Pular para o conteúdo principal

O reacionário — Memórias e confissões, de Nelson Rodrigues — Parte 03

Nelson Gonçalves
Foto: Divulgação | Arte: Mirdad


"O homem só começa a ser homem depois dos instintos e contra os instintos"


"O co-piloto do avião conseguira sobreviver ao choque. Muito ferido, porém, pediu que o matassem com o seu próprio revólver. Diz a notícia, de maneira sucinta, impessoal, inapelável: – O que foi feito. Se as palavras têm um valor preciso, temos aí um assassinato. E não foi só. Os outros sobreviventes não só mataram como ainda o comeram. E mais: – resgatados, os antropófagos voltaram de avião para sua terra. No meio da viagem, um patrulheiro descobre em pleno voo que os sobreviventes ainda levavam carne humana. No seu espanto, perguntou: – 'Por que vocês trazem isso?' Explicaram: – na hipótese de que faltasse comida no avião, eles teriam com que se alimentar"


"Todos comeram carne humana? (...) houve um, entre tantos, entre todos, que disse: – 'Eu não faço isso! Prefiro morrer, mas não faço isso!' E não fez. Os outros tentaram convencê-lo. E quando ele, em estado de extrema fraqueza, arquejava na dispneia pré-agônica, quiseram forçá-lo. Mas só de ver a carne, cortada como no açougue, ele tinha náuseas medonhas. Seu último suspiro foi também um último não (...) Mas reparem num detalhe desesperador: – aquele, que preferiu morrer a devorar o seu semelhante, não merece nenhum interesse jornalístico. A reportagem dedica-lhe, no máximo, três linhas frívolas e estritamente informativas. Por sua vez, o público ignora o belo gesto que preservou, até o fim, a condição humana. Era homem e morreu homem"


"O Brasil é muito impopular no Brasil"


"O que chamamos de 'Nordeste' é um saco ou pacote, onde enfiamos várias misérias. Chega a ser uma impiedade. Dentro do saco ou do pacote, ninguém é ninguém, os Estados perdem a identidade, nada tem nome. E ocorre esta coisa a um só tempo hedionda e patusca: – enquanto resolvemos os problemas do Nordeste, não cuidamos dos flagelados de cada qual"


"Os homens públicos só costumam fazer o que rende promocionalmente (...) a seca, por exemplo, é plástica, literária, retórica, jornalística. E há sempre alguém disposto a fazer nome com a seca"


"Os romancistas não fazem romance, os poetas não inventam uma metáfora, os dramaturgos não criam um personagem. Temos uma literatura que não escreve. Se aparecer um Dante, um Shakespeare, um Proust, sei lá, ninguém vai saber, porque não temos uma consciência crítica (...) Perguntam: – e por quê? Porque os intelectuais exigem dos intelectuais atestado de ideologia (...) se for um solitário, um independente, um original – não terá uma linha em jornal nenhum"


"Há uma debilidade mental difusa, volatilizada, atmosférica. Nós a respiramos. Isso aqui e em todos os idiomas. É um fenômeno internacional tão nítido, tão profundo, que não cabe nenhuma dúvida, não cabe nenhum sofisma. E acontece, então, esta coisa nunca vista: todos agem e reagem como imbecis. Não que o sejam, absolutamente. Muitos são inteligentes, sábios, clarividentes e têm um nobilíssimo caráter, e uma fina sensibilidade, e uma alma de superior qualidade. Mas num mundo de débeis mentais, temos de imitá-los (...) para sobreviver, para coexistir com os demais, o sujeito precisa ir ao fundo do quintal e lá enterrar todo o seu íntimo tesouro"


"Sempre digo que o pior da bofetada é o som. Se fosse possível uma bofetada muda, não haveria ofensa, nem humilhação, nada. Agressor e vítima poderiam, em seguida, ir tomar cerveja no boteco mais próximo, em festiva confraternização"


"Então, há o desastre de avião. Quando apanharam o rapaz, ele estava tecnicamente morto. Levam o agonizante para o hospital. Onassis corre para os médicos: – 'Peçam toda a minha fortuna. Pagarei pela vida do meu filho o que quiserem.' Era o dinheiro, sempre o dinheiro, que dá a esse homem taciturno uma sensação de onipotência. Pouco antes, o filho dissera, com sereno fatalismo: – 'Meu pai vai me sobreviver.' Sabia que a morte amadurecia, silenciosamente, na sua carne e na sua alma. Quando Onassis sentiu que tudo era inútil, disse apenas: – 'Deixem meu filho morrer.'



Trechos presentes no livro de crônicas "O reacionário – Memórias e confissões" (Agir, 2008), de Nelson Rodrigues.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Oito passagens de Conceição Evaristo no livro de contos Olhos d'água

Conceição Evaristo (Foto: Mariana Evaristo) "Tentando se equilibrar sobre a dor e o susto, Salinda contemplou-se no espelho. Sabia que ali encontraria a sua igual, bastava o gesto contemplativo de si mesma. E no lugar da sua face, viu a da outra. Do outro lado, como se verdade fosse, o nítido rosto da amiga surgiu para afirmar a força de um amor entre duas iguais. Mulheres, ambas se pareciam. Altas, negras e com dezenas de dreads a lhes enfeitar a cabeça. Ambas aves fêmeas, ousadas mergulhadoras na própria profundeza. E a cada vez que uma mergulhava na outra, o suave encontro de suas fendas-mulheres engravidava as duas de prazer. E o que parecia pouco, muito se tornava. O que finito era, se eternizava. E um leve e fugaz beijo na face, sombra rasurada de uma asa amarela de borboleta, se tornava uma certeza, uma presença incrustada nos poros da pele e da memória." "Tantos foram os amores na vida de Luamanda, que sempre um chamava mais um. Aconteceu também a paixão

Dez passagens de Clarice Lispector nas cartas dos anos 1950 (parte 1)

Clarice Lispector (foto daqui ) “O outono aqui está muito bonito e o frio já está chegando. Parei uns tempos de trabalhar no livro [‘A maçã no escuro’] mas um dia desses recomeçarei. Tenho a impressão penosa de que me repito em cada livro com a obstinação de quem bate na mesma porta que não quer se abrir. Aliás minha impressão é mais geral ainda: tenho a impressão de que falo muito e que digo sempre as mesmas coisas, com o que eu devo chatear muito os ouvintes que por gentileza e carinho aguentam...” “Alô Fernando [Sabino], estou escrevendo pra você mas também não tenho nada o que dizer. Acho que é assim que pouco a pouco os velhos honestos terminam por não dizer nada. Mas o engraçado é que não tendo absolutamente nada o que dizer, dá uma vontade enorme de dizer. O quê? (...) E assim é que, por não ter absolutamente nada o que dizer, até livro já escrevi, e você também. Até que a dignidade do silêncio venha, o que é frase muito bonitinha e me emociona civicamente.”  “(...) O dinheiro s

Dez passagens de Jorge Amado no romance Mar morto

Jorge Amado “(...) Os homens da beira do cais só têm uma estrada na sua vida: a estrada do mar. Por ela entram, que seu destino é esse. O mar é dono de todos eles. Do mar vem toda a alegria e toda a tristeza porque o mar é mistério que nem os marinheiros mais velhos entendem, que nem entendem aqueles antigos mestres de saveiro que não viajam mais, e, apenas, remendam velas e contam histórias. Quem já decifrou o mistério do mar? Do mar vem a música, vem o amor e vem a morte. E não é sobre o mar que a lua é mais bela? O mar é instável. Como ele é a vida dos homens dos saveiros. Qual deles já teve um fim de vida igual ao dos homens da terra que acarinham netos e reúnem as famílias nos almoços e jantares? Nenhum deles anda com esse passo firme dos homens da terra. Cada qual tem alguma coisa no fundo do mar: um filho, um irmão, um braço, um saveiro que virou, uma vela que o vento da tempestade despedaçou. Mas também qual deles não sabe cantar essas canções de amor nas noites do cais? Qual d