Daniel Lima
Foto: Cepe/Divulgação | Arte: Mirdad
"A vida é mais pressentimento, antecipação,
sonho de profeta alucinado e sonâmbulo,
que acontecida visão de olhos reais e limpos.
É ser navio ao mar,
mas é antes ser mais em tempestade
que aos rochedos atira o desamparado navio;
mas é ser antes a própria tempestade
que açoita o mar, jogando-o aos rochedos;
mas é ser antes rochedo aonde se esbatem
as agitadas ondas
e os náufragos que sobram desse açoite
e os restos do navio"
"As casas correram loucas pela rua afora
derretidas de luz e de perfumes
e o sol se liquefez em leite e som.
Do céu caiu um jarro de agonias
e do dedo um anjo distraído
dois pedaços de anéis caíram ao chão.
Realidade, filho meu, é isto.
O resto é ilusão"
"A noite é tão escura, tão escura
que eu quase escuto o tempo
pingando a minha vida gota a gota.
E não posso dormir.
Sinto a minha vida saqueada
pelo som ritmado do relógio.
Acendo a luz,
fecho o relógio no armário,
apago o tempo.
E durmo"
"O intelectual é um urubu
que se julga vestido,
mas que está nu,
com uma pena de pavão
enfiada
no cu"
"Sei que o que sei de mim
é quase o avesso
do que penso que sou.
E isto me dói
e isto me acusa,
mas isto me sustenta"
"Procuro com obstinação
a curva que se esconde
dentro da reta
e o infinito que há
nos teus limites"
senti que dentro de mim
carrego um esqueleto.
Arrepiei-me todo.
E não pude dormir.
Mas hoje dormirei.
Aceitei o esqueleto.
Sei que não veio a mim como um visitante ou um hóspede.
O esqueleto sou eu"
"Sou dois.
Sou muitos.
De repente, sou nenhum.
Às vezes sinto uma vontade enorme
de um dia ser um"
"Quero ser protegido,
sinto-me estrangulado.
A indesejada proteção sufocante.
O amor que ama, que perturba
e impede o voo e mata
As portas da casa me defendem
das invasões do mundo.
As invasões que me faço são piores.
As fantasias, os sonhos bloqueados entre
paredes.
Em casa não vejo o sol,
em casa adoeço
de tanto estar em casa, só comigo.
(Um dia a gente se cansa
de tanto se parecer consigo mesmo
todo dia)
Sei que em casa estou morrendo.
O ar de casa é puro, mas é morno,
é puro demais para a alma impura
da gente (falo de mim)
Estou farto de tanta segurança.
Para isto nasci: encontrar-me nos outros"
"Amo a minha pátria.
Mas que pátria é minha?
Esta que agora sofro é dos ladrões,
e não dos pequenos ladrões
que apenas recuperam
o que lhes foi furtado
pelos grandes ladrões
de brancos colarinhos
e cívicos discurosos de mau gosto.
Este é o triste País dos Gatunos Oficiais.
Enquanto isto,
almoço fartamente todos os dias.
Sinto-me comodista.
E vou dormir.
Sou gatuno menor.
Vivo das sobras dos banquetes
dos grandes gatunos nacionais"
Trechos extraídos do livro "Poemas" (Cepe, 2011), de Daniel Lima.
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