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Quinze passagens do romance Balada de amor ao vento, de Paulina Chiziane

Paulina Chiziane (foto: Renato Parada)


“(...) Para que recordar o passado se o presente está presente e o futuro é uma esperança? Espero que me acreditem, mas o passado é que faz o presente, e o presente o futuro. O passado persegue-nos e vive conosco cada presente. Eu tenho um passado, esta história que quero contar.”


“O insólito acontece na floresta. Todos os seres escutaram os segredos da natureza e estão a operar maravilhas. As corujas cantam ao sol; os gatos pretos miam intensamente à lua cheia. Todas estas vozes unem-se no compasso do vento, que espalha pelo mundo uma mensagem de paz. Os leões e os vitelos, acasalados, rugem e mugem num coro de fraternidade. As hienas e as cabras abraçam-se, perdoam-se, reconciliam-se, as aves vestem plumagens coloridas. A serpente, junto ao ninho, fecha os olhos, discreta, não vá ela interromper os beijos dos pássaros que se amam, crescem e se multiplicam. As ervas e as árvores avolumam-se num verde ímpar, cobrindo-se de flores. Em todo o universo há um momento de reflexão, de paz e confraternização: chegou a época do amor.”


“Com certeza devem estar a imaginar-me tão bonita para ser esposa do futuro rei, com uma daquelas belezas que pululam por esta Mafalala de onde vos conto esta história. Devem julgar-me mulher de mãos suaves, rosto clarinho, cabelo desfrisado com vaselina e lábios vermelhos borradíssimos de batom. Digo-vos, porém, que cada mundo tem a sua beleza. Há os que consideram belas as mulheres de pele clara. Outros acham belas as feições harmoniosas e o caminhar elegante. Ainda há quem considere belas aquelas que transportam enormes abóboras no traseiro. É como vos digo, cada mundo tem a sua beleza. No campo é mais belo o rosto queimado de sol. São belas as pernas fortes e musculosas, os calcanhares rachados que galgam quilómetros para que em casa nunca falte água, nem milho, nem lume. São mais belas as mãos calosas, os corpos que lutam ao lado do sol, do vento e da chuva para fazer da natureza o milagre de parir a felicidade e a fortuna.”


“(...) Hoje sou a lua, sou a rainha, o mundo inteiro curva-se aos meus pés. O padre Ferreira fez uma linda bênção. O meu marido assinou o livro com uma caneta de ouro e eu apenas marquei o sinal do meu dedo. (...) Nunca vi este povo tão enfeitado com todos os rostos a irradiar felicidade. Meus irmãos estão satisfeitíssimos, a mamã está triste, e o papá está indiferente. Come-se, bebe-se, dança-se. Hoje é o dia de arranjar namorados e outras Sarnaus descobrem Mwandos. As mulheres exibem-se e tecem intrigas. Os homens encharcam-se no álcool e declaram amor à mulher do vizinho, usando o disfarce da embriaguez. As adúlteras embebedam os maridos sem piedade, para quando o sol se esconder roubarem um momento de amor protegidas pela inconsciência do parceiro. Nesta noite haverá orgias. Nesta noite dormirei com o meu marido num lençol de estrelas. O sol é meu. É minha toda a felicidade deste mundo.”


“Foi há duas semanas que o casamento se realizou, mas a festa continua cada vez mais brava. Quase todos os dias, gente de todos os reinos chega em procissão, cada um com mais oferendas que o outro, numa espécie de competição que mais parece um ato de suborno ao rei ou ao herdeiro. Servem-se grandes banquetes que sempre terminam num bailado à volta da fogueira e gente requebrando-se ao som do tantã, aumentando o delírio com vozes ébrias. (...) Nunca sonhei ser a primeira esposa do herdeiro, mas agora só penso em ser rainha. Cada vez que me aproximo da velha, excito-me, e desejo ardentemente que a sua morte seja breve para herdar os grandes braceletes de ouro que ela usa nos braços e nos pés. (...) O poder é como o vinho. No princípio confunde, transtorna, quase que amarga; pouco depois agrada, e, no fim, embriaga. Eis-me aqui, finalmente, senhora dos destinos desta terra. Serei rainha sem dúvida alguma. É deste meu ventre que nascerá o homem que depois do meu marido irá dirigir os destinos deste povo.”


“Com a morte do rei vão-se os privilégios de uns e os favores de outros. Reacendem-se vinganças e dívidas antigas. Haverá ajustes de contas. Não era sem razão que os grandes do reino, em poses solenes, estavam serenos, absortos, distantes, sem uma lágrima nos olhos. Não era pela morte do chefe, não. Estavam a contas com a sua consciência, revolvendo o passado, os atos praticados, pois não é em nome do rei que se cometem violações, torturas, prisões, roubos e vinganças pessoais? O sustentáculo caiu, e os grandes homens, órfãos, encontravam-se à mercê dos seus inimigos. Chegou o momento crucial temido por uns e desejado por outros. Os favoritos do sucessor, em gestos patéticos, gritavam mais alto que as carpideiras numa representação perfeita, camuflando o júbilo, pois tinha chegado a sua oportunidade. Entre lágrimas recenseavam as bonitas mulheres que iriam submeter; as pessoas de que se iriam vingar, os prestígios de que iriam desfrutar, os roubos e as ofertas que iriam exigir.”


          “Os dias passavam lentamente, barco ganhava distância, os condenados afastavam-se cada vez mais da terra que os parira: uns dormem, outros sonham e divagam. As mentes são povoadas de pesadelos. Outras vozes quebram o silêncio.
          — Não sei por que é que fui preso. Passava na minha frente uma senhora branca. Eu parei para dar-lhe caminho. O marido que vinha atrás esbofeteou-me, acusando-me de estar a apreciar a sua mulher. Fui levado para a esquadra, espancado e condenado à deportação e aqui estou a caminho do degredo.
          (...)
          — Foi por causa de uma mulher. Entendi-me com ela. Era evidente que se tratava de uma mulher da vida, pois recebia mais homens além de mim. Ela tratava-me bem, eu estava desempregado e alimentava-me. Um sipaio, que era o seu chulo, não gostou. Andou a fazer emboscadas e tramou-me. Levou-me à esquadra, apresentou-me como um ladrão e ainda por cima disse que violei a esposa. Defendi-me com bom português. Mandaram-me fazer uma declaração, o que fiz com boa caligrafia que até enfureceu o branco da esquadra. Exigiram-me a caderneta de indígena. Apresentei somente a caderneta sem os carimbos necessários e o sipaio zombou de mim. ‘Fala bom português e não tem documento? Dorme com a mulher de sipaio e não paga imposto? Amigo, sabe bem escrever, mas agora vai ver, saber escrever sem documento não é nada.’ Levaram-me para uma sala escura, maltrataram-me e condenaram-me à deportação.”


“Os pretos gritavam para outros pretos como se pretos não fossem. O escravo liberto torna-se tirano. O homem alcança as alturas cavalgando nos ombros dos outros. A galinha no poleiro caga despreocupada para as que estão embaixo ignorando que no próximo pôr do sol a situação pode inverter-se. A força de um mede-se pela fraqueza do outro. Um irmão mata outro irmão para demonstrar a sua força ou sobrepor-se-lhe. Em todas as gerações há exemplos de indivíduos que dizimam outros para assegurar o poder. Os capatazes pretos empurravam os pretos, obrigando-os a subir a escadaria para a proa do navio.”


“De repente abriu os olhos para o mundo. Foi então que se apercebeu de que a floresta estava viva, os pássaros alegres, os ventos e as borboletas voavam felizes para o horizonte, ele é que olhava para o mundo com olhos fechados, olhos de morto, e todos os seres continuavam na dança da vida. Compreendeu finalmente que a vida é a dor e a alegria, a vitória e a derrota, a ofensa e o perdão, o amor, o ódio, e todos os contrários. O que seria a terra sem a presença humana? Se as mulheres morressem, quem daria luz à luz do sol? Que seria a vida sem os pássaros, árvores e flores? O universo não teria sentido, não existiria. (...) Revoltou-se contra as suas próprias atitudes. Homem que é homem deve saber resistir às vicissitudes da vida, pois todos os seres vivos têm as suas amarguras. As árvores sofrem da chacina dos homens, mas nunca deixaram de viver. As ervas sofrem do pisoteio desordenado de todos os bichos da selva, mas nunca se queixaram. Os animais mais fracos são o pasto dos mais fortes, mas nunca deixaram de se multiplicar. Os pássaros são aprisionados sem razão e até os montes sofrem das violentas bofetadas do vento.”


“(...) A canção é a alma do negro. Quando sofre, canta, quando ri, canta, quando trabalha, canta. Até parece que a canção desperta no fundo do ser a força secular de todos os antepassados.”


“Sou tão feliz com os meus dois filhinhos. O Joãozinho também não tem pai. O homem soube encher-me a barriga para abandonar-me logo em seguida. O pai afasta-o da sua mesa, não o deixa conviver com os outros irmãos, diz que é por ele ser casado e para mais não fica bem a um cristão dar a entender que tem filhos por aí. Mwando também é cristão, mas abandonou-me com uma criança no ventre. Ser cristão é uma coisa, mas a perversão e o afastamento dos deveres paternais porque se é cristão, é coisa que ainda não entendo bem. A poligamia tem todos os males, lá isso é verdade, as mulheres disputam pela posse do homem, matam-se, enfeitiçam-se, não chegam a conhecer o prazer do amor, mas tem uma coisa maravilhosa: não há filhos bastardos nem crianças sozinhas na rua. Todos têm um nome, um lar, uma família. Não há nada mais belo neste mundo que um lar para cada criança. Por um lado, prefiro a poligamia, mas não, a poligamia é amarga. Ter o marido por turnos dormindo aqui e ali, noite lá, outra acolá, e, quando chega o meio-dia e prova a comida da mulher de quem não gosta diz logo que não tem sal, que não tem gosto. Quando à noite a mulher reclama, diz que a cama cheira a urina de bebé, e lá se vai furtando aos seus deveres. Com a poligamia, com a monogamia ou mesmo solitária, a vida da mulher é sempre dura.”


“Mwando chorava lágrimas de sangue, pois sabia que não voltaria a reaver o seu tesouro. Sumbi, a mulher que o abandonara, é de uma beleza indescritível, agressiva. Ao vê-la, qualquer homem para e suspira embasbacado, numa reação quase espontânea, rendendo homenagem à perfeição em movimento. As mulheres, por sua vez, sentiam naquela presença um caso de injustiça divina, pois Deus deserdara de encantos todas as outras para concentrá-los numa só.”


“Conta-se que aqui em Mambone, há muitos anos, um homem se enforcou numa mangueira quando a mulher estava grávida. Depois do funeral, a mulher angustiada sentou-se diante da árvore durante muitos dias e muitas noites contemplando-a, até que um dia o seu ventre rompeu, e de lá saiu uma criatura com corpo de gente, cabeça de manga, mas manga verdadeira, amarela, e tinha como cabelo folhas de mangueira. Também houve casos de mulheres que dos seus ventres nasceram cobras, lagartixas, peixes e até ovos de avestruz. O caso mais recente foi de uma mulher que depois de nove meses de esperança, no lugar de um filho saiu-lhe uma bacia de barro com um ovo de galinha lá dentro, e em vez de sangue, eram feijões. O meu caso não é inédito; o meu filho tem a cor da mulher que detesto.”


“Uma terrível escuridão precipitou-se dentro de mim. Sumiram-se as entranhas e, do poço enorme que era o meu íntimo, brotaram palavras ocas que a garganta transformou em gritos histéricos. Os cantos dos meus lábios segregando espuma abriram alas para escoar a dor melodiosa e fúnebre, fazendo coro ao coaxar das rãs. Meu coração ribombava trovoadas, relâmpagos dourados rasgavam o céu do cérebro, e a chuva dos olhos precipitava forte, prenunciando o dilúvio do meu ser. Todos os sonhos de amor, num só instante foram destruídos pela força da tempestade. Mergulhada em ondas de sal, celebrei o batismo de fel. Acuda-me, meu Deus. Semeei amor em terras sáfaras e, no lugar de milho, produzi espinhos.”


“O sono é a dádiva mais sublime dos seres racionais, já que é quando se dorme que se restabelece a ponte entre os deuses e os homens. No sono, os defuntos visitam-nos, expressam os seus desejos e vontades, previnem-nos do perigo, prognosticando o amanhã, quer seja ele doce ou penoso.”


Presentes no romance “Balada de amor ao vento” (Companhia das Letras, 2022), de Paulina Chiziane, páginas 10-11, 17, 44, 47, 52-53, 84-85, 136-137, 137-138, 76, 146, 157-158, 64, 108, 30 e 124, respectivamente.


Aforismos de Paulina Chiziane em “Balada de amor ao vento”

“Tudo é belo quando as pessoas se amam”

“Os melhores dias da minha vida são aqueles em que consegui sonhar”

“Amor com pobreza não faz felicidade”

“A paz é a morte, a vida a luta. Perdeu a luta, perdeu a vida”

Aforismos presentes no romance “Balada de amor ao vento” (Companhia das Letras, 2022), de Paulina Chiziane, páginas 23, 54, 73 e 74, respectivamente.

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