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Dez passagens da biografia Belchior: Apenas um rapaz latino-americano, de Jotabê Medeiros

Foto: Homero Sergio

“‘Eu não faço música partidária. Eu sou a favor de um recrudescimento das qualidades individuais, diante de qualquer instituição e também da instituição política. Tem governo, eu sou contra. Tem partido, eu sou contra. Eu não quero pertencer a partido, igreja, escola, a nenhum grupo institucional. Eu só pertenceria a um partido que não quisesse o poder’.”


“‘A arte deveria, ou deve, dizer às pessoas que o poder não é tão importante. Por que temos de obedecer? Por que nós devemos estar humilhados ou sujeitos a ideologia política, pensamento, religião? Por quê? A minha arte quer propor uma liberdade de tudo. Eu, como artista, posso propor uma coisa muito maior do que qualquer partido político pode propor. Eu sei que não posso conseguir, porque não faz parte da arte a concepção desses resultados. Mas posso propor coisas muito mais abertas. Como artista, posso propor muito mais liberdade do que qualquer partido político pode propor para mim. A minha função como artista é muito maior do que se eu fosse deputado, senador. O que eles podem propor, podem fazê-lo dentro de determinados limites, e eu posso extrapolar esses limites. Porque eu trabalho com a utopia’.”


“‘Eu não quero propor nenhuma liberdade menor. Da mesma forma que existe essa utopia de liberdade, existe a utopia de como consegui-la. Eu, por exemplo, acho que para conseguir liberdade, tem que se pulverizar o poder, diminuí-lo ao máximo, ao ponto de todas as pessoas gerirem individualmente as suas vidas e presença no mundo, não precisando de nenhum chefe de rebanho, mestre, religião’.”


“Na letra da música-título, ‘Alucinação’, Belchior hierarquizava os preconceitos que fulminavam o país, grifando com sua poética os verdadeiros outsiders da sociedade, os negros, os pobres, as mulheres, os gays, os trabalhadores nas fábricas, as prostitutas, os sem-teto (...) Sua leitura dessa legião de deserdados era única, porque ele estava entre os outsiders, ele tinha sido espezinhado e cuspido pela máquina fonográfica, pelo sistema do show business, e sempre soube de que lado deveria estar e como deveria se postar. Sob o impacto do escritor britânico Anthony Burgess e sua distopia filmada por Stanley Kubrick em 1971, ele afirmava a resistência à barbárie: ‘Longe o profeta do terror que a laranja mecânica anuncia’. (...) A canção que dá nome ao disco é atemporal e vigorosa, terna e lamentosa, lamento pulverizado pela batida rocker, docemente incendiária.  Nessa que é sua música mais conhecida, Belchior afirmava um discurso anti-Timothy Leary, psicólogo e neurocientista norte-americano que militou pelo alargamento da percepção por meio de drogas: ‘A minha alucinação é suportar o dia a dia e meu delírio é a experiência com coisas reais’. Ainda assim, não era careta, era libertário, admitiam seus seguidores lisérgicos — e quase todo mundo naquela época o era de algum modo. Belchior não se colocava contra as drogas, mas reivindicava um status de autogestão: ‘E não vou eu mesmo atar minha mão’, cantou em ‘Como o diabo gosta’, do mesmo álbum (...) A solidão urbana, na canção-tema de Alucinação, é tratada de forma crua e inédita na poesia da MPB. Belchior aborda temas como o suicídio (‘Meu corpo que cai do oitavo andar’), que só tinham sido familiares à poesia de autores radicais como Roberto Piva, em Paranoia, clássico da poesia dos anos 1960. Piva dizia: ‘O poeta existe para impedir que as pessoas parem de sonhar’.”


“(...) A herança de Belchior foi sua apropriação informal dos cantos gregorianos, aprendidos no tempo do convento, além da linguagem elástica de uma tradição literária épica — somando-se a isso o aboio tradicional, o canto derramado do sertão, as orações da mãe. (...) ‘A origem do canto falado nordestino é toda ibérica ou provençal, assim como sua tendência épica e picaresca, e a forma poética dos cantadores de rua é toda ibérica, com as letras longas. Há mesmo reminiscências das coisas mouras’, disse o cantor cearense certa vez. A voz esganiçada da lavadeira de beira de rio, a carpideira que canta chorosa no enterro, a mulher que se alegra no coro da igreja. A voz nordestina é composta disso, de dolência e grito, ponderou Belchior. E seu sentimento intacto precisava ser incorporado à contemporaneidade. ‘Eu acho que Elba é a maior intérprete desse universo nordestino, ela pode perfeitamente desempenhar o papel que Elis desempenhou, só que em relação a outro determinado universo de autores, de sentimentos, ideias e emoções’, continuou. ‘As pessoas que experimentam esse estranhamento é porque não conhecem uma certa diversidade musical. A elegância de Jackson do Pandeiro, o expressionismo de Luiz Gonzaga, a pobreza de meios e o sentimento de João do Vale, que é puro blues: nós somos todos filhos disso.’”


“Augusto Pontes era uma figuraça: de temperamento dramático, às vezes explodia e quebrava pratos na própria cabeça, nos bares e restaurantes para espanto dos amigos (...) era o personagem satélite mais agregador do pessoal do Ceará. (...) Até morrer, em 2009, Augusto detestava que dissessem que Belchior tinha se apropriado de sua boutade no hino ‘Apenas um rapaz latino-americano’. Para ele, era uma homenagem que adorava. Mas uma vez ele não aguentou: ironizou Belchior, não por reivindicação de autoria, mas por ter substituído ‘parentes militares’ por ‘parentes importantes’. Pontes zombou: ‘Belchior não teve coragem de botar?’. Não eram tão próximos, Augusto e Belchior, mas se davam bem — ao contrário do relacionamento entre os artistas da turma do Ceará, sempre muito cheio de atritos. Mais tarde, a família encontrou um manuscrito de Augusto no qual os versos iniciais são os seguintes: ‘Sou apenas um sul-americano sem parentes no poder, apenas a pessoa eu, no estado de mim mesmo’.”


“Poucas coisas poderiam ter dado tão certo. Gravado em três dias, Alucinação vendeu meio milhão de cópias (era um tempo em que só Roberto Carlos beirava essa cifra). Transformou Belchior num ídolo universitário intermediário — não tão cheio de grife quanto Chico Buarque, oriundo de família ‘distinta’, nem tão ousado do ponto de vista comportamental quanto Caetano, liderança coletiva, mas completamente acessível, e quase um paradoxo: popular e refinado, compreensível o tempo todo e subcutâneo em suas motivações filosóficas e existenciais. (...) Em quase todas as canções, aparece uma espécie de guia sentimental e político para uso imediato, um ideário de fácil identificação e resolução. A exemplo de Raul Seixas e sua sociedade alternativa, Belchior exaltava a ruptura com as velhas estruturas. Só que sua rebelião também tinha um toque romântico e nacionalista, reafirmado pela regravação de ‘A palo seco’, do primeiro álbum, Mote e glosa. ‘Um tango argentino me vai bem melhor que um blues’ diz o artista, que enfatiza a própria condição de se expressar com recursos e instrumentos nativos (‘Eu grito em português’). (...) O disco mudou a vida de Belchior para sempre.”


“A aproximação consciente de Belchior com o universo de Dylan não passa pelo pastiche, pela mimetização. Belchior procede a uma fina estilização de princípios e faz com que esse ‘parentesco’ dylanesco se efetive não por uma forçada transfusão de sangue, mas pelo tributo e pela deferência. (...) Belchior foi pela primeira vez a um show de Dylan em 18 de janeiro de 1990, no Morumbi, durante o festival Hollywood Rock. Gilberto Gil, que também cantou naquela noite, convidou o amigo para levar a família ao festival. Belchior topou, e levou a mulher, Angela, e a filha, Camila. Nos bastidores, enquanto a mulher e a filha saíam do camarim de Gil para se acomodar no local dos convidados no palco, Gil puxou Belchior e disse que ia lhe apresentar um amigo. ‘Bob, esse é Belchior, o Bob Dylan brasileiro’, disse Gil, entrando no camarim de Dylan para apresentar o cearense ao bardo de Duluth. O diálogo que se seguiu foi mais ou menos assim:

Bob Dylan: ‘Dylan brasileiro? É mais provável que eu seja você na América’, brincou.

Belchior: ‘Todos somos você. Não há terra que você não tenha pisado, não há consciência que não tenha penetrado’.

Dylan pareceu rir, mas seu esgar nunca foi definido como a expressão bem-acabada de um sorriso: ‘Quero ouvir seu álbum. Você trouxe um?’.

Belchior não trouxera, essa frustração o assaltou por muitos anos devido ao que julgou displicência sua. Dylan deu de ombros e o abraçou. Depois, convidou Belchior, Gil e suas famílias para assistir ao show do backstage. Ao regressar, Belchior se aproximou da mulher, Angela, tremendo. ‘Estive com ele.’”


“‘Eu não preciso afetar nenhuma nordestinidade, nenhuma brasilidade, nenhuma cearensidade porque isso já é natural em mim. A minha preocupação é justamente ver e  pegar os elementos que estão aí à disposição dos criadores, artistas, e trabalhar com isso. Se você observar atentamente você vai ver que a minha música tem todas as minhas raízes culturais, folclóricas, regionais, nordestinas’, afirmou ele em entrevista ao Jornal de Música, em 1977. ‘Eu não quero envernizar o folclore, eu não quero fazer o que o povo faz muito melhor do que eu. Eu defino música popular de uma forma ideológica: é aquela que está do lado do povo.’”


“As principais qualidades de Belchior em estúdio eram a disciplina e o desempenho. Entendia a parte técnica com muita rapidez, coisas como as sequências e partes do arranjo, e gravava as vozes rapidamente. Raras vezes tinha que repetir uma gravação por desafinação ou outra falha; era certeiro. E acatava ideias e sugestões sem crises de ego, deixando espaço para que os músicos se destacassem. Nas viagens, Belchior passava o tempo lendo, desenhando ou escrevendo letras, poesias, traduções. Tinha um caderno onde escrevia com uma letra incrivelmente caprichada, digna de um mestre de caligrafia, mas escrevia também em qualquer papel que estivesse ao alcance, principalmente guardanapos. Costumava tocar violão nos quartos de hotel, compondo onde fosse possível. Também praticava algumas posições de ioga e nunca abria mão de um bom vinho, além de fumar charuto ou cachimbo com frequência.”


Presentes na biografia “Belchior: Apenas um rapaz latino-americano” (Todavia, 2017), de Jotabê Medeiros, páginas 106 (2×), 111, 84-85, 50-51, 82-83, 92, 144-145, 55 e 131.

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