Pular para o conteúdo principal

Memórias — A menina sem estrela, de Nelson Rodrigues — Parte 04

Nelson Gonçalves
Foto: Divulgação | Arte: Mirdad


"Nada mais límpido, nítido, inequívoco, do que o nosso racismo. E como é humilhante a relação entre brancos e negros. Os brancos não gostam dos negros; e o pior é que os negros não reagem (...) Em vez de odiar o branco, o preto brasileiro é um ressentido contra o próprio preto (...) A 'democracia racial' que nós fingimos é a mais cínica, a mais cruel das mistificações"


"A beleza tem de ser uma exceção. A partir do momento em que todos são bonitos, ninguém é bonito"


"O que está me doendo, na carne e na alma, é que não dissemos tudo um ao outro. Aquele que está morrendo tem palavras extremas para dizer e palavras extremas para ouvir. Mas algo me travou a mim e a ele; tive talvez vergonha de ser meigo e calei a palavra do amor tão ferido"


"Íamos ver Terra em transe, de Glauber Rocha (...) perguntei a um conhecido: – 'Bom filme?' E o sujeito, que é um legionário da esquerda idiota, respondeu: – 'Fascista.' Insisti: – 'Rapaz, não perguntei se era fascista. Perguntei se era bom.' (...) E assim desponta nas esquerdas brasileiras um tipo único, inédito, empolgante, de cretino. É o débil mental por simples pose ideológica (...) achando que só assim serve ao socialismo. Diga-se de passagem que tivemos, eu e o desafeto de Terra em transe, uma discussão truculenta. Disse-lhe que, para meu gosto, tanto fazia o filme comunista, fascista, espírita, budista, macumbeiro ou jacobino. Eu queria, apenas, com minha feroz simplicidade, que fosse um bom filme e nada mais"


"Durante as duas horas de projeção, não gostei de nada. Minto. Fiquei maravilhado com uma das cenas finais de Terra em transe. Refiro-me ao momento em que dão a palavra ao povo. Mandam o povo falar e este faz uma pausa ensurdecedora. E, de repente, o filme esfrega na cara da plateia esta verdade, mansa, translúcida, eterna: – o povo é débil mental. Eu e o filme dizemos isso sem nenhuma crueldade. Foi sempre assim e será assim, eternamente. O povo pare os gênios, e só. Depois de os parir, volta a babar (...) Terra em transe não morrera para mim. Da madrugada de sexta para sábado e domingo, continuei agarrado ao filme. E sentia por dentro, nas minhas entranhas, o seu rumor (...) Terra em transe era o Brasil. Aqueles sujeitos retorcidos em danações hediondas somos nós. Queríamos ver uma mesa bem posta, com tudo nos seus lugares, pratos, talheres e uma impressão de Manchete. Pois Glauber Rocha nos dera um vômito triunfal. Os sertões, de Euclides, também foi o Brasil vomitado. E qualquer obra de arte, para ter sentido no Brasil, precisa ser esta golfada hedionda"


"O que aprendi, lendo o gigantesco drama, é que o artista precisa de solidão para não apodrecer"


"Ali estava um admirador anônimo e jucundo. Quando um deles se atravessa em meu caminho, me sinto enriquecido, denso; e é como se uma luz súbita pousasse na minha vida. Essas admirações de rua, de esquina, de boteco dão ao artista uma sensação de plenitude. Já os admiradores literários causam um desgaste homicida"


"Ainda agora, vejo a figura ameaçada de Guimarães Rosa. Não sei se ele fará algo que se pareça ao Grande sertão. Das nossas figuras literárias, é, que eu saiba, a mais acuada pela horda bestial dos admiradores. Quando ouço alguém dizer do Rosa que é o 'nosso maior prosador', tenho vontade de pedir, pelo amor de Deus: – 'Não o matem antes do tempo.'"


"O escritor que faz mais do que a própria literatura ou não é escritor ou é um pulha"


"Desde aquela época, cada um, na vida literária, tinha que ser um engajado. Ninguém ia à rua sem a sua pose ideológica (...) 'E você? Qual é a sua contribuição?' Baixei a vista, rubro de vergonha. E, como ainda não contribuíra, senti-me um fracassado nato e hereditário. Daí por que não posso ver, hoje, o Guimarães Rosa, sem uma sensação de deslumbramento (...) eis que vem o autor de Sagarana e ergue a sua torre de marfim, assim como um cigano põe a sua barraca. Nada existe: – só a sua obra. Estão brigando no Vietnã? Pois o nosso Rosa escreve. Há a guerra nuclear, o fim do mundo? Guimarães Rosa funda outro idioma. A torre de marfim fez dele o maior artista brasileiro do século"


"O bom no socialismo não é a justiça, não é a paz, nem os bons sentimentos – é a burrice"



Trechos presentes no livro de crônicas "Memórias – A menina sem estrela" (Agir, 2009), de Nelson Rodrigues.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Oito passagens de Conceição Evaristo no livro de contos Olhos d'água

Conceição Evaristo (Foto: Mariana Evaristo) "Tentando se equilibrar sobre a dor e o susto, Salinda contemplou-se no espelho. Sabia que ali encontraria a sua igual, bastava o gesto contemplativo de si mesma. E no lugar da sua face, viu a da outra. Do outro lado, como se verdade fosse, o nítido rosto da amiga surgiu para afirmar a força de um amor entre duas iguais. Mulheres, ambas se pareciam. Altas, negras e com dezenas de dreads a lhes enfeitar a cabeça. Ambas aves fêmeas, ousadas mergulhadoras na própria profundeza. E a cada vez que uma mergulhava na outra, o suave encontro de suas fendas-mulheres engravidava as duas de prazer. E o que parecia pouco, muito se tornava. O que finito era, se eternizava. E um leve e fugaz beijo na face, sombra rasurada de uma asa amarela de borboleta, se tornava uma certeza, uma presença incrustada nos poros da pele e da memória." "Tantos foram os amores na vida de Luamanda, que sempre um chamava mais um. Aconteceu também a paixão

Dez passagens de Clarice Lispector nas cartas dos anos 1950 (parte 1)

Clarice Lispector (foto daqui ) “O outono aqui está muito bonito e o frio já está chegando. Parei uns tempos de trabalhar no livro [‘A maçã no escuro’] mas um dia desses recomeçarei. Tenho a impressão penosa de que me repito em cada livro com a obstinação de quem bate na mesma porta que não quer se abrir. Aliás minha impressão é mais geral ainda: tenho a impressão de que falo muito e que digo sempre as mesmas coisas, com o que eu devo chatear muito os ouvintes que por gentileza e carinho aguentam...” “Alô Fernando [Sabino], estou escrevendo pra você mas também não tenho nada o que dizer. Acho que é assim que pouco a pouco os velhos honestos terminam por não dizer nada. Mas o engraçado é que não tendo absolutamente nada o que dizer, dá uma vontade enorme de dizer. O quê? (...) E assim é que, por não ter absolutamente nada o que dizer, até livro já escrevi, e você também. Até que a dignidade do silêncio venha, o que é frase muito bonitinha e me emociona civicamente.”  “(...) O dinheiro s

Dez passagens de Jorge Amado no romance Mar morto

Jorge Amado “(...) Os homens da beira do cais só têm uma estrada na sua vida: a estrada do mar. Por ela entram, que seu destino é esse. O mar é dono de todos eles. Do mar vem toda a alegria e toda a tristeza porque o mar é mistério que nem os marinheiros mais velhos entendem, que nem entendem aqueles antigos mestres de saveiro que não viajam mais, e, apenas, remendam velas e contam histórias. Quem já decifrou o mistério do mar? Do mar vem a música, vem o amor e vem a morte. E não é sobre o mar que a lua é mais bela? O mar é instável. Como ele é a vida dos homens dos saveiros. Qual deles já teve um fim de vida igual ao dos homens da terra que acarinham netos e reúnem as famílias nos almoços e jantares? Nenhum deles anda com esse passo firme dos homens da terra. Cada qual tem alguma coisa no fundo do mar: um filho, um irmão, um braço, um saveiro que virou, uma vela que o vento da tempestade despedaçou. Mas também qual deles não sabe cantar essas canções de amor nas noites do cais? Qual d