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A noite em que nós todos fomos felizes, de Márcio Matos

Márcio Matos
Foto: Divulgação | Arte: Mirdad


"Mesmo espremida entre os fiéis, nunca passava despercebida. Adorava os encontrões e o esforço que muitos faziam para tocar seu cabelinho cor de fumaça, 'presságio de Nossa Senhora cacheadinho nas pontas'. A expressão oca e estranha servia para dona Milu alardear a pureza da filha. A maioria dos habitantes do alto do Bonfim, as velhas beatas e os jogadores de dominó concordavam e faziam questão de cumprimentar Marianinha no meio do aperto. Era um gesto de respeito 'à virgem', 'à noviça' e, apesar de roçarem despudoradamente no seu traseiro, os homens baixavam a cabeça em sinal de respeito. A menina, eles sempre ouviam dos vendedores de fita, estava 'reservada para os anjos'"


"A tarde estava penumbrosa e ela se deitou numa cama de massagem do Jardim de Alá para tentar esquecer de si e do marido. A massagista dizia dezenas de frases de autoajuda, que lhes reviravam o estômago, mas, ao mesmo tempo, tonificavam suas ideias. Tratava-se de uma vingança sórdida da gorducha e Laura concluiu que não existia desprendimento. Tudo que ela e as outras pessoas faziam continha boa dose de mesquinhez. Aquela gorda sabia que ninguém é feliz fazendo massagens no Jardim de Alá, nem quem executa, nem quem recebe"


"Desde quando ser esposa é vantajoso?, ele a provocava"


"Ser forasteiro e agnóstico nunca lhe pareceu um grande problema. Pelo contrário. O comportamento errático o protegia dos perigos da autopiedade e pavimentava atalhos para a realização de desejos vedados à maioria das pessoas"


"Qualquer homem precisa de amantes e elas devem permanecer quietinhas, na sombra. Nada de exigências nos fins de semana ou de indisposições na cama"


"Se o telefone chamar, aumentarei o som até obstruí-lo. Sou covarde demais para enlouquecer. Tenho a mania de representar pros outros um certo histrionismo romântico, que não é nada verossímil, mas que me livra de aporrinhações inquisidoras do tipo 'oh, o que faz de você essa pessoa tão estranha?' Não, não atenderei nenhuma ligação. Melhor sair para jogar uma pelada no campo de barro da ruinha e, do gol, mirar a paisagem da cidade até desperdiçá-la. Depois, voltar para casa, colocar Mac Arthur no volume máximo e só lembrar da noite em que nós todos fomos felizes"


"Ivan não desperdiçava oportunidades de conversar com sua jovem musa. Mantinha um espelhinho na prateleira central da barraca que refletia a mesa onde as ajudantes de padre Walter costumavam se sentar. Estrategicamente posicionado, o objeto indicava o momento ideal para uma abordagem. Quando Marianinha deslizava o canudo da coca-cola sobre a mesa, o tempo estava ocioso. E Ivan sabia: o ócio é confidente da sacanagem"


"Sempre achou que a vida poderia ser cartesianamente administrada, como uma planilha do Excel. Duas mulheres ocupavam seu tempo, oferecendo experiências distintas e indispensáveis e ele, onipotente em sua pose de controlador de voos, tentava conduzir a situação de modo a compensar as expectativas de ambas. As de Luiza sempre lhes pareciam plenamente atendidas. Tereza, por outro lado, passava oito horas do dia com ele, chegando a viajar para São Paulo e para o exterior na rubrica de esposa. Era a mulher corporativa, com a vantagem de não ter que se preocupar com as atribulações do lar. Isnard não entendia porque pessoas na condição dela ainda se impunham obrigações formais, porque desejavam a prisão das certidões"


"Havia uns dois minutos, o sacana desaparecera na festa, cínico e sem nenhum peso na consciência. 'É, acabou mesmo. Nem transar com você eu quero mais. Você é até gostosinha, mas meu pau não sobe mais com você'"


"Não deveria ser assim na maturidade, ele pensa. Casos de adultos, sobretudo os extraconjugais, se resolvem em motéis, já havia dito a Tereza. Acreditava em casamento e em poligamia clandestina. Não entendia outra forma de amar"



Trechos presentes no livro de contos "A noite em que nós todos fomos felizes" (P55, 2014), de Márcio Matos.

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