanece,
fazendo
extraordinários meus dias comuns.

--------

Carta 15
Jovina Souza

Nos reconhecemos parceiros desejados,
ambos marcados pelo percurso da pele.
Vivos pela força da insistência, pela ação
de conjugar recomeços.
Nossa linhagem é a dos bravos.

Vieram de África nossas espadas,
se for o caso, elas descansam,
se preciso, elas cortam,
para a permanência dos vivos,
ou para honrar nossos mortos.

Trazemos os cantos das pretas avós,
tecendo entre nós presenças ancestres.
Juntos ficamos mais fortes, dançamos,
fazemos filhos e ganhamos guerras.

Se vier o tempo dos vidros sobre as águas,
navegaremos em suas vorazes tormentas.
Não haverá desatinos, o mal será cortado
pela força do raio que protege a gente.

--------

Carta 29
Jovina Souza

Ouço muito os mistérios do fogo,
do vento, das águas e das matas.
É competência das bruxas, ainda
hoje.

Ponho-me a transpor silêncios,
a dizer o arrimo da dor. Ela tocou
o teto da noite e matou pássaros.
Comeu os filhotes dentro dos ninhos,
desfez as trilhas e deixou o amor
na outra margem.

Sobre o que impõe essa norma,
você se fez ponte.

--------

Carta 43
Jovina Souza

Emergimos dos tempos das dores,
de quando ficamos separados.
Nos reencontramos, agora,
no enlace
das nossas mentes
e dos nossos ventres
para reproduzir nossos corpos.

Tudo no ritmo ancestral do berimbau,
rumo à existência, à fartura e à vida boa,
re-povoaremos
as ruas com a pele da cor preta,
uma estética bonita nas paisagens
do presente, do futuro e da história.

Serão vivos nossos antepassados
em corpo, em honra e memória.

--------

Carta 44
Jovina Souza

O amor que invadiu nossos corpos se expande.
Não quer se eternizar apenas nas fotografias
e sim na humildade de implorar ao cotidiano
que perdoe suas falhas e o ressuscite sempre.
Quer se perpetuar na revolução de não maltratar
nossos corações, rebeldia vitoriosa de adolescentes
atemporais que somos nós.

É um amor vivo que não precisa de renúncias sacras,
é forte no beijo rápido da correria e nas promessas
daquele sexo dos sonhos que, às vezes, não acontece
porque adormece, no cansaço do trabalho árduo,
para “farturar” a mesa e criar nossos filhos.

O amor sabe do seu compromisso de nos manter unidos
e fazer nosso tesão ficar vivo. Lá está ele conosco no parque,
na arrumação da casa ou nos seduzindo para o dengo no sofá.

Esse amor que nos invade o corpo não tem morada certa.
Ora está nos pés, ora entre as pernas, ora nos ombros.
Canta primeiro no coração, mas não abandona as mãos,
e vive a nos vigiar. Quando olhamos um para o outro,
ele vem para os lábios com vontade de beijar.

--------

Carta 38
Jovina Souza

Há, entre nós, a energia sutil das noites prateadas
e o ciclo das marés nos aponta a rota do contínuo
que rasga o efêmero e salva os amores do vento.
Nossa aventura lírica tece fios para vencer o tempo,
corta o silêncio que esfria amantes quentes e viçosos
rumo à inclemência do fim.

Há uma convergência do que somos em cristais,
ditando nossos destinos,
conjugando nossos nomes como verbos
de criação.
Assim, costuramos o que temos de mais belo
e oferecemos um ao outro com a firmeza das mãos.

Não há pecado na volúpia dançando em nós.
Ela vem do fogo que abriga eu e você,
sob os arquétipos de um novo jeito de amar:
usufruir corpo e espírito no mesmo rito.
Vejo juventude em nossos olhos explodindo outonos,
cultivando enredos para o fim das palavras ácidas.
Temos turmalinas no ventre e ouro na pele azeviche,
dizendo o que é amar em marcha descontínua.

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Primeira Carta
Jovina Souza

Escrevo-lhe essas traçadas linhas, nem más,
nem boas, apenas poesias, pra dizer a você
que aceito seu pedido para namorar comigo.
Sou mulher de carne e osso, de muitos defeitos
e de poucas fantasias. Devo lhe advertir, agora,
que meu coração está nas pernas, nas costas
e tem cérebro.
Ele abriga neurônios, lágrimas e projetos.
Revisa conceitos de amor e apanha na língua
novas semânticas, vestindo-me de incertezas.

Não tenho expectativas no amor apressado,
chegando na fala do que sente.
Tenhamos cautela.
Esse negócio de amor é um mar caindo em outro
e ninguém sabe das tormentas dessa viagem,
tampouco onde fica a ponta do iceberg.
Fico atraída por esse risco porque tenho vontades
na sua beleza que me roça
e me contenta com largas promessas.

A ginga do meu coração é prazerar.
O danado é sabido e só cai levemente, rsrsrsrs.
Quanto a esse amor que nos reivindica início,
vamos conversando e abrindo possibilidades,
arando a terra das nossas vidas e com paciência
vamos aguardar as prováveis colheitas.
Espero de coração e carne que nossos pés se gostem
e andem juntos na beleza dos beijos e das labutas.

Provavelmente sua,
até mais e tomara sempre.


Presentes no livro de poemas “P/ o homem da rua K” (DiKebrada, 2023), de Jovina Souza, páginas 55, 35, 34, 30, 36, 53, 67, 68, 62 e 18-19, respectivamente.


Aforismos de Jovina Souza em “P/ o homem da rua K”

“Eu serei o porto que tuas ilusões vislumbram”

“Quando teu falo diz, arrepia”

“Guardo sinfonias de alvoradas com todos os sonhos não permitidos a você até agora”

“Quando vier para meus braços, traga o que lhe deram os pássaros, seus cantos e suas belezas tantas”

“Sou mulher de mirar o tempo e seguir no trote, pelos sonhos, desde sempre, sem perder de vista os desamparos que o amor conspira, na sua trilha voluntariosa e arriscada”

“Não deixe que sua boca resseque longe do meu corpo e esqueça meu nome no suplício das esperas”

“Tua história conspira comigo o fim das faltas e a união dos deuses do ferro e das matas”

Aforismos presentes no livro de poemas “P/ o homem da rua K” (DiKebrada, 2023), de Jovina Souza, páginas 24, 38, 25, 31, 20, 29 e 37, respectivamente.

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