João Filho
Foto: Divulgação | Arte: Mirdad
"Baiano não morre de depressão, mata de pirraça"
"Milhões de histórias individuais que se repetem, mas não são as mesmas. Três palavras resumem uma vida: nasceu, viveu, morreu. Porém, quanta realidade, quanto assunto, quanto drama e tragicomédia, entre os intervalos e em cada palavra. Na Estação da Lapa pode-se dizer com ou sem exageros que há de um tudo. Lá dentro, de um ponto estratégico, observo uma hora, durante uma semana, e constato: o excesso de movimento paradoxalmente produz imobilidade. A pressa, parece-me, não leva ninguém a lugar nenhum"
"Brotas não é um bairro. Dizem as boas línguas que é um país que faz divisa com Salvador (...) Abarca oito subdistritos (...) Apesar dos geógrafos insistirem, não tem limites, mas ninguém sabe onde começa ou termina. É um mistério. E avança (...) Dificilmente você andará no plano. Brotas é a realidade acidentada (...) Toda ladeira vai dar em Brotas (...) Dizem as boas línguas que Salvador é uma ilha cercada por Brotas de todos os lados (...) Absoluto, mas não exagerado, um filósofo local, de cima de uma laje, vislumbrou o bairro e asseverou: – Tudo é Brotas!"
"A coloração ferruginosa com pontos escuros das camadas e camadas dos telhados que cobrem o casario na cidade velha sugere, a quem olha do alto, o tempo em fuga, as caligrafias da chuva e a memória do vento. Esses telhados sabem da solidão aérea dos pássaros, o passo amante dos gatos no centro da noite mais escura. Escutaram e escutam – até quando escutarão? – os sonhos recônditos, os gemidos de amor, as lágrimas amargas, alegrias e misérias de homens e mulheres séculos e séculos. Esses telhados são os sábios silenciosos. Fizeram do silêncio uma forma de conhecer"
"Itapuã é toda a contradição e incompletude lendária que a fama em verso, prosa e música espalhou aos quatro ventos. As dunas descem. Os coqueiros caem. A lagoa encolhe. O descontrole clandestino devasta e Abá-eté – homem verdadeiro – soluça em seco sua lástima"
"Aqui é o território de todos e de ninguém (...) Cabem no Largo todas as nuances psíquicas do humano, do civismo ao canalhismo, passando pela candura à selvageria, e a inocência dos meninos e meninas que burlam o tempo no parquinho"
"O fato de ter sido Salvador a primeira capital do Brasil não passaria ileso pela psique do baiano. Daí seu nascimento em forma de inauguração. E tal fato, convenhamos, marca definitivamente todo um povo. Nós baianos temos o carma da primogenitura (...) O baiano vive a existência à revelia com sua filosofia do cacete armado. Ele prefere o desconcerto ao redor de um eixo mais ou menos fixo e, se possível, histórico (...) Se o exterior é o reflexo do interior, logo, ser baiano é uma experiência aberta, um arranjo que se molda ao instante e dele equilibra ou desequilibra a vida inteira"
"A fermentação humana na orla e nos pontos de buzu, a coloração agressiva que se torna comum. Todos os cheiros se exaltam. Alguns ácidos agridem. Formas, volumes, texturas se deslocam – gente, gente, gente –, se acumulam, tornam a se ajuntar, móvel como a vida; se espraiam nas calçadas, avançam pelo asfalto, a praia está tomada, e zoam em timbres os mais inusitados, competem com os motores de carros, motos, ônibus, é a orquestração da dissonância, a muvuca organizada, o caos simétrico de um dia de verão no Porto da Barra. Não se assuste: a praia é uma reivindicação coletiva"
"A baiana não é para ser encarada com olhos folclóricos. Não faça isso, é um erro. Joia encastoada não somente na paisagem, também no ethos soteropolitano, seu porte concentra Áfricas e Ásias percorridas por portugueses. A força de sua figura rompeu empecilhos, intolerâncias, desconhecimentos. Estimulando sem distinções o paladar dos que a procuram. Não é mera questão econômica. Reveja: você paga, mas ela te alimenta" [verbete "Baiana do acarajé"]
"Alguém disse, já não me lembro quem, que a voz de Armandinho é a guitarra baiana. Fato único na história da música em que o instrumento é o próprio homem, ou vice-versa (...) O mundo, as coisas, as pessoas para Guitarra-Armandinho são notas musicais, e suas cordas vocais são cinco, pois sentindo que se limitava, adicionou uma quinta corda grave para falar grosso. Na verdade, nasceram gêmeos siameses, mas, com o andante do tempo, a Guitarra prevaleceu. Armandinho não caminha, compassa. Não fala, executa uma peça. Por isso jornalistas, entrevistador, pesquisadores não deveriam jamais assediá-lo com perguntas. Além de insensibilidade, o óbvio é ululante e musical. A única alternativa é assoviar um trecho e, assim, o mundo se harmoniza, as coisas riem"
"Se me perguntassem o que mais me encanta em Dorival Caymmi (1914-2008), eu diria sem pestanejar: o tempo. Mas e as músicas, as letras, a melodia etc.? Insistiria: o tempo. Através da lentidão, que na verdade era paciência, o compositor baiano burilou verdadeiras pérolas do cancioneiro nacional. Há que defender Caymmi, pois sua propalada preguiça era espera consciente. Por isso, suas canções parecem seixos que de tanto rolarem rio abaixo foram se arredondando, e, no fim, nos causam a sensação de que eram composições retiradas da memória popular"
"Se a cidade de Salvador é o conluio por excelência de África, Europa e Ásia, onde a paleta de cores da pele humana conviveu, nem sempre, é verdade, em paz, o traço do artista plástico, escultor e desenhista Carybé (1911-1997), ao ir se despojando, conseguiu unir Salvador com o Japão. O máximo de movimento com o mínimo de traço expressivo. E muita, muita cor"
Trechos presentes no livro de crônicas "Dicionário amoroso de Salvador" (Casarão do Verbo, 2014), de João Filho.
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