Clarice Lispector - foto daqui
“(...) Quero que os outros compreendam o que jamais entenderei. Quero que me deem isto: não a explicação, mas a compreensão.”
“O povo suíço nada recebeu gratuitamente. Tudo nessa terra tem marca de nobre esforço, de conquista paciente. E não foi pouco o que eles conseguiram — tornar-se um símbolo de paz. (...) Esse estado de alta civilização — onde a expressão homem civil tem realmente um sentido e uma força — eles o manterão a todo custo, com austera previdência, com dura disciplina mental, com a precaução contra o erro. (...) O que não impede que tanta gente, em silêncio, se jogue da ponte de Kirchenfeld, sem que os jornais sequer noticiem para que outros não o repitam. De algum modo há de se pagar a segurança, a paz, o medo de errar.”
“(...) arte não é pureza, é purificação, arte não é liberdade, é libertação. (...) arte, imagino, não é inocência, é tornar-se inocente.”
“O que me lembro do conto ‘Feliz aniversário’ (...) é a impressão de uma festa que não foi diferente de outras (...); mas aquele era um dia pesado de verão, e acho até que não pus a ideia de verão no conto. Tive uma impressão, de onde resultaram algumas linhas vagas, anotadas apenas pelo gosto e necessidade de aprofundar o que se sente. Anos depois, ao deparar com essas linhas, a história inteira nasceu, com uma rapidez de quem estivesse transcrevendo cena já vista — e no entanto nada do que escrevi aconteceu naquela ou em outra festa. Muito tempo depois um amigo perguntou-me de quem era aquela avó. Respondi que era a avó dos outros. Dois dias depois a verdadeira resposta me veio espontânea, e com surpresa: descobri que a avó era minha mesma, e dela eu só conhecera, em criança, um retrato, nada mais.”
“(...) nessa realidade desvendada pela imaginação e sem susto a riqueza não está mais atrás de nós, como uma lembrança, ou ainda por aparecer, como um desejo de futuro. Está ali, fremindo”
“(...) é comum, pelo menos em Berna, ver-se metade de uma plateia retirar-se antes de começarem as músicas modernas. (...) O fato é motivado particularmente pelo horror que o povo tem pela música moderna ou pela literatura moderna ou pela pintura moderna: a palavra moderna soa um pouco como escândalo, como aventura ainda suspeita. Porém, mais amplamente e mais profundamente, esse fato vem de que o suíço teme errar na sua admiração. (...) Não é só por gosto e por respeito à tradição. É medo de se arriscar. Um escritor vivo é risco constante. É homem que pode amanhã injustificar a admiração que se teve por sua obra com um mau discurso, com um livro mais fraco.”
“(...) A mulher continuava a falar. Então tirei da bolsa os dois mil cruzeiros e com horror de mim passei-os à mulher. Esta não hesitou um segundo, pegou-os, meteu-os num bolso invisível entre o que me pareceram inúmeras saias (...) — Deus nosso Senhor lhe favoreça, disse de repente com o automatismo de uma mendiga. (...) Vermelha, continuei sentada de braços cruzados. A mulher também continuava ao lado. (...) Só que não nos falávamos mais. Ela era mais digna do que eu havia pensado: conseguido o dinheiro, nada mais quis me contar. E nem eu pude mais fazer festas ao menino vestido de menina. Pois qualquer agrado seria agora de meu direito: eu o havia pago de antemão. (...) Um laço de mal-estar estabelecera-se agora entre nós duas (...) Evitávamos encostar os cotovelos. Nada mais havia a dizer, e a viagem era longa. Perturbada, olhei-a de través: velha e suja (...) E a mulher sabia que eu a olhara (...) Então uma ponta de raiva nasceu entre nós duas.”
“Ele é agora gerente de uma loja de sapatos. Não porque escolheu, mas foi o que lhe restou. Perguntava-se sempre: onde está o meu erro? (...) e estende sapatos como se não pertencesse a esse mundo (...) ele tinha apenas a erudição, faltava-lhe a compreensão íntima de que fora neste mundo e com esses mesmos homens que haviam sucedido os fatos, que fora na terra em que ele pisava que não houvera um dia habitantes e que os peixes que se haviam transformado em anfíbios eram aqueles mesmos que ele comia.”
“Com uma amiga chegamos a um tal ponto de simplicidade ou liberdade que às vezes eu telefono e ela responde: não estou com vontade de falar. Então digo até logo e vou fazer outra coisa.”
“(...) escrever é um modo de não mentir o sentimento (...) escrevo pela incapacidade de entender, sem ser através do processo de escrever”
“Do conto ‘Amor’ lembro (...) da intensidade com que inesperadamente caí com o personagem dentro de um Jardim Botânico não calculado, e de onde quase não conseguimos sair, de tão encipoados e meio hipnotizados — a ponto de eu ter que fazer meu personagem chamar o guarda para abrir os portões já fechados, senão passaríamos a morar ali mesmo até hoje.”
“(...) Para mim também o ano dois mil é hoje. Sinto-me tão avançada, mesmo que não possa exprimi-lo. (...) Inclusive sinto-me muito além de escrever. Marciana? Não. Pouco quero saber. E o ano dois mil já chegou, mas não por causa de Marte: por causa da Terra mesmo, de nós, por nossa voracidade do tempo que nos come.”
“(...) que fato tem uma noite que se passa inteira num atalho, onde não tem ninguém, e enquanto dormimos? História de escuridão tranquila, de raiz adormecida na sua força, de odor que não tem perfume. O violino de Hindemith não conta sobre, antes se conta, antes se desdobra. Ele não é grave, ele é gravidade. E em nada disso existe o abstrato. É o figurativo do inaudível.”
“‘O búfalo’ me lembra muito vagamente um rosto que vi numa mulher ou em várias, ou em homens; e uma das mil visitas que fiz a jardins zoológicos. Nessa, um tigre olhou para mim, eu olhei para ele, ele sustentou o olhar, eu não, e vim embora até hoje. O conto nada tem a ver com isso, foi escrito e deixado de lado. Um dia reli-o e senti um choque de mal-estar e horror.”
“(...) Lembro-me da vez em que, numa recepção, fui com outras pessoas apresentada a Helen Keller, cega, surda e falando roucamente, trocando um pouco as sílabas (pois nunca ouvira alguém falar). Havia no grupo uma mocinha especialmente bela. Helen Keller, no meio da conversa, sentiu necessidade de ver alguém, e quem estava mais próximo era a mocinha. Helen Keller, então, com as duas mãos passou dedos pelos traços do rosto da mocinha, cuidadosamente, demoradamente. E disse: você é muito bonita.”
“(...) Será que vou ter de viver a vida inteira à espera de que o domingo passe?”
Presentes no livro “Todas as crônicas” (Rocco, 2018), de Clarice Lispector, páginas 242, 241, 237-238, 249-250, 244, 240-241, 264-265, 243, 266, 247, 250, 265-266, 238-239, 252, 256 e 242, respectivamente.
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