E se eu fosse você?
Tiago D. Oliveira
tentaria descrever sem palavras esta fome
Ou
com apenas uma delas, sentiria o mundo
Ou
recomeçaria a andar dentro da água
[a mesma que mataria a sede
Ou
trocaria de lugar com os pombos da praça
— quando alguém perguntou de onde tinha vindo o tir...
Ou
pararia o tempo que foi usado dos 30 aos 40
[incluindo as noites todas elas noites todas
Ou
esconderia dentro do fim todas as armas sobre os
armários
Ou
tentaria parar de insistir em aprender a voar
Ou
de fingir que gosta de todo mundo
Ou
desistiria de imaginar ou tentar lembrar
[de como era antes do celular, da internet, do viagra,
do fogo
Ou
venderia todos os sonhos para o silêncio de uma caixa
[o medo sempre é um bom amigo
Ou
pararia de exigir que você fosse igual a mim
Ou
atravessaria rindo a tarde mais difícil
Ou
saberia para sempre que alguém amado pode ser atropelado
Ou
que a carne dos outros não será a mesma na memória
[todo rosto distante, com o tempo se desenha carne
Ou
pararia de olhar para as estrelas quando aquela música tocar
Ou
de respirar incômodo quando a vida ainda não desabrochar
Ou
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Raízes do Brasil e frutos
Tiago D. Oliveira
cavo antes que o dia escureça
farejo um osso inteiro, fosso
sinto a terra, sinto até
viver é descobrir
cordis, do latim, significa coração
sei que pulsa o que vive
concordar, com-cordis, com o coração
discordar, dis-cordis, afastar-se do coração do outro
já disse que o meu coração é na barriga?
recordar [ cavar a linha que costura
trazer de novo ao coração
cavo continuo cavo
coragem é manter-se até
o final do dia
Sergio Buarque, citando Nietzsche, escreveu
Vosso mau amor de vós mesmos vos faz do isolamento
um cativeiro
perder é não sentir
sinto o cheiro do vento
aquele que prioriza a emoção sobre a razão,
o coração sobre a mente
o homem cordial
lembro de ter lido Chico, seu filho,
dizendo que cordial é alguém
que age com o coração,
emocionalmente,
que talvez aja duas vezes
antes de pensar.
pensar é a leitura do vento
que me chega obrigando a fechar os olhos.
coragem é manter-se até
o fim do dia
do engano que tomaram
o homem cordial, romantizado,
fez-se a ingênua ideia
de um possível abraço
o que ficou depois da última cena
do filme de Iberê Camargo,
o outro O homem cordial,
um lugar que grita, que lincha,
que massacra, que assassina.
o passado e a tela
são fumaça,
formas: pensar
é a leitura do vento
que me chega obrigando
a fechar os olhos.
atá
televisão de cachorro é frango
girando na entrada da padaria
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De um complexo de vira-latas
Tiago D. Oliveira
Nunca me preocupo com o futuro...
muito em breve, ele virá.
ALBERT EINSTEIN
O futuro é agora e nada mudou
Gritava um bêbado do outro lado da rua
Agora, o futuro, veja que nada mudou
Repetia como eu balanço o rabo
Havia algo também de involuntário
Ali estava um complexo dentro de outro
Veja bem
Porque as verdades saem da boca sempre
De uma margem que vaza como correnteza
É como se a coragem verdade nunca pudesse ser
Dada ao que enxerga a cidade
A razão passa a ser circense — veja bem
Quando Álvaro de Campos escreveu
Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo
Era o ano de 1914, já havia um prenúncio
Que ainda não tinha sido ao todo revelado
Que mal fiz eu aos deuses todos?
Se têm a verdade, guardem-na!
A loucura, a loucura, senhores...
Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da
técnica.
Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo.
O que não fica velado em 1923 é o que já havia sido
Anunciado pela linha reta do poema.
LISBON REVISITED é uma constatação
O futuro é um lugar (não) realizado.
Toda a gente é doida
Loucura é questão de maioria
Toda gente é santa
Toda a gente, perdida
Exceto ele
O bêbado do outro lado
Da Leovigildo Filgueiras
Mergulhado
Mordo a sua perna e olho para dentro
Dos seus olhos
Procuro a coragem
Que para a imagem da pena,
Que lhe foi atribuída,
Ainda sua força não perdeu
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IV
Tiago D. Oliveira
é preciso sobreviver para entender a vida. viver é preciso:
caminho sobre as ondas, não sou divino. todos se levantam
para tentar entender o assombro da realidade ser invadida
por uma razão que não pode ainda ser explicada. omaracurar:
passo dois dias parado, a contemplação é para os homens.
penitente, ergo lentamente o calor do mundo em mim.
espreito e subo devagar para todo o céu de Ipitanga
e vejo que chego não somente nos olhos do mundo.
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E se eu fizesse terapia?
Tiago D. Oliveira
não aos comerciais da cidade no verão,
os nomes que se pintam de vermelho
e vendem as próprias mães na televisão.
gostoso é andar pelas pedras sem asfalto
e ouvir a ave maria das seis saindo
pelos cobogós que ilustram tardinhas.
o cheiro do milho cozido
sobre as rodas da Caloi
cortando as ruas do centro.
não tente atravessar o Garcia
no início ou fim das aulas,
há carros e pessoas indignadas
com as forças contidas em seus corpos
quando a síndrome do pensamento
acelerado consome o mundo.
o engarrafamento ainda é
uma das maiores provações —
é preciso ligar o som dos passarinhos.
[às vezes abocanho um
para sentir
o voo
não tente os prédios da barra.
não alimente os pombos no campo grande.
não arrisque ver o mar no corredor da vitória
[pode um subalterno falar?
o privilégio de não usar coleira já é o suficiente?
desço até o centro sobre as patas, um norte
pelas palavras certas e o direito de usá-las
será sempre uma rinha onde ganha quem
souber aferir melhor as armas da luta:
certeza é questão de maioria.
as vozes compondo um painel de relevos
na Liberdade são o medicamentoso necessário.
andam todos com os olhos abertos?
não perco a chance de assistir aos ônibus
pongados pelos corpos periféricos
beleza é — tão meninos, pendurando-se assim na vida.
velocidade. a cena brasileira.
diante da lotação sobem os créditos.
vida de gente é fílmica, longe e entre.
Antevasin, cortando os inúmeros estúdios
que comportam a mais fina tecnologia
da arte, terrivelmente pulsante, suada.
capelinha de são caetano, marechal rondon,
castelo branco, pau da lima, são marcus,
sete de abril, jardim nova esperança,
todos os nomes na cidade da Bahia
são como letras minúsculas na lição
diária de uma criança, afim de chegarem
até aos nomes próprios. as iniciais siderais,
de um último andar, batem o martelo
e eu urino no jornal, amalgamo o caderno
de cultura, policial, político. mijei-os
dando-lhes um novo formato e destino
junto aos limites didáticos do chão.
a letra miúda dizia picolé de amendoim,
tinha gosto de alegria e me lembrei
que caminhava com o desejo de ver o mar.
quando cruzei a ribeira, passei por Humaitá,
rindo com os flanelinhas, são os melhores
resenhistas que este tempo pode dar.
[barril dobrado é bom ou ruim? tudo muda a todo tempo.
preciso entender de uma vez o seu significado —
é que me carregam agora no fundo do fundo
de um tumbeiro, a que chamam carrocinha.
mas os homens vacilam costumeiros
e não crescem do êxito, mesmo
lendo a violência nas entrelinhas —
perdem-se dentro de um aparelho,
enganaram-se os antigos em um espelho,
repetem-se agora sob a lógica fria da tecnologia.
fugi, porque não consigo sair aos outros.
não posso degenerar e negar a natura
que me cabe dentro do verbo ladrar.
é bonito ser o que se é e sou. estou
vivo e lego aos que assim se comovem.
perdia-se no celular e eu fugi, tomei.
agrade os porteiros em Brotas, eles
sempre conseguem fazer piadas
quando a cidade teme dentro da chuva.
antes de descer para a Vasco, do Acupe,
se lembre que estará seguro em Brotas,
mas apenas da ameaça de um tsunami.
[todo julgamento de valor repousa num atestado de exclusão.
olho para as pessoas apressadas.
veja como a sorte não se deu conta
de que todos ainda podem nadar.
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Tiago D. Oliveira
deixemos
de lado as certezas
para vermos a chuva,
esses pingos soltos lá fora,
quando caem na grama,
nas folhagens da estrada
que leva para todo lugar
que leva para lugar nenhum.
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I. Um cão observava seu dono no espelho
Tiago D. Oliveira
qual seria o fim dos objetos esquecidos na casa? con-
versava com alguns alunos ontem sobre o novo comer-
cial da Volkswagen, o intrigou o fato deles não fazerem
questão de saber sobre Elis, sobre sua música. a doce
mudança de era, uma violência silenciosa. a IA já é tão
natural no meio da sala. duas letras brincando onomato-
peicas, cabendo em um universo semântico tão grande
como tudo aquilo que é novo. agindo como se sempre
estivesse por aqui. se pegou pensando em o que também
já está entre nós sem se revelar, espreitando. se é ético,
se não é. até onde vai a nossa capacidade de aceitar ou
rejeitar o mundo em seu funcionamento? há um porta-
retrato vazio jogado debaixo da estante e um pássaro na
janela, por onde lê os versos de Kátia Borges — Antes que
te chame/ o pelotão de fuzilamento,/ repara o pássaro,/
apara o dia. — e perde-se sem intenção nenhuma de vol-
tar. a cada dia entende menos sobre o que nos torna-
mos, mas estamos vivos, ainda há como lutar. por isso
ele pega o porta-retrato esquecido debaixo da estante,
no toque das mãos sente a sua memória. a memória dos
objetos é parte também do que se quer ser. coloca uma
foto nova sobre a mesa, reinaugura a sexta-feira. nova-
mente inscrito — espelho, espelho meu
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II
Tiago D. Oliveira
O sol há de brilhar mais uma vez.
A luz há de chegar aos corações.
NELSON CAVAQUINHO
destinado passeio no calor do dia até alcançar a água.
as pessoas não param o que estão fazendo, apenas ligam
os pontos como brincam as crianças com os dedos no céu.
corto a paisagem sem nenhuma oração, sou o mais trivial
diante do mar. acalma serpentino olhar da praia, silêncio.
sob a ordem oculta que move o mundo, todos observam
o comum da minha imagem mítica invadir todas as certezas.
um vira-lata caramelo brilhando crescentemente brilhando
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∞
Tiago D. Oliveira
uns tomam a marginal,
outros as notícias.
eu já tomei solidão,
não posso ser triste nesta vida.
mas o absoluto invade as certezas.
tempo imoral.
e nunca mais o sol se foi.
perder é ganhar dentro, desdigo.
ganhar do jogo inconfessável.
tabular os motivos da dança.
simplesmente,
enquanto todos ao centro
soletram o mesmo gozo
em passos repetidos.
solfejo.
não sei dançar, rindo
sem sibilar, um para lá,
sem penar, um para cá.
e fecho os olhos quando penso
eu tomo alegria.
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Braço de mar
Tiago D. Oliveira
Ando por aí a tombar as latas
& não desejo a aura de ninguém.
Faço pequenas lutas com o rabo, aprendo
Sobre política, literatura, o ciclo da vida.
Veja bem: defendo o ritmo nas caixas de fósforo,
Simples segredos, como passar a língua.
Reconheço longe o carinho da palavra.
Por não falar, sorrir, quando creio — lambo.
Lambo e mordo, mas prefiro correr atrás dos
Entregadores motociclistas dos aplicativos.
Conheço cada um pelo cheiro, sonho todos,
Ou até mesmo pela falta, pela falta há uma geografia.
Triste mesmo é não gozar, perceber só o peso
Dos corpos juntos, da liberdade ser prisioneiro
Com as patas soltas dentro do movimento
E mesmo assim não sair do lugar — não gozar.
Veja bem: não é banalizar, pense na calha na chuva,
Toda água que passar também se deixa em parte ficar.
Passo todos os dias em todos e em nenhum lugar.
Pouco a pouco me confundo com os muros,
Com as ruas e a imagem da cidade é um lar
Com ataduras que duras engessam a cura,
Essa simples forma de caminhar e enxergar
Que toda dureza é mesmo água corrente.
O mar é essa água maior que não tem fim.
Sorte seria ver o mar indo e vindo em mim.
Presentes no livro de poemas “Caramelo quer ver o mar” (7Letras, 2024), de Tiago D. Oliveira, páginas 75-76, 29-31, 34-35, 84, 69-72, 44, 39, 82, 54 e 61-62, respectivamente.
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