“A melhor receita de vida é estar aberto a novas leituras, a novos autores, daqui e d’alhures, deste ou de outros tempos; melhor receita não só para um crescimento pessoal saudável, mas para uma atitude de correta honestidade intelectual. De outra maneira é como se aprisionar a um território e suas parcas possibilidades — por mais que as consideremos plenas — ou a um cânone gélido — por mais que o consideremos insuperável. Como saber, se não experimentarmos? Eu sou um que se considera imperfeito, incompleto e ansioso por conhecimento — o que sou, o que tenho, o que conheço, o que sei, ou o que penso ser, ter, conhecer e saber, parece-me muito pouco.”
“Sabemos que o sertão vincula-se automaticamente ao conceito de solidão, de distanciamento, de agruras individuais. Eu digo o que já disse antes: o sertão é antes de tudo território de insuficiências. Ou seja, matéria-prima qualificada para a gênese da arte e de artistas. (...) muito provavelmente este prosador posto à distância de sua naturalidade no tempo e no espaço, urde ficção feito uma criança imaginativa, conferindo nobreza e força ao sertão e ao rio, dotando sertão e rio dessas grandes qualidades, como expressão de uma saudade que tem dos tempos felizes do passado, como lamento por não tê-los mais e como referência de doçura e amabilidade amorosas. (...) Sou sertanejo, sou barranqueiro, disso não posso fugir, nem desejo fugir. Eu tive um rio e tive um sertão. As correntezas do tempo poderão a tudo destruir, menos o rio e o sertão que carrego na memória, a quem dedico afeto filial e que dão consistência e volume à minha emoção. (...) Que coisa é esse lugar? Que tem ainda por revelar? Em que se transmuda continuamente? Em que se perpetua, testemunha imperecível da luta inglória do ser humano versus natureza? Que pode esse lugar? Que vida, que morte ainda guarda em seu seio esturricado? Que ilhas fará brotar, por fim, depois da curva do rio? Onde se me escapou, onde se me prendeu? Em que se move em mim?”
“Um povo marcado pelo estigma do totalitarismo: subserviência, obediência cega, medo das autoridades, confiança absoluta nas armas. Um inimigo invisível, uma guerra que não podia ser vencida (...) Uma usina nuclear construída como se fosse uma granja. Mentiras e silêncio para não disseminar o pânico: não distribuíram máscaras e roupas especiais e tudo não passava de um incêndio sob controle. (...) Quase ninguém sabia o que fazer. E quem sabia era impedido de fazer. A KGB no controle. Homens subindo no teto do reator de mãos limpas e camisetas. (...) Heróis diplomados. Todos mortos pela radiação. (...) Aldeias evacuadas pela manhã, reocupadas na calada da noite: um povo que não entendia o motivo daquela movimentação se o inimigo não era visível, se as macieiras davam frutos, se a água continuava boa de beber. Um povo que ria dos cientistas e fazia piada com radiação. (...) Um território proibido que, mais tarde, serviria de refúgio a sobreviventes de guerras intestinas, como a da Chechênia. (...) Um livro [Vozes de Tchernóbil, de Svetlana Aleksiévitch] que recupera aqueles dias de horror com uma força digna da melhor literatura. Uma autora que deixa as vozes comandarem a narrativa, que pouco interfere, e quando faz, é brilhante.”
“(...) Somos mesmo esse que caminha entre mata e mar, por uma areia fofa que exaure nossas forças. E que não chega a lugar algum. Talvez a um rio, onde um barqueiro que se ri de nossa desdita faça a precisa travessia. (...) Aquele que fomos construiu morros imensos de conchas marinhas, ao longo da costa, os sambaquis. Juntou a elas ossos de seus mortos. Aquele que chegamos a ser mais tarde triturou esse legado para pavimentar ruas e adubar terrenos. Aquele que somos espezinha uns e outros em meio a uma ignorância exasperante. E se mata e se morre em plena obscuridade. (...) Somos esse misto de idealismo e de interesses desorientados, repleto de incompletudes formais, projétil que ricocheteia nas paredes do tempo, ora acertando isso, ora aquilo, ora a si mesmo, produtor de obras inacabadas, o que se consome em seus equívocos até desaparecer como promessa de grandes possibilidades, o que poderia ter sido, aquele que poderia ter dado uma grande contribuição etc. Igualzinho ao país do futuro que habita. Nossa cultura.”
“Ontem, 24 de setembro, fez 49 anos que meu irmão Antonio Nelson morreu (...) me causa espanto: o tempo que passou, o irmão, o nome, a morte. (...) Quase cinco décadas... guardo uma lembrança de nós dois, juntos, no meio da noite ‘assistindo’ pelas ondas do rádio ao milésimo gol de Pelé. Mas é falsa. Ele morreu dois meses antes daquele Vasco x Santos. Que partida terá sido a que assistimos, então? Talvez eu venha a me lembrar no ‘memento mori’, ou dia desses, vendo uma foto de uma célula, lendo um artigo sobre o planeta Vulcano. (...) O irmão que era meu ídolo e de quem só levei cascudo e taponas... Mas que fazia meu coração bater forte com cada estripulia cometida, dentro e fora do campo de futebol. Um artista em estado bruto, a soltar chispas no deserto. (...) A morte, mais que inesperada, aos 15 anos incompletos, resultou sendo a partida que sempre desejou: ‘um dia vou-me embora daqui’. Até hoje não foi, de verdade.”
Encontro na UNEB 2 (19/05/2016),
post sobre o sertão,
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“(...) uma sandália havaiana toda estropiada, com seus pedaços ligados por arames e fios (...) me remeteu imediatamente à minha distante infância no sertão do São Francisco. Tempo em que produtos industrializados eram raros — falo dos anos 1960, antes de o asfalto nos estragar de vez a vida. (...) era bem comum, naquele tempo (...) remendar os calçados. Todos os calçados. Botar meia-sola em sapato, trivial. Repor tiras em sandália de couro, normal. Isso, sem falar em trocar saltos, fivelas e quejandos. Havia vários sapateiros no lugar. (...) As havaianas eram frágeis para o puxado do areão das ruas, da lama da beira do rio, dos gravetos da caatinga. Fatalmente quebravam as tiras ou folozavam os encaixes (para não dizer buraquinhos) e viviam soltando as pontas. (...) Eu, menino, cansei de passar sabão no orifício para poder meter lá, de novo, a cabeça da tira solta. E quando o buraco folgava de vez, não havia outro jeito: enfiava-se um prego na transversal para prender a ponta com firmeza por baixo da sandália. (...) E quando rompia a tira, juntava-se os dois pedaços no bico da chama de um isqueiro, ou coisa parecida, e quando a borracha começava a derreter juntava-se as pontas que, a frio, emendavam-se. (...) ontem à noite, minha sandália havaiana quebrou a tira. E nada disso é mais possível, perdeu seu tempo de ser. E como o dia passou e não comprei outra, estou agora de pés na cerâmica fria, enquanto escrevo estas linhas.”
“O Brasil parece parado no tempo a repetir experiências sem gerar aprendizado relevante. Tudo que construímos ostenta marcas passadiças, propósitos turvos, resultados duvidosos à custa do suor e do sangue dos mais pobres. Agora mesmo somos arrastados por uma onda reversa que pretende ressuscitar o país de 50 anos atrás, aquele que a Ditadura Militar engendrou com seus atos institucionais. Piorado, em verdade, por um fundamentalismo religioso que espanta por sua solidez e profunda ramificação nos estratos sociais. Temos, sim, uma tendência ao desastre (...) Em seu primeiro romance, As margens do paraíso, Lima Trindade deixa isso bem claro: projetamos paraísos sobre corpos despedaçados e almas corrompidas; estamos sempre às margens de algo promissor, marcados por desesperança e perdas irreparáveis. (...) Jovens, deslocados em seus ambientes de origem, Brasília representou para eles, e aos brasileiros em geral, o farol e a oportunidade quando a crise se instalou em suas existências. Fico pensando que jovens como eles acorreram a várias outras terras prometidas ao longo de nossos séculos, obtendo resultados bem parecidos ou iguais. (...) Brasiliense de nascimento, Trindade oferece ao leitor, enquanto expõe o drama que move e aproxima seus personagens na capital que ajudam a construir, o conhecimento do cotidiano dos peões nos canteiros de obras e nos barracões, nas biroscas empoeiradas e nos puteiros baratos e de luxo, e até mesmo dos trabalhadores mais qualificados, entre esses, os embriões ou filhotes dos empreiteiros celebridades da contemporaneidade. Por isso a impressão de que estamos a nos repetir da pior forma possível.”
“O amigo que aniversaria não comparecerá ao almoço. Fisicamente. Mas tem estado ao nosso lado desde que se ausentou desgostoso e precipitadamente. Mário Vieira da Silva, o Mário Jegue, ‘digaí, biscoito!’, aquele que aparecia para dizer que não viria... e ficava. Pessoa inesquecível por sua generosidade, paciência, surdez, desprendimento, disposição, disponibilidade, gosto pela vida e pelo riso. Um leitor criterioso e constante, um personagem impagável de causos fantásticos, igualmente inesquecíveis. Beberemos e comeremos em sua memória. Este será seu primeiro aniversário de ausência. Nós, os amigos que ficamos, pretendemos seguir festejando sua memória, a cada quinta-feira, enquanto não partimos também desgostosos dessa dureza de vida. (...) E depois entregaremos os novos livros aos leitores. A literatura traz consigo essa condição: entrega de algo que se julga precioso e pessoal ao usufruto de outras pessoas. Ir ao encontro de um livro, tomá-lo nas mãos, abri-lo e com ele conviver durante horas ou dias, corresponde a travar uma nova amizade, ou a fortalecer amizade já existente. Estamos juntos, autor e leitor, para sempre irmanados em memória e referências. Na esperança, claro, de que sejam boas e positivas.”
“(...) rostinho de adolescente com jeito de comediante, narizinho arrebitado, cabelos curtos. Tez branca. E vejo a grandeza do inexplicável. (...) Escritora dos excluídos, dos diferentes, Carson McCullers deve ser leitura obrigatória para quem acredita que a força dominante precisa ser confrontada com a potência das minorias. Mr. Singer é qualquer um de nós que sofre por seu igual ou seu igual na diferença. Mr. Singer não tem voz, mantém suas mãos nos bolsos a maior parte do tempo, pouco entende do que lhe dizem, mas é o homem em sua plenitude, todos lhe procuram, a todos acolhe. (...) sim, essa garota branca e adoentada soube escrever sobre os destituídos, em especial, os deficientes e os negros do sul norte-americano de forma magnífica. Concentrada no humano, McCullers, no meu modestíssimo entender, supera Faulkner, se não por extensão, por concentração de dor, esperança e compaixão.”
Vozes de Tchernóbil, Svetlana Aleksiévitch (2) (30/05/2016),
a melhor resenha de livro,
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“(...) Aline Bei sabe que ‘a cura não existe’ e que a humanidade parece se especializar em produzir doenças. E tudo isso pesa demais, precisa ser sacudido, carece de benzeduras. (...) Viver é ser alvo permanente. Violência na escola, violência contra a mulher, distanciamento entre pais e filhos, solidão na velhice, temas da contemporaneidade compõem a trama do romance sem, em momento algum, assumir tom de libelo (...) Fechei o livro [O peso do pássaro morto] com aquela sensação maravilhosa de ter participado de uma experiência singular e emocionante. (...) Um filho pode se tornar um completo estranho, sim. Um cão, animal estigmatizado por causar a perda e a dor mais profunda à protagonista, pode vir a ser, sim, um companheiro mais que amado. E o que é o amor, se não o combustível que permite viajar ao encontro do desconhecido?”
“Não sei que perguntas faria, muito menos se escreveria um livro ou apenas um bilhete. Ser o pai de uma menina morta deve revirar, mesmo, uma pessoa pelo avesso; prosseguir, assim, vísceras expostas, a se despedaçar aos poucos, a se dessangrar tempo adentro pode resultar em desvarios e perdas irrecuperáveis. Tudo o mais torna-se crueldade pura a chicotear o lombo desse pai, da buzina dos carros na rua ao riso do casal na lanchonete. E, no entanto, o coração não para, a mente insiste em registrar com maior intensidade o que antes mal se vislumbrava. (...) E como é preciso gritar, as mãos escrevem. E o leitor desse ‘O pai da menina morta’, de Tiago Ferro, sente-se também açoitado pelo desvario da narrativa fractal, se posso assim dizer, revolvida por uma inescapável dor, dor que jamais encontra lenitivo, pois os golpes se sucedem impiedosos. (...) A morte de uma criança cancela uma sequência inteira de futuro, abre um vazio na história familiar, se a família resistir a essa perda.”
“(...) não uma poesia que cante o amor e a guerra, mas o vento, as curvas das montanhas, o sentido da ausência, do caminho, da chuva que cai, essas coisinhas de que a poesia verdadeiramente é feita. Sim, um versejar que viaja mundos, modifica-os e retorna para influenciar sua própria origem. Ou não, sabe-se lá. Mas que é bonito, é. E muito. (...) Perdi a conta das garrafas de vinho abertas e enxugadas nesse romance do Aubert [Poesia chinesa, de André Caramuru Aubert], por isso abri uma para meu bom prazer, de um honesto chileno tinto Reserva do Loncomilla Valley, e para escrever estas linhas. Trair e ser traído, pelo quique da bola ou pelo silêncio de quem se ama. Ser um poema chinês, açoitado pelos cheiros marinhos ou das ruínas silvestres. Seguir a sombra, repetir os erros, como quem bate ponto no portão da fábrica toda madrugada, sei lá, permitir à vida que aconteça em plenitude nas entrelinhas. Pois nas linhas, ora, nas linhas correm os trens.”
“Um desencontro no futuro, o mesmo clima onírico, o nonsense dramático, os típicos cenários e cenas que marcam a obra de Lynch. (...) Personagens idosos, intérpretes maduros, linhas narrativas perturbadoras. (...) O estranhamento e a excentricidade configuram um realismo fantástico (ou seria surrealismo?, não sei bem) mais refinado e misterioso que na série original. Agora não se trata de quem matou Laura Palmer, mas sobre o absurdo das permanências dolorosas, sobre o horror da barbárie humana cotidiana, no mais das vezes encapada pela singeleza e por uma ternura de navalha. A nova série Twin Peaks está mais para redemoinho de neve no túnel do tempo.”
Minicontos, Obscenas (27/07/2015),
post sobre minicontos,
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“(...) Vi as rodas do caminhão para cima, girando velozmente, e a carroceria meio esmagada contra o capim do acostamento. Parei meu carro logo depois do Fiat Uno. Outros carros começaram a parar nos dois lados da rodovia. (...) Não houve batida, o caminhão havia tombado, muito provavelmente por conta do empuxo da carga na curva. O motorista do Uno confirmava que o caminhão vinha dançando na pista. E assim nos aproximamos da cabine e das pessoas que estavam lá dentro. (...) Com o celular na mão, não consegui me lembrar do número do Samu ou da Polícia. M ficara no carro. Uma ambulância de atendimento intensivo havia parado e o condutor já estava ao celular falando com os socorristas e passando a localização do acidente. (...) O homem contornou a cabine e abriu a outra porta. (...) E balançou negativamente a cabeça. Eu guardei meu celular no bolso e não me aproximei mais. (...) Do outro lado da pista, motoristas desciam dos seus carros com celulares nas mãos. E fotografavam sem cessar, de vários ângulos, o caminhão tombado. Não quisemos mais ver aquilo.”
“Fazia tempo que não maltratava tanto um livro. O exemplar de ‘O romance luminoso’, do escritor uruguaio Mario Levrero, que li ao longo de meses, andou pelo banco traseiro e tampa de bagageiro, às vezes pelo piso do carro, por conta de freadas bruscas, entrando e saindo de consultórios médicos (sendo esquecido aqui e ali), largado de mão por semanas, agarrado novamente com avidez, pois... (...) Mario Levrero entrega-se ao texto com volúpia, dedica-se a nele se encontrar, a reconstruir momentos e experiências luminosas e a encontrar o que ainda para ele não se fez luminoso. Ou seja, produz um texto que se desdobra em orações infindas, cada uma sendo (aí, sim) fachos de luz prenhes de aroma e gosto. Comprometido apenas com a literatura, com o sonho e a loucura humanos. (...) um romance sobre o desespero da solidão que o envelhecimento traz, junto com certa impotência para a execução de projetos, o que deságua em sonhos perturbadores e visões fantasmagóricas. (...) O tal sessentão diarista é louco, assim dado pelo psiquiatra, que o vem consultar exatamente por ele ser um louco, como também pela própria filha que com ele tem pela primeira vez uma conversa fluida e sincera, simplesmente, por ter aberto o diálogo com a frase ‘O senhor é louco’. Que alívio, não? Mas é um louco que investiga suas loucuras, utilizando a linguagem como ferramenta preciosa, para nosso deleite. Leitor compulsivo de romances policiais, maníaco por jogos de computador, é um que tem muitas amigas; com umas passeia, com outras se deita e por aí vai, como sói acontecer aos sessentões. Dizem.”
“(...) Ferrante tem uma qualidade extraordinária como escritora: não deixa nenhuma convenção social, e ousaria dizer preferência pessoal, contaminar seu texto. (...) sua verdade mais profunda e oculta, as possibilidades da ação benéfica ou maléfica são perseguidas e expostas por meio de um dos melhores textos [A filha perdida, de Elena Ferrante] que tive o prazer de ler nos dois últimos anos. (...) A condição de mulher madura, culta, experiente e sábia não afasta da professora universitária a arrogância, a vaidade intelectual, o egoísmo desnaturado, a carência, a solidão, um ou outro trauma de infância. Diariamente, segue os movimentos da família napolitana e os contrapõe, aqui e ali, com a sua história pessoal. Aos poucos se envolve com alguns deles, com o salva-vidas e com o corretor que lhe arrumou o apartamento. O texto então realiza o que a melhor literatura faz com o leitor: seduz, transporta, envolve, excita, angustia, assusta, encanta. Aquela família napolitana viverá momentos de desespero e tensão em suas férias e a professora voltará mais cedo para casa, depois de perder o afeto que conquistou, naqueles dias, da pior maneira possível. Seguir um impulso pode resultar em abismo incontornável.”
“O ENIGMA DOS LIVROS, de Mayrant Gallo, reúne sete contos do autor, entre eles aquele que dá título ao livro. Uma nota de fantástico perpassa todos os contos, o que não é novo na contística de Mayrant, um amante da ficção científica, que também pratica com muito talento. (...) Seu famoso personagem Victor Vhil surge logo no início do livro, imprimindo essa marca de estranhamento com uma presença envelhecida e adoentada a passar por provações físicas e psicológicas em exames clínicos penosos. E a se relacionar de forma intensa com um gato de rua. Aliás, os gatos retornam adiante em um conto, digamos, próprio, agora investidos na condição de fiscais, ou gângsteres, de um sistema social apodrecido. Os azuis mal são notados em meio a confusão provocada pela queda de um avião e seus malotes de dinheiro, sendo arrastados pela ignorância e oportunismo dos homens a um fim patético. (...) Mayrant capta muito bem os sentidos perturbadores da vida contemporânea. O abandono, a peregrinação dos doentes, o desamparo oficial, uma realidade ao largo da dos homens comuns, comandada por não se sabe quem e que nos afeta direta e cruelmente. O enigma dos livros talvez seja o de revelar essa realidade obscura que insiste em rir dos que tropeçam nas calçadas esburacadas da vida comum. Deliciosa leitura, com a leveza preconizada por Calvino e a qualidade literária já conhecida de um dos principais ficcionistas e poetas da Bahia.”
Meu irmão (25/09/2018),
sobre o irmão morto,
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“Neste romance, Ruy, você revelou todas (ou quase todas) as suas vozes: a do leitor consciencioso e voraz, a do poeta incontrolável, a do amante da solidão proveitosa e da convivência amical, a do crítico cirurgião, a do boêmio saudoso, a do cronista de memória viva, a do prosador sedutor, a da tradição literária que abriga, a dos amores vividos e até mesmo aquela que se cala em não-ditos preciosos. Seria polifônico se o narrador fosse único, mas você entregou a história a outras vozes igualmente sábias. E o romance [O príncipe das nuvens, de Ruy Espinheira Filho] virou um festim espiritual (quase escrevi diabólico), não fosse anunciado como ‘romance psicografado’.”
“(...) A ambiência soteropolitana, as referências à cultura pop, o ser baiano entre altos e baixos, mais para profundidades e sombras, agora constroem um panorama vívido da cidade do São Salvador e suas múltiplas facetas. A linguagem encontrou o equilíbrio preciso entre registro precioso, adequação e clareza, livrou-se de qualquer pretensão, fez-se planície para o galope da leitura. (...) O livro [Ladeiras, vielas & farrapos, de Tom Correia] merece mais que prêmios e aplausos. Merece várias leituras por parte de todos que amam a literatura e a essa terrinha em que nos enterramos, acordados ou em sonhos. Merece ser adotado nas faculdades de letras e nos colégios. Merece traduções, versões, transposições, o que seja. Merece correr mundo, de boca em boca, de mão em mão. (...) arrisco afirmar que a organicidade (...) e seu tom de realismo fantástico ou de suprarrealismo, que permeia boa parte dos contos, conferem um sabor especial à leitura e encorpam o conjunto de contos de um valor, digamos, diamantífero. Tom Correia conhece profundamente sua cidade, sua gente, sua prosódia e, em especial, suas recentes trocas de pele, da Sloper à Zara, da av. Sete aos shoppings, do carnaval na praça aos camarotes do circuito Barra/Ondina.”
“(...) Passeio pela noite alta, aquela encorpada, silenciosa e densa: noite quase pura, que antecede um novo alvorecer. Aquela em que até os galos ainda dormem. (...) Essa noite alta está posta em livro [Noite alta e outros poemas] por Ruy Espinheira Filho. E é por ela que passeio. (...) O poeta ilumina nossa noite a partir de um caminho de memórias de vida e morte, de outros tempos, outras ruas e noites em que moravam anjos. (...) A noite alta não oferece mapas, nem o poeta a isso se dedica. Ao contrário, escancara portas e novas trilhas (...) Nessa noite alta não se deve acompanhar o poeta, passo a passo, pois há golpes de ventos súbitos e retornos inesperados e leituras e releituras de livros e episódios, dilúvios e anjos da guarda, meninas mortas e cidades antigas; e porque é alta essa noite também nela se encontra muita teia de sonhos. (...) Noite alta, o tempo da alma.”
“A poesia de Mário Quintana atende qualquer silêncio, preenche toda completude, vale por tudo que não existe. E jamais se torna antiga: remédio para escuridões, bíblia dos fiapos de luz, dos rastros invisíveis, dos sopros que nos animam a qualquer tempo. Modo de usar: diário, sem moderação.”
Carlos Barbosa - Foto: Mário Espinheira
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