Otto Leopoldo Winck - Foto daqui
Memorabilia
Otto Leopoldo Winck
Olhar o rio e compreender que o tempo
é um rio que flui e não retorna, e, se retorna,
será, num tempo outro, um outro rio.
Olhar o rio e compreender também
que, se as suas águas as nossas mágoas
levam, é nesse rio, além da foz,
além do mar, além da noite extrema,
que as nossas lágrimas se transfiguram,
iluminadas não das mágoas mortas,
que destas já não há nenhum remédio,
mas daquelas que ainda surgirão,
pois se há fluir, se há correr, se há viver,
sempre haverá sofrer, e pena, e mágoa.
Olhar o rio e compreender que o tempo
é o rio sem fim em que nos batizamos,
irremediavelmente naufragados,
todo dia, toda hora, a todo instante.
Olhar o rio e aceitar que não podemos
nos agarrar aos ramos e às raízes
da encosta — e que os barrancos nem sequer
a fantasia da estabilidade
nos podem, despencando, transmitir.
Olhar o rio e compreender enfim
que, se a sina de todo rio é o mar,
o fim de toda gente é navegar,
ai, sem cartas, sem ferros, sem correntes,
em direção do insofismável mar,
na imensa noite que da noite outra
cai, silente, solene, generosa.
Olhar o rio e, mais que compreender,
reconhecer que o fim, no fim de tudo,
é se deixar levar por essas águas,
sem reservas, sem medos, sem paixões,
até que, num rio outro, além da noite última,
possamos vir à tona, como arcanjos,
nas águas límpidas do não-ser.
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Corpo santo
Otto Leopoldo Winck
Exausto das lides do amor,
lavo teus olhos
em que ficaram impressas
as imagens do dilúvio que nos afogou
e cujas pestanas se fecharam sobre o meu corpo torturado.
Escaldo teus pés
que conheceram as errâncias de muitos caminhos
e calcaram a cabeça da serpente numa tarde de maio.
Banho o teu dorso
dócil às minhas mãos maduras
e acostumadas aos trabalhos nas galés.
Com a água das primeiras chuvas do outono,
enxáguo teus lábios
que proferiram blasfêmias de intrépido encanto.
E finalmente banho o teu púbis,
escuro como a noite primeira,
e, dentro dele,
o fabuloso sol
que me incendiou.
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Flores votivas
Otto Leopoldo Winck
Eu
não tenho
medo da morte.
Eu tenho medo quando uma coisa cai
e quebra
como porcelana,
seja uma velha amizade,
um novo amor
ou o sentido — fortuito — dos orbes.
Aí vem o vazio,
pior que a morte,
que não cola mais os cacos espalhados no chão.
Eu
não tenho
medo da morte.
Eu tenho medo da ode
inconclusa, da carta interrompida,
do beijo suspenso,
seja este poema — que em si nunca estará completo —
seja a vida, esta obra sempre aberta...
Por que o medo então,
se tudo é acidental
e acidentado? Por que não assumir de vez
que este medo — que me paralisa no trabalho, na fila do banco,
[no amor —
não é, no fundo, no fundo, o medo da própria morte?
Talvez seja
para não dar o braço a torcer
a esta velha desmancha-prazeres
que corta os brotos
antes das flores, ou, quando não,
colhe as flores antes dos frutos
— e as oferece ao Nada.
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Instante
Otto Leopoldo Winck
Tudo o que sou,
e tenho, e quero
um dia nada será
— como a poeira, carregada de pólen,
que o vento leva
neste prenúncio
de primavera.
Tudo o que sou:
este corpo, esta mão, estes dedos
que empunham esta caneta
como uma arma,
uma bandeira.
Tudo o que tenho:
livros, memórias, dilemas.
Tudo o que quero:
o azul deste céu de setembro,
o esplendor do vento
na concha dos teus ouvidos.
Tudo isto
em breve
nada será.
Como antes,
quando o nada era.
No entanto, agora,
enquanto engulo xícaras de café,
e preparo a aula desta noite,
o que conta é este poema
que irrompeu
inopinado
como a eternidade
nos olhos de um condenado.
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Sacramento
Otto Leopoldo Winck
Teu corpo é belo
não porque seja perfeito
segundo a régua
de olhar alheio.
Teu corpo é belo
(ainda que frágil)
porque é o lugar
da manifestação de tua presença
— única e irrepetível —
no tempo e no espaço.
Ora, o tempo
escorre
e o espaço
se transforma
sempre. Mas a graça
que se mostra em ti
a cada instante
se renova
em novíssimas formas.
Por isso,
cada veio
que se abre,
cada veia
que se mostra
nada mais são
do que sinais
(ainda que frágeis)
de um deus que se revela
para além das aparências.
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“Vivo
no limite
do abismo.
Não sei se pulo
ou rio
do risco.
(...)
Se eu carrego um deus dentro de mim
para que diabos
eu quero um templo?
(...)
Se eu abro a porta,
eu tenho o sol
e o infinito.
(A fé, amigo,
é irmã do desespero.)”
“cada palavra
é uma arma
branca
calada
vira mágoa
falada
vira chaga
nos dois casos
ela sangra”
“Ser poeta
é esquecer as palavras
na ponta da língua
e achá-las depois
no bolso
ou num velho banco
de um jardim de inverno
quando já não tem mais ninguém pra te ouvir
e só te restou
escrever
este poema.”
Presentes no livro de poemas Cosmogonias (Kotter Editorial, 2018), páginas 40, 67, 50, 58 e 77, respectivamente, além dos trechos dos poemas Theophorus – I (p. 14), Sangramentos (p. 79) e Ser poeta – I (p. 65), presentes na mesma obra.
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