“Devia ser essa a ambição de todo homem, em toda e qualquer instância: sair do senso comum. Tentar não se repetir, tentar dizer e fazer coisas diferentes, livrar-se de uma vez por todas desse legado medíocre e estúpido que é o convencionalismo humano; livrar-se, enfim, de uma certa voz de comando que sempre ecoa nas nossas costas. Uma voz de comando que se diz individual (‘a voz do povo... etc’), mas que de individual não tem nada. Aliás, há algo individual no mundo? Existe algo individual em mim? Estou contaminada pelo discurso alheio, não há nada de novo em mim a não ser a repetida estupidez. É preciso ser vigilante de si, em extrema e lúcida clarividência. Vigiar a si para só depois vigiar a dita e conclamada ‘sociedade’, e não o contrário. Vigiar a tal ‘sociedade’ sem se vigiar é a repetição da estupidez, é ser boneco de engonço, balançando a cabeça e marchando — porque todos marcham.”
“(...) ao finalmente livrar-me do engarrafamento e botar os pés no chão, o que vi não tinha a menor graça. (...) muita gente parecida, aliás, iguaizinhas; todas cabeludas, com barbas enormes e rouponas longas. Todas vendendo produtos ‘hippies’, comidas pitorescas, chapéus de crochê, anéis, pulseiras, objetos de decoração (...) e comida, muita comida, inclusive vendiam fatias de pizza na calçada. Ali na verdade era um shopping center a céu aberto; e caríssimo. (...) o que antes era antiga casa de morador se tornou loja. Lojas com plaquinhas de madeira na porta pra enganarem turista tirado a cult. Sem contar os trilhões de pousadas, também tiradas a cult, espalhadas por ali. O que não consegui mais ver, incrível, foi nativo. Será que todos os nativos foram expulsos? O Capão virou o Pelourinho, gente. Casinhas pintadas por fora e bugigangas ‘artesanais’ por dentro. (...) E carro, muito carro (...) de turistas chegando, querendo passar o São João no Capão. Carros de luxo, jogando poeira na cara dos desautomobilizados, como eu, que inventaram de ir tomar banho no Riachinho, a pé. Uma caminhada longa, regada a poeira na cara de um em um minuto, pois todos os turistas tiveram a mesma ideia que eu. Quando finalmente cheguei lá — no Riachinho — depois de mais de duas horas de caminhada, aqueles automóveis que passaram por mim já lá estavam estacionados. Ao descer a ponte me choquei com um monte de gente que ia também descendo a ponte. Na cachoeira milhões de viventes brancos, loiros, passando protetor solar e estirando-se ao sol. Não havia lugar para eu me sentar: todas as pedras estavam ocupadas. (...) tive raiva (...) de mim (...) que aos quarenta e alguns anos resolveu acampar num camping (...) abarrotado de jovenzinho burguês e falastrão. Estava tão cheio que as barracas se colavam uma nas outras. No segundo dia de horror, arrumei minhas trouxas e zarpei.”
“Os mortos envelhecem? A morta mais antiga de que tenho conhecimento é Celeste. (...) um dia começou a sentir dores nas pernas. (...) A menina ia para a aula de educação física e lá não conseguia movimentar-se. A professora, como sempre irascível, gritava e lhe prometia uma caderneta cheinha de faltas caso não fizesse o exercício direito. E Celeste, que sempre foi branca como as nuvens do céu, deu-se a ficar pálida, de uma palidez que só os moribundos sabem com profundidade. (...) foi piorando, piorando, e o pai levou-a para São Paulo. De lá, a menina voltou corada e gorda. A cidade começou a dormir mais aliviada, afinal a cidade sofria com tudo aquilo. A menina era nova demais, não merecia, os jovens merecem pele corada, saúde, vida. (...) Oh vã, traiçoeira, sarcástica, astuta vida. A menina, de corada e gorda, de repente ganhou de novo a palidez. E foi definhando, coitada, num ritmo acelerado. E pior: sabia que iria morrer, e gritava ao pai, seu grande amor, que não a deixasse ir, que ela era jovem, que ela tinha medo de morrer. E gritava isso na janela, e as pessoas que passavam ouviam, e todo mundo parava para assistir àquele drama, aquele drama sem remissão. E o pai e a mãe na janela chorando com ela, abraçando-se a ela, sem deter a morte que a espreitava, zombeteira, do outro lado da rua, já tão perto de casa. (...) E logo Celeste morreu. De leucemia, doença que ficou gravada na minha memória como o maior mal da humanidade. (...) Eu era criança, Celeste já havia morrido, eu não a conheci. Mas essa noite sonhei que ela estava completamente envelhecida. Disse para mim que assim estava porque morreu há muitos anos, muitos anos... Ao falar, sua voz quase não saía de tão longe, exibindo-se pra mim em fotografia amarelecida, rosto a se desfigurar e a se perder, para sempre, no vácuo.”
“Adoro o cheiro de suor dele, o chamado suor vencido, que vem de suas axilas sem desodorante. Gosto de seus pés sujos de andar pelo mato, seus pés grossos e calosos, endurecidos como seixos graúdos. Me apego demais a seu hálito fresco de dentes não escovados, sua mania de comer com a boca aberta dando a ver a decomposição da carne. Desde que o conheci, perdi a mania de assepsia e grandeza. Eu que já não tinha qualquer ambição, depois que o conheci entreguei ao mundo meus bens, e que são quase nada: duas dezenas de livros, três vinténs de melancolia, e uma espécie de felicidade sem teto.”
São João no Capão (08/07/2011),
sobre as desventuras numa vila desvirtuada,
leia aqui
“Quando a avó morre uma parcela de memória se perde para sempre. Sou uma neta ingrata. Sou um desmantelo de gente. Tinha uma avó lúcida, guardiã de minha história, a mais recôndita, e fiquei sete anos sem vê-la. Não tenho um pingo de apego a nada, e herdei isso dela. Tenho uma preguiça de abraço, de beijo; tenho uma preguiça escandalosa de amar, e sei que herdei isso dela, de uma família distante e estranha e fria e sem tento. Que ela sabia de tudo eu tinha certeza: de mãe, quando nasceu; de pai, quando noivou; dos onze filhos, que mãe lhe ajudou a criar; do marido, ‘véi’ ousado que ela velou há quinze anos atrás em noite de festa; dos anos que a vida lhe dava, à revelia; daquela casa miúda em que foi obrigada a morar; da água fria do pote de sua cozinha que ela fazia questão de encher, todas as manhãs. Sabia de tudo a véia Calu. Forte que nem um muro de pedra feito pelos escravos no início do século. A cabeça tinia de fotografia antiga, de história, de escárnio, de graça. E eu, como talvez ela o faria, não fui vê-la em todo esse tempo. Estava com preguiça. (...) No último domingo fui obrigada a deixar a preguiça de lado e ir vê-la no meio da sala, dentro de um caixão. Ali deitada, serena, tranquila, vestida com sua mortalha azul (feita e guardada há mais de onze anos), ela demonstrava firmeza. Eu do seu lado a olhava, e, ao fazer isso, olhava fundo dentro de mim e nada via, nada, só a bestagem que sou, a bestagem.”
“(...) Eu sofro sim pelo futuro. Nele vislumbro minha morte. Quem mora na filosofia e na arte tem sempre sua morte vislumbrada: não há como escapar desse fascínio, desse ímã, dessa fatalidade. Por isso a gente pisa nos dias com muita dor; saber-se mortal é saber-se menor, insignificante, perecível, sem muita validade. Em contrapartida, o que fazer de uma vida eterna? A sensação estável de uma vida infinita talvez nos cause somente uma vontade imensa de dormir. Enfim, não há solução, tudo é estranhamento e dessa estranheza saímos ou deprimidos — com alguns momentos de beatitude — ou imbecis, não sentindo conscientemente qualquer estranheza. (...) O lugar onde mais me sinto ausente do mundo é numa reunião. Nela geralmente apenas apareço enquanto vulto, em total neblina, mortificada como se esperasse o momento exato de cair na chama inquisitorial da fogueira. É nesse momento que percebo não existir, de fato: ali onde estou sentada há uma lacuna, uma cadeira vazia, antecipando minha ausência que um dia será, claro, definitiva.”
“(...) Natal é solidão, e Jesus Cristo soube profundamente dessa verdade. (...) Nascer é profundamente solitário, assim como viver e morrer, e isso que estou falando é puro truísmo, todo mundo sabe, mas não custa nada repetir. Não custa nada repetir quando o Natal de novo se aproxima, quando todo mundo se apruma num vestido novo e num sapato da moda; quando as pessoas se apegam tristemente à repetição das festas para se sentirem, coitadas, um pouco felizes, soterrando para o mais fundo de si a verdade mais dolorosa e íntima, a que estão inapelavelmente sozinhas.”
“(...) o que me salva nesse mundo é a arte, nada mais. Nem o amor me salva. Nele há sempre uma ânsia, uma ânsia sem sucesso, sem saciedade, uma agonia, sempre uma falta de ar. Só a arte, a poesia, a literatura, a música, o cinema me acalmam: são, portanto, os motivos de eu não morrer antes da hora, e de suportar a vida. (...) Suportar a falta de poesia nas pessoas, suportar a mediocridade, é algo que me aniquila. E nessa confissão não há pedantismo, há desolação. Há sim pessoas sem o menor vestígio de a poesia chegar perto. Há pessoas condenadas a aridez e à estúpida arrogância, e nisso não há salvação, doutrinação, meiguice, tolerância, generosidade. Há pessoas sem chance. Quando constato isso, murcho, envelheço, fico mais triste do que realmente sou. E choro um choro revoltado, cheio de uma náusea vagabunda, e me pergunto o porquê de tudo. É terrível, e a arte só sobrevive por conta das sociedades, infelizmente com poucos sócios. Esses sempre mal vistos, sempre mal ouvidos, sempre marginalizados e estigmatizados. Isso é antigo demais, clichê, provando o quanto o ser humano nasceu predestinado à imbecilidade, que se repete como doença hereditária numa epidemia idiota. Eles são muitos, são tantos. Não sou melhor que eles, estamos no mesmo barco”
Celeste (03/05/2011),
“Os mortos envelhecem?”,
leia aqui
“Tenho nas entranhas terra de cemitério. Aos seis anos ouvi essa história (...) mãe contou-a e eu a escutei (...) Ela se arrependeu, talvez por isso o remorso também está nas minhas entranhas. Depois ela negou com veemência, não comeu nenhuma terra de cemitério (...) Talvez também por isso trago dentro de mim a ilusão, a peste da ilusão, do engano feliz. Mas sinto demais essa terra revolver-se dentro de mim, cinza, desesperada, cheia de ossos alheios, cabelos que cresceram na umidade da solidão. Essa terra me compõe, e em certos dias ela grita como a morta que não quer ir, que quer sair daquele caixão abominável e cruel, quer seu noivo, tão belo à sua espera. Terra que se recolhe na minha barriga, molha minha cabeça, fazendo-me estremecer, em certos dias, feito jasmim que se recusa a morrer, cheirando cada vez mais forte, entorpecendo pessoas que chegam perto... Sinto agora essa terra, mortífera terra de cemitério, circulando nas veias de minha mão direita, oxigenando, como uma elegia intensa, a vida que um dia não conseguira expulsar.”
“(...) Ela não aceitou, até hoje, a minha idade avançando. Ela ainda pensa que tenho seis anos e estou com hepatite, debilitada, no berço antigo de madeira. Ela me deixa triste, quero sua aprovação, mesmo sabendo que irá demorar, talvez por muito tempo ainda. Ela é o meu medo, meu grande medo de ficar viva. Quantas vezes irei segurar na barra de sua saia, na feira, para não me perder? Quantas vezes terei que deixar que ela puxe meus já perdidos dentes de leite? Ainda tenho o mesmo tamanho, mas meus cabelos embranquecem. A natureza perversa me faz tão velha quanto ela, ancestralmente velha, e ela não acredita, não acredita, e é nítida sua descrença. (...) Enquanto isso, minha infância se prolonga no tempo mítico de seu ventre.”
“Existem sombras em minha escrita. Clarice nela habita, ecoando o que acredito ser genuinamente meu. Sou sombra descarada de muitos, imitação barata de tudo. Cadê eu? Não habito esse mundo; sou sombra de meus antepassados; simulacro, repetição em cadeia, falo o que falam meus pais e meus tios e meus primos. Meu sotaque me denuncia, evidencia minha origem roceira, pé de pau fincado no mato, folha que balança sem vento. Tudo que escrevo muitos já escreveram, não há originalidade em mim; tenho um rosto comum demais e vocês bem sabem como é um rosto comum que envelhece: não há motivos para tristezas, mas para risadas. Sou uma piada (...) Será que minha dor é original? Que nada, todos a sentem, de maneira aguda, como uma agulha entrando sutilmente no pescoço. Nem meu destino é meu: nele você entra, com um cajado maldito, tangendo árvores e cantos para baixo, bem abaixo do céu; sou tão pouco original ao pensar, sempre, que quem faz isso é Deus.”
“(...) aos dez anos, pai ditava sua biografia para mim que a escrevia num caderno velho, pautado, fino. Não tive o menor cuidado com o caderno, que se perdeu para sempre, mas lembro-me com nitidez a sofreguidão e a felicidade com que pai a ditava, o sentimento de heroísmo que vinha em suas palavras, aquela certeza indubitável que todos têm de que suas vidas dão um livro. Pai sempre foi para mim a imagem do literário: lia todas as noites e a sua boca se mexia, produzindo murmúrios. Ele não lia com os olhos, lia com sons saindo dos lábios. Eu ouvia do quarto os murmúrios, que me acalentavam perante o medo do escuro e dos defuntos, medo de não conseguir dormir, de enfrentar as noites em claro. O livro que ele lia, pois, era já para mim uma ponte para outro mundo.”
tributo (24/01/2011),
homenagem à avó morta,
leia aqui
“(...) Já tive 27, passei pela crise hamletiana, passei pela crise pinkfloydiana, passei pela crise da pedra drummondiana, e estou aqui. Confesso que em muitos momentos me pergunto se foi bom ter sobrevivido. Mas a vida, o sol, a sensação de plenitude que a arte traz, tudo isso dá gozo, felicidade, ainda que instável, duvidosa, complexa, dúbia, coleção de adjetivos ambivalentes que, na pior das hipóteses, nos instiga a continuarmos a viver a fim de sabermos a que será que se destina tudo isso. Talvez nunca tenhamos uma resposta, e o instigante mesmo é continuarmos a procurar; pois que dessa procura é que existe a arte, e ela é uma das únicas possibilidades de vencer a vida e a morte.”
“Salvo. Sempre vestia uma camisa azul marca volta ao mundo, bem fininha, uma calça de tergal e levava um classificador amarelo ensebado debaixo do braço. Era alto, um pouco roliço, negro, e quando eu o avistava no início da rua meu coração batia acelerado. Batia mais acelerado ainda quando eu estava lá no fundo da casa e ouvia suas palmas na janela e o som do classificador zunindo no parapeito com estardalhaço, junto com seu grito ecoando forte. Era ele chegando! Meu coração pulava junto com minhas pernas correndo casa afora para ver o que Salvo trazia. Salvo sempre trazia boas coisas. Emissário dos envelopes lacrados, com meu nome escrito atrás precedido pelos dizeres: ‘Para a jovem...’ Na verdade eu amava demais esse homem, que tinha a cara cheia de verrugas e que gostava de andar pelas ruas com o passo solene e arrastado de quem sabe o que veio fazer no mundo. (...) Quando Salvo morreu, o carteiro que o substituiu não tinha a menor parcela de poesia. Exibia aquela fardinha amarela e azul, entregando cartas não a pé, mas montado numa bicicleta metida a besta. Foi desse tempo pra cá que as cartas começaram a desaparecer, e no lugar delas chegarem apenas faturas para pagamento de alguma coisa.”
“(...) Nossa memória é uma raiz insepulta, fincada num chão móvel e, paradoxalmente, fixo. O que fazer dela? Os artistas sabem bem: desmaterializam-na em imagens, recriam-na, fazem dela o que foi e o que não foi possível um dia. De nós sobrevivemos, teimosos. Ainda hoje, por exemplo, sobrevivo de uma dor que senti no meio do pé, aos dois anos de idade, com a fisgada de um prego. Também de um sol queimando meu rosto em meio a um milharal: sinto o queimor na minha face, como se não houvesse cronologia possível no mundo. Como posso negar a visibilidade nítida das mãos de pai? Uns dedos longos, uma mão nervosa e suada, uma aliança grossa no dedo. E o cheiro forte de seus pés quando saíam, no final da tarde, de seus sapatos, num ritual cotidiano no mesmo canto da sala? A memória gruda principalmente nossos sentidos naquilo que perdemos (...) a despeito das indestrutíveis marcas na minha cara (aquilo que Augusto dos Anjos batizou de ‘a miséria anatômica da ruga’), meu rosto infantil pulula sobre o espelho, vencendo-o.”
“Minha irmã sempre me diz: ‘Você nunca perderá essa cara de pobre’. Mas se eu sou pobre?, respondo. ‘Pobre da roça’, replica ela. ‘Pobre da roça tem cara de pobre da roça onde ele for, mesmo vestido de cetim na entrega do oscar’, diz ela. É a herança congênita de Macabéa, digo eu. Quem leva para sempre na vida a cara de pobre da roça terá panos na cara, mesmo que esteja fazendo tratamento de pele com o melhor dermatologista da cidade grande. Panos enormes na cara, e esse jeito de tabaroa, que nunca perderá. Esse jeito acanhado de quem busca a parede, sempre a parede do canto para se apoiar, livrando-se do restante do mundo. Jeito de quem não quer ser visto. Jeito de quem quer passar despercebido, de uma vez por todas.”
o retorno de Salvo (09/08/2011),
homenagem ao carteiro repleto de poesia,
leia aqui
“(...) O ser humano é um carrossel de imbecilidade, ainda mais por apostar numa autenticidade do ‘si mesmo’. Tudo o que sentimos (ou acreditamos sentir) já foi sentido, e já foi dito, e repetimos nossos pais e avós em sensações e coisas realizadas. O inconsciente coletivo é um grande abismo de símbolos gregários. Por isso talvez não se distingue o que existe e o que é criado, o que é criado e o que existe. O que existe? Tente ao menos uma vez sentar-se na pedra mais alta do mundo e olhar lá embaixo: são mortos ou vivos que caminham pelas ruas? Quem sabe? O que sabemos, de fato? Essas perguntas também não se salvam do lugar comum, do clichê, e parece que não há saída não.”
“Dia desses acordei no meio da noite na mais terrível escuridão. Senti-me tampada (...) Entrei em desespero e gritei para mim: ‘e se morri?’ ‘meu Deus, e se morri?’ Saltei da cama num pulo, e de repente me lembrei de que talvez eu estivesse no meu quarto, e me lembrei de buscar acender a luz. Suava, suava. Só me acalmei ao conseguir encontrar o interruptor e me perceber no claro. Aliviada, murmurei: ‘então não foi ainda a hora, não morri’. Deve ser assim morrer? Deve ser como acordar dentro de um lugar escuro, sem saída? Deve ser como despertar debaixo da terra? (...) O medo da morte é o medo de se continuar vivo dentro da morte. E daí é que provém o entalamento, a tampa, a sensação cruel de acordar com uma tampa; ser tampado; sentir-se encurralado no escuro, sem qualquer saída.”
“(...) Clarice, a sempre Clarice, demoníaca, bruxa de minha vida, que tanto amo e tanto odeio. Já escrevi aqui sobre isso: sobre esse complexo sentimento que me une a ela. Nós duas, oh, nós duas, como somos parecidas. Ambas têm insônia, ambas tomam remédio para dormir, ambas são ansiosas, ambas se dividem entre o animal e o polido. Por isso a tentação grande que tive no passado de imitá-la; por isso a contínua imitação inconsciente, pois que há traços de sua escrita na minha percepção de mundo. Por isso esse agudo desespero de viver e não viver. Não tenho dela a genialidade, a beleza, a vaidade. Não tenho dela quase nada, só esse feitiço, essa coisa de perseguição. Quando me livrarei dessa mulher? Como destituí-la de ser o tal monstro sagrado? Afinal alguns textos seus não sobrevivem mais à minha leitura. Fico com raiva de alguns livros dela, tanta raiva. De outros, levo um susto.”
“(...) Como se ensina a escrever poesia? Nas oficinas há alguns macetes, dicas boas, mas também há o perigo e a salvação de a autoestima ou baixar de vez ou cair na real. Pra mim foram as duas coisas: caí na real, não era essa poetisa toda que diziam na minha terra; ao mesmo tempo meu superego foi cruel: me jogou no poço mais fundo, que é lá onde deve ficar quem escreve literatice. (...) Não quero me transformar nesses seres que andam por aí com roupa de poeta, pasta de poeta, palavra de poeta. E mesmo porque a poesia só nos busca quando ela quer: tem mais de nove meses que não escrevo um verso; então, cadê a poetisa? A poesia dormita, a poesia é temperamental, a poesia escolhe o seu momento de aparecer. Nós, que vez ou outra escrevemos poesia, apenas somos seus míseros inquilinos. Um dia, quem sabe, depois de anos sem dar as caras, ela chega e comete o ato justo de nos colocar para fora de sua casa.”
manifesto diante da travessia (02/10/2011),
“o que me salva nesse mundo é a arte, nada mais”,
leia aqui
“Nunca fumei maconha por falta de completa aptidão com fumaça. (...) se não fosse o horror à fumaça, provaria numa boa um baseado. Gosto demais do cheiro, mas o problema é a fumaça entrando pela garganta, acho que eu sufocaria. Mas como não querer provar o proibido? Como não querer transgredir? (...) Mas nunca fumei um beque. Seria, no fundo, medo? (...) pra falar em sociedade não é possível deixar de fora o chavão. Porque o chavão é a cara da sociedade; porque o lugar-comum é a cara da sociedade; porque a repetição, o gregarismo, é a cara da sociedade. Em suma, a repetição emburrece o mundo, e por isso a sociedade é burra, não pensa. E, porque não pensa, proíbe. E porque proíbe, dilacera, estraga o mundo. (...) O que acreditei até os vinte anos, e é o que a sociedade ensina, é que a maconha é a primeira das grandes drogas; que fumando o cara fica doidão e começa a quebrar tudo em casa, etc, etc, etc. Por isso o medo. O medo de ficar doidão. Daí vem os cassetetes, vem a polícia, vem o delegado. Vem os pais, os professores, os diretores. Vem todo mundo. E muitos deles sabem a verdade, pois que fumam e dormem tão bem, pois que fumam e amam tão bem.”
“Desdigo o que um dia disse aqui, e afirmo: o conto Amor não está esgotado. (...) Acho que quem estava esgotada era eu, de tanto ouvir falar nesse conto, de as pessoas ficarem falando dele pra cima e pra baixo, e com uma superficialidade doentia. Também estava de saco cheio de usarem tanto a palavra de Clarice em vão; acho que a própria, do seu túmulo, vivia bastante insatisfeita. Sem falar na legião de imitadores baratos, neles, claro, eu incluída. (...) O conto Amor é um dos mais belos contos escritos em língua portuguesa. De uma sensível genialidade; de uma delicadeza de quem sabe fazer renda naqueles bilros antigos, jogando os bilros para lá e para cá, num movimento sutil de mestre, e sempre cantarolando uma cantiga. (...) Não é tão somente a história de uma dona de casa, é mais do que é isso. É a história da apelação da existência: a existência a todo momento nos chama, clama para que nós a escutemos. A existência está lá fora: no cego mascando chicletes e sua intensa existência de coisa viva, saída do lugar comum a que nos prega a vida prática — essa que nos impede de enxergar tudo.”
“Sempre quis escrever um poema para ele; para dizer da graça de sua dança, da grandeza de seu sorriso, do tamanho enorme de sua boca. Nunca consegui escrever poema algum, nunca consegui deter o verso que passa/ feito aura no seu corpo/ enquanto ele dança no quarto. O poema gruda nos seus dedos, nos cabelos pretos de grama e orvalho, no seu corpo magro de escravo liberto e sai pulando pelos muros, fazendo galhofa das coisas paradas. O poema encarnado nele não para, não se torna refém de minha palavra, não se deita nunca na página.”
“Parece que não aprendo nada com o passar dos anos, do mesmo modo que dentro de mim parece que continuo com a mesma idade. Incrível como o nosso tempo mais interno é imóvel, perene, impermeável.”
a tampa (29/05/2011),
sobre acordar e se sentir tampada,
leia aqui
“[Para Mayrant Gallo] As mães nunca deveriam morrer. Drummond disse algo assim, mas de uma maneira linda. Eu digo aqui, à minha maneira, como uma dor prenunciada, ensaiada, dolorida. (...) Ontem morreu a mãe de um amigo. Uma mãe conhecida, que exercia, igualzinho à minha, o papel de mãe. Ambas foram apresentadas num Natal de dois mil e cinco, e estavam vestidas com um vestido parecido; logo se identificaram. Deram-se tão bem, e no mesmo instante já estavam trocando a receita de rabanada. Ontem soube de sua morte, e de repente senti a pontada da dor, o anúncio de uma dor ingrata, pérfida. Passei vários emails para o meu amigo, imaginava que a dor que ele sentia era imensa, pois que repercutia em mim de uma maneira terrivelmente incômoda e cruel. (...) Disse Jorge Luis Borges, sabiamente, que devemos olhar para todas as pessoas como se elas já estivessem mortas. Faço esse exercício desde que li tal frase. E olho para mãe sempre com lágrimas nos olhos. E nem posso pedir a Deus para eu ir antes dela; não posso, pois de todas as saudades e dores que uma mãe pode sentir, essa deve ser a mais inimaginável e perversa.”
“Literatura para quê? Já é minha a pergunta do professor Compagnon. Para amenizar essa solidão desgraçada. Para não ter culpa ao roubar um mero rolo de papel higiênico na rodoviária. Para não ter coragem de ‘lutar contra a existência’ de fato e de direito. Para se aceitar inicialmente humano, terrivelmente humano. Para tentar produzir palavras libertadoras diante do inevitável e obscuro. Para tentar entender essa engrenagem metálica, mecânica, sofrível e perniciosa que é a vida.”
“Todo desespero do homem é para voltar à infância. Ele bebe para isso, para romper com as rédeas, as repressões psíquicas e dizer o que tem vontade, como só a criança que ele foi um dia disse. O desespero é que não há volta, nunca haverá. A gênese de nossa infância — a poesia — se perdeu e só em raros momentos a reencontramos, para depois perdê-la de novo e para sempre. Sou uma criança velha, com rugas na cara e bolsas sob os olhos; patética, sou uma criança patética, quero dizer ao mundo que nada presta, mas meus olhos se encantam com o beija-flor no parapeito da janela. (...) Tenho terrível pena de meu coração, que terá um dia de enfrentar sozinho a morte. (...) Sou tão medrosa, sei que enfrentarei a morte com muita tremedeira nas pernas. Como passarei pelo túnel escuro? Com as pernas oscilando, certamente, mendigando a Deus a Sua presença. Ah quando chegar a hora... Quando chegar a hora, que meus parentes mortos, que meus poetas mortos venham me ajudar a atravessar o túnel. Que os cantos gregorianos encham meus ouvidos de beatitude. Que eu possa nesse momento, nem que seja por instantes, voltar à infância: e simples, sem qualquer mágoa ou medo, como só uma criança pode ser, que eu consiga finalmente dizer o que penso, o que verdadeiramente penso.”
fragmentos circenses (09/09/2011),
“Você nunca perderá essa cara de pobre”,
leia aqui
“Tenho esse nariz brabo que boi pisou, um nariz esparrachado, numa cara que já foi redonda, hoje está mais pra retangular. Não gosto muito de me olhar no espelho, eis a grande verdade; nunca fui desse negócio de me amar em primeiro lugar por que senão os outros não me amarão, conversa fiada isso, chega de besteira, meu Deus, acho que nunca me amei de fato, me tolero, que se danem os psicanalistas de plantão. (...) Acredito que alguns me amam um pouco, algum têm um pouco de simpatia por essa minha pessoa esquiva, tímida. Afinal, quem não é um pouco admirado nesse mundo idiota? (...) A natureza é uma poeta satírica, Gregório de Matos perde para ela (...) uma artista desgramada: pinta e borda com os seres — primeiro na juventude e depois na velhice, desenhando caricaturas tenebrosas onde antes foi gente até distinta. Na verdade tudo é uma porcaria só; um absurdo, fora algumas alegriazinhas tão rápidas, meu Deus, tão rápidas”
“(...) acho que se eu tivesse coragem pra matar eu consideraria mais cômodo, mais estético, mais interessante matar com faca. Faca de cozinha bem amolada. Pode até ser faca de pão, qualquer uma fará o benefício maior: tirar da face da terra, com beleza, os excrementos, a podridão humana. A coisa de enfiar a faca entra macio, delicado, mais de que um tiro. Se bem que Virgulino com uma espingarda era algo bonito demais. Com a coragem dele eu estava feita: nada de sofrer na mão de gente estúpida, arrogante, com o nariz pra cima. Com a coragem de Lampião a primeira coisa que eu faria era ir direto pra um hospital. Chegando, com cara de doente, esperaria o maltrato. Teria a alegria infantil de decepar inicialmente o nariz da primeira pessoa que me atendesse mal. Claro, esse nariz seria o da secretária. Depois iria matando um por um que surgisse. Deixaria o médico para matar com requintes cruéis e estéticos. Era só esperar sua primeira insolência e o eliminaria com a minha bela faca de cozinha. Após tudo realizado eu, obviamente, iria dormir com o maior alívio que um ser humano pode ter, pois que essa coisa de dormir com alívio e tranquilidade só Virgulino e Corisco conheceram em sua plenitude.”
“Sim, fiz de minha vida literatura. Tudo o que vivi e vivo vem de algum livro. Por isso nota-se em transparência nebulosa essa minha contínua propensão ao sonho, a suspender sempre e sempre a incredulidade, a ir de olhos fechados. Tudo, até uma cadeira amarela que ponho na sala vem de uma lembrança esquecida, lembrada de uma página. Tudo, tudo o que sou, não é o que sou, é o que li; por isso essa dificuldade em aceitar a verdade, a verdade do que eu poderia ser. Sou de fato o que li nos romances, nos contos, nos poemas.”
Ângela Vilma - Foto daqui
Presentes no blog Aeronauta, de Ângela Vilma, postagens marcha, soldado (07/09/2011), São João no Capão (08/07/2011), Celeste (03/05/2011), in natura (05/09/2011), tributo (24/01/2011), exercícios de ausência (04/10/2011), de novo (14/12/2011), manifesto diante da travessia (02/10/2011), elegia intensa (05/01/2011), canção para todas as mães (01/03/2011), abaixo do céu (20/04/2011), apontamentos (10/05/2011), “clube dos 27” (24/07/2011), o retorno de Salvo (09/08/2011), o cão (22/10/2011), fragmentos circenses (09/09/2011), meditação da terça-feira (23/08/2011), a tampa (29/05/2011), sobre Clarice e os calmantes (29/08/2011), sobre o inquilino e a dona da casa (19/09/2011), maconha (28/05/2011), um poema livre (03/03/2011), de novo, Clarice (02/09/2011), a cantilena de sempre (30/12/2011), quando uma mãe conhecida morre (19/11/2011), para os meus amados alunos (12/04/2011), sem mágoa ou medo (24/03/2011), conversa de divã (12/07/2011), Concorda? (18/03/2011) e “Este livro” (04/12/2011), respectivamente.
Comentários